A paixão que Lula desperta dos dois lados foi a cereja do bolo na disputa entre “coxinhas” e “petralhas”. E as consequências deste embate ainda são imprevisíveis

Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente e, talvez, ex-futuro ministro: pivô das mais extremas paixões | Ricardo Stuckert/ Instituto Lula
Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente e, talvez, ex-futuro ministro: pivô das mais extremas paixões | Ricardo Stuckert/ Instituto Lula

Elder Dias

Se existe uma coisa que não se pode dizer nos últimos meses, e especialmente nas últimas semanas, é que o brasileiro não gosta de falar de política. Em qualquer bate-papo nas ruas, no trabalho, nas mesas de bar já em alta madrugada (horário em que a presença nesses locais pode ocasionar adjetivos pouco gentis por parte de algum vereador, especialmente se você morar em Goiânia), nas redes sociais ou nas conversações de WhatsApp, o assunto se tornou tão corrente e fluente como discutir futebol. Imagens e memes do atual quadro político do País, para todos os gostos, foram compartilhadas como nunca antes na história deste País.

No centro de toda a convulsão que se criou a partir dos desdobramentos das investigações da Operação Lava Jato está a figura de Lula. Mais até mesmo do que o PT, porque seu líder é a alma da sigla. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, até mesmo no discurso do partido, é tratado como figura mais importante do que a atual mandatária Dilma Rousseff. Ele o chama de “querida”, ou simplesmente “Dilma”; ela o chama de “senhor” ou, ainda, “presidente”.

Foi por meio da figura de Lula — e não por Dilma e seu segundo governo, que parece acabar sem ter começado — que as manifestações de rua, de um lado e de outro, ganharam volume. Também nunca antes na história deste País um líder foi tão desancado (Getúlio Vargas se suicidou por menos), tanto por aqueles do campo opositor — a direita e a extrema-direita — como pelos que um dia pertenceram a seu “lado” e se desiludiram com a política — ex-eleitores, ex-petistas e esquerdistas de outros grupamentos.

A paixão em torno de Lula foi a cereja do bolo na disputa entre “coxinhas” e “petralhas”. Paixão é sangue na veia, é grito, é fúria e fervor. Contra ou a favor, é algo avassalador: como sentimento forte que é, ela destrói amizades, ela provoca tumultos, ela mata a razão.

Foi em meio a isso que os recentes episódios se sucederam. Muitos boatos circulam nas redes há anos, sobre uma suposta riqueza astronômica de Lulinha, como é mais conhecido Fábio Luiz Lula da Silva, o filho mais velho do ex-presidente. Ele já foi tido — sem comprovação alguma até o momento, é bom que se ressalte — como dono da Friboi ou proprietário de latifúndios no Pará. A investigação do tríplex no litoral, no Guarujá, e do sítio no interior, em Atibaia, ambos em São Paulo, serviu como confirmação daquilo que não se sabia.

Quem quer ver a verdade custe o que custar acabará aceitando a meia verdade. Ou uma investigação inconclusa. Indícios, ainda que fortes, são apenas indícios, não provas. Mas imagine o efeito que causa saber de uma centena de viagens do suspeito ao sítio do mesmo amigo em um curto período, ou sua visita a um apartamento em obras acompanhado do dono da empreiteira.

São provas bem menos concretas do que documentos oficiais de bancos europeus atestando existência de contas bancárias no exterior. Mas o fogo estava aceso já. E então, na sexta-feira, 4 de março, veio a condução coercitiva do ex-presidente Lula, que, em um primeiro momento, foi considerada de fato uma prisão. Para a população que já tinha o “sapo barbudo” atravessado na garganta, não precisava de mais nada: Lula virou “Luladrão” ou “Lularápio”. Na quinta-feira da semana seguinte, três promotores paulistas muito afoitos pediram a prisão de Lula em outro processo. E até o próprio Ministério Público achou que estava passando da conta.

Mas, como efeito imediato, não dá para negar que isso tudo tenha impulsionado bastante a manifestação do dia 13 de março. Boa parte dos quase 6,9 milhões ou 3,6 milhões que foram às ruas (segundo os organizadores ou segundo a Polícia Militar, respectivamente) se animou a estar lá por conta da proximidade de um desfecho favorável: Lula perto da prisão, Dilma Rousseff perto da porta da rua do Planalto.

É claro que o governo federal entendeu assim também. Os dois baques — a “prisão” de Lula que ameaçava se tornar sem aspas e a magnitude dos protestos do domingo — acenderam todas as luzes vermelhas, atropelando qualquer alerta amarelo. A saída encontrada foi de desespero e muito tardia, mas não se pode dizer que não tenha sido maquiavelicamente bem articulada: Lula viraria ministro-chefe da Casa Civil e se tornaria, de fato, o número 1 da República —relembre-se que Dilma o chama de “presidente”.

O anúncio foi oficializado na quarta-feira, 16, no começo da tarde. O contragolpe veio brutal: logo depois, o juiz Sergio Moro mandou abrir o sigilo dos áudios da investigação da 26ª fase da Lava Jato. Inclusive um que continha uma conversa da presidente com seu futuro ministro, no qual ela informava que levaria até ele o termo de posse para que ele assinasse e, então, se fizesse uso “caso necessário”.

Foi o fim das manifestações “pacíficas” e o início de protestos espontâneos e bem mais raivosos. Na Avenida Paulista e na Praça dos Três Poderes, a coisa pegou fogo já naquela noite mesmo. A sequência de divulgação e repetição de novos áudios — alguns com conversas íntimas e sem teor útil algum para a investigação — foi determinante para que o quadro piorasse. O metalúrgico que chegou ao Planalto agora era um ladrão boca suja.

Na sexta-feira, 18, aflorou a paixão do outro lado. Uma multidão foi às ruas “pela democracia” e “contra o golpe”. Na verdade, não fosse Lula aquele contingente — que nunca se mobilizou quando a espada estava somente sobre Dilma. Os confrontos entre os grupos, felizmente, não aconteceram até o momento, pelo menos com estragos de grande monta. Em meio a isso, houve ainda o vai e volta do processo do STF para Sérgio Moro (decisão do ministro Gilmar Mendes) e deste para o Supremo (por ordem de seu colega Teori Zavascki).

Nesta semana, outra marcha contra o impeachment estará nas ruas, no simbólico 31 de março. O prazo de dez sessões para Dilma Rousseff se defender estará no fim. O rito na Câmara, acelerado. Lula é um articulador, mas não ministro. Está enfraquecido como nunca e detém um poder que parece escorrer pelos dedos enquanto corre contra o tempo. Paixões em alta. Resta o saldo das ruas para saber se março de 2016 se tornará “ o mês que não terminou”.