Lei Geral das Religiões pode derrubar separação constitucional entre igreja e Estado
09 maio 2015 às 12h08
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“Concordata Evangélica” que tramita no Senado pode demolir princípio de laicidade no Brasil. Caso aprovado, projeto prevê isenção de impostos a serviços, renda e patrimônio de entidades religiosas. Casamento religioso terá efeito civil e verba pública poderá ser empregada na preservação de templos
Frederico Vitor
“Feliz a nação cujo Deus é o Senhor”. Assim diz o Salmo 33:12 da Bíblia Sagrada, livro de cabeceira de milhões de cristãos em todo Brasil. Seguindo esta linha, líderes e políticos religiosos, notadamente da chamada bancada evangélica, querem de fato colocar as religiões em um patamar privilegiado diante da estrutura do Estado. Ocorre que está em tramitação no Senado o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 160/2009, conhecido como “Lei Geral das Religiões”, que assegura o livre exercício religioso, a proteção aos locais de cultos e suas liturgias e a inviolabilidade da crença em todo o País.
Tudo isso já é assegurado pela Constituição Federal (CF) de 1988, contudo o ponto polêmico do projeto fica por conta da isenção de impostos às entidades religiosas, de obrigações trabalhistas e o irrestrito acesso ao dinheiro público para reforma, restauração e construção de igrejas e demais patrimônios físicos. O projeto foi apresentado em 2009 na Câmara dos Deputados pelo então parlamentar George Hilton (PRB-MG) — atualmente titular no Ministério do Esporte —, depois que o governo brasileiro assinou, em 2008, um acordo com o Vaticano, criando o Estatuto Jurídico da Igreja Católica Apostólica Romana. Também conhecida como “Concordata Católica”, o texto convencionado com o Vaticano foi aprovado pela Câmara e pelo Senado.
O projeto, primeiramente assinado pelo presidente Lula (PT) e pelo Papa Bento XVI na sede da Santa Sé, prevê dentre outras coisas alguns privilégios legais à Igreja Católica, tais como: imunidade tributária, “blindagem” trabalhista, inserção de ensino religioso confessional e a obrigatoriedade da reserva de espaço público para eventