Longe do aconchego familiar, universitários narram vivência em moradias estudantis
19 janeiro 2020 às 00h00
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Vindos de outras cidades e até Estados, jovens chegam à capital em busca do sonho da graduação e passam a integrar as famosas casas do estudante universitário
Na quadra 71 no Setor Leste Universitário, em frente à Praça Universitária, em Goiânia, dois prédios de tijolos laranja envoltos por uma pequena área verde chamam a atenção de quem passa. Ali estão as unidades I e III da Casa do Estudante Universitário da Universidade Federal de Goiás, ou simplesmente CEU da UFG. Além das duas, há mais três de propriedade da universidade: uma no mesmo setor e outras duas no câmpus Samambaia da UFG. A CEU I, a mais antiga – a construção data de 1961 -, comporta 110 moradores. Atualmente, cerca de 60 vivem no local. Já a III tem capacidade para cerca de 60. Na parte externa do local, cartazes com desenhos e frases políticas ocupam as paredes, enquanto lençóis e roupas se estendem por varais e parapeitos. Pela grama ao redor da casa, algumas galinhas passeiam enquanto observam estudantes saindo e entrando sem parar.
Sob a égide da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (Prae), a CEU conta com sala de estudos, sala de informática, cozinha, lavanderia, biblioteca e dezenas de quartos – 35 ao todo – onde dormem, em cada, de dois a três estudantes. Para pleitear uma vaga, há requisitos indispensáveis: possuir renda de até 1,5 salário mínimo; não residir em Goiânia ou Região Metropolitana e, sobretudo, ser aprovado num curso de graduação presencial da UFG.
Entretanto, além de uma grande estrutura física onde o universitário da Federal vindo de fora pode optar como moradia, a CEU é o verdadeiro lar de jovens hipossuficientes que estão atrás de um sonho: concluir a graduação na UFG e construir um futuro. É o caso de Ricardo Cézare, estudante de Medicina. Natural de Diamantina, Minas Gerais, o jovem é filho de um servente de pedreiro e de uma lavadeira de roupas. Em 2015, quando foi aprovado para um dos cursos mais concorridos do país, o primeiro questionamento que o acometeu foi: como se manter em Goiânia cursando uma graduação de período integral, sem poder contar com a ajuda financeira da família.
A notícia da aprovação em Medicina correu a pequena Diamantina, e vários amigos da família, cientes das dificuldades financeiras que o jovem teria para se mudar para Goiânia, fizeram uma visita a Ricardo para, além de parabenizá-lo pela conquista, ajudá-lo com pequenas quantias em dinheiro. Foi essa “vaquinha” que deu o fôlego inicial para o mais novo acadêmico de Medicina.
No início do mesmo ano, Ricardo desembarcou na Rodoviária de Goiânia com uma mochila nas costas, uma mala nas mãos, o dinheiro presenteado pelos amigos e um sonho: ser um médico bem-sucedido. Sem absolutamente nenhum lugar para ficar, Ricardo relembra a primeira coisa que teve de fazer. “Eu deixei minhas malas num guarda-volumes na rodoviária e saí andando, procurando algum hotelzinho barato ou pensão onde eu pudesse ficar até arrumar um lugar pra ficar de vez”.
Alguns dias depois, Ricardo fez amizade com um rapaz pela internet, que o aceitou em sua casa com uma divisão de despesas. No começo a convivência foi boa, mas depois, algumas regras impostas pelo morador começaram a prejudicar o universitário. “Eu não podia usar a lavanderia, não podia fazer comida na cozinha, era bem complicado”, recorda. Após três meses dividindo a moradia, Ricardo teve um desentendimento com o rapaz e foi literalmente expulso do lugar. O desespero bateu diante do fato: Ricardo não tinha mais onde ficar. Entretanto, nem tudo estava perdido, muito pelo contrário.
O jovem mineiro, que havia procurado a CEU no início do ano e sido informado de que não havia vagas, tentou ajuda novamente na moradia estudantil. Foi quando, após o que ele considera uma “insistência contínua”, conseguiu participar do processo seletivo e ser selecionado para integrar o quadro de moradores da CEU I.
Na moradia estudantil, Ricardo não possui nenhuma despesa com aluguel, água, energia ou internet. Além disso, ele, assim como todos os moradores da CEU da UFG, tem direito a três refeições gratuitas no Restaurante Universitário (RU) de segunda a sexta-feira, e duas aos sábados.
Além da isenção com as despesas da casa e alimentação, os estudantes contam ainda com uma ajuda de custo mensal no valor de R$ 247,00. Todos os benefícios adquiridos pelos moradores, assim como o custeio, são originários do Plano Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes), programa federal de apoio à permanência de estudantes de baixa renda matriculados em cursos de graduação presencial das instituições federais de ensino superior (Ifes). Porém, há regras que devem ser seguidas na casa.
O rendimento acadêmico do estudante morador da CEU é avaliado semestralmente pela Prae, e um termo de compromisso contendo uma série de regras de convivência é assinado por todos os universitários que ingressam na casa. A transgressão de alguma dessas regras pode levar o estudante a receber desde uma advertência verbal até, em casos extremos, a expulsão do programa de moradia.
Ricardo, que vive na CEU desde o início da graduação, enfatiza que está no último ano do curso, com previsão de término para o final de 2020. O acadêmico lembra que se não tivesse sido acolhido pela moradia estudantil, teria ficado em situação de rua. Porém, o período de adaptação do estudante na casa também foi um período de adequação a uma nova realidade. Ricardo, que sempre reservou horas a fio de estudos diários fora da sala de aula, relembra que teve dificuldades com a rotina no início. De acordo com ele, o quarto era dividido com um estudante de Música que tinha o hábito de praticar os instrumentos musicais dentro do dormitório. Só depois de algum tempo os colegas de quarto conseguiram se adaptar ao cotidiano um do outro.
Ao olhar para trás, ele manifesta gratidão e expressa suas expectativas para o futuro. “Meu objetivo é de me formar um bom profissional, e não esqueço de maneira alguma de, no futuro, retribuir à sociedade por essa oportunidade que ela me deu. O mínimo que eu posso fazer pra sociedade é atender com qualidade, atender bem as pessoas que vão me procurar”, afirma.
Alunos em situação de vulnerabilidade social são alvo de programa de moradia estudantil
“A gente já recebeu alunos indígenas que apareceram só com a mochila nas costas e uns trocados para o lanche”. A revelação da diretora de Atenção Estudantil da Prae, Camila Caixeta, resume bem a realidade daqueles que procuram o acolhimento da CEU.
Segundo ela, alunos de todas as realidades, sobretudo aqueles em condição de vulnerabilidade, costumam procurar a CEU para participar do processo seletivo e pleitear uma vaga na casa. Camila recorda de um caso em que a mãe de uma aluna recém-aprovada em um curso de graduação da UFG, vinda de comunidade ribeirinha, procurou a universidade em busca de acomodação para a filha.”São pessoas bem simples. Esse caso, por exemplo, a mãe e ela sobreviviam da pesca, elas não tinham nenhuma condição de pagar um aluguel, de manter as condições necessárias para os estudos. É aí que a CEU entra”, explica.
Camila conta que a CEU é apenas um dos programas assistência estudantil fornecido pela UFG através da Prae para alunos hipossuficientes. Segundo ela, o Auxílio Permanência; Programa Alimentação (RU) e o Projeto Canguru (que apoia a permanência dos estudantes de baixa renda familiar que tenham filhos menores de cinco anos) são alguns dos outros programas disponíveis para estudantes de baixa renda. Os dados da Prae apontam que 37% dos estudantes da universidade que usufruem dos programas, o que corresponde a 6.853, percebem uma renda mensal de 0 a 0,5 salários mínimos.
Quando casos de extrema urgência chegam à CEU, há especificações no regimento da moradia que permitem que o estudante fique acomodado em situação de hóspede até a obtenção de sua efetivação. É o caso da acadêmica de Teatro Ormilene de Souza, ou simplesmente Milla. A jovem de 25 anos é natural de Serra do Ramalho, no interior da Bahia. Quando chegou em Goiânia em 2017, assim como o estudante de Medicina Ricardo Cézare, Milla também não tinha outro lugar para ficar a não ser a CEU.
Como estava fora do período de processo seletivo, Milla obteve um documento junto à Prae que permitiu a ela ficar hospedada no quarto de um amigo na CEU III por tempo determinado. Após o prazo de 30 dias, a universitária conseguiu sua efetivação e foi transferida para a CEU V. “Se não fosse a casa, seria inviável eu fazer meu curso”, destaca.
De acordo com Camila Caixeta, o prazo de permanência na casa varia de acordo com a necessidade do estudante. Ou seja: o indivíduo tem direito de usufruir da moradia pelo tempo necessário para a conclusão de seu curso. Todo estudante que se forma tem o prazo de 30 dias após a Colação de Grau para desocupar a casa.
Instituição privada, PUC também conta com Casa do Estudante Universitário
Não é apenas a UFG que oferece o benefício da moradia estudantil aos seus estudantes. A Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás) também dispõe da benesse direcionada aos alunos de baixa renda.
Localizada também no Setor Leste Universitário, a CEU II, de propriedade da PUC Goiás, foi inaugurada pela universidade no ano de 1978 e vem funcionando desde então, mantida com recursos próprios. A casa é regida pela Coordenação de Assuntos Estudantis (CAE) e, segundo a reitoria da instituição, tem capacidade para 30 moradores.
A média anual de residentes da casa é variante, já que a entrada e permanência de estudantes não é necessariamente sempre a mesma. “Agora, por exemplo, temos um edital aberto com 11 vagas. A casa contava com 19 moradores até o final do ano passado”, informou a reitoria.
Conforme a PUC Goiás, os estudantes que participam do Programa de Moradia Estudantil também podem se candidatar a bolsas de idiomas na PUC Idiomas e participar dos programas de atendimento ofertadas pela CAE, como grupos de desenvolvimento de habilidades acadêmicas e interpessoais, além de atendimento psicológico, se for necessário. No caso das bolsas integrais para cursos de idiomas, costumam ser cinco vagas por edital.
A universidade se orgulha em afirmar que foi a primeira não-pública a ter uma casa do tipo. “A própria nomenclatura desse tipo de espaço (CEU II) já dá a dica, já que a nossa é a segunda na ordem de casas de estudantes criadas em Goiás”.
Natural de Anicuns, Karolyne Nunes, ou Karol, como é chamada pelos amigos, tem 21 anos e está no quinto período de Engenharia Civil. Ela conta que vive há um ano e meio na casa do estudante da PUC Goiás, se mudando de sua cidade diretamente para a moradia estudantil. Karol é beneficiária integral do ProUni e, portanto, não tem despesas com mensalidade. Entretanto, segundo a futura engenheira civil, ir à aula fazia parte de uma rotina extremamente estafante, uma vez que ela saía de sua cidade todos os dias na parte da tarde e voltar já de madrugada. “Era difícil, porque o ônibus saía de Anicuns todos os dias às quatro da tarde, e eu voltava quase uma da manhã. Era muito cansativo”, recorda.
Cumprindo esse ritual de ficar mais tempo no transporte do que na própria aula, quando estava no terceiro período de seu curso Karol se inscreveu no processo seletivo da CEU II. Foi um longo caminho até conseguir a vaga. “O processo seletivo envolve uma visita na casa, onde a gente vai ver como é a realidade dos moradores No mesmo dia, tem um outro processo onde eles mostram pra gente as normas dentro da casa. Depois disso, tem um outro processo que é o teste psicológico, em que a gente faz a entrevista com a psicóloga, e depois tem o teste em grupo. Depois de alguns dias sai o resultado e eles nos falam se fomos aprovados ou não”.
Karol divide o quarto com outra estudante. Na casa, tudo é compartilhado: o banheiro, a lavanderia, os varais, as panelas da cozinha, os programas na TV. A nova realidade fez com que ela mudasse seu jeito de ver as coisas.
Apesar dos benefícios oferecidos pela moradia, semelhantes aos da CEU da UFG (isenção de aluguel, despesas com água e energia), a adaptação ao novo lar não foi assim tão fácil. Segundo Karol, a saudade da família foi o que mais pesou. “Eu sempre morei com a minha mãe, e é muito difícil quando a gente sai de um lugar e vai pra outro, para conviver com pessoas que são totalmente diferentes da gente. Minha maior dificuldade foi essa: ficar longe de casa”, diz.
Mesmo com as dificuldades para a adequação ao novo lar, Karol sublinha que jamais pensou em desistir, uma vez que o lado bom de viver em uma moradia estudantil falaram mais alto. “Hoje eu tenho tempo de estudar, de fazer cursos, de assistir palestras. Também consegui viver com pessoas que têm opiniões diferentes das minhas, e me fez bem. Todo mundo se respeita”, conclui.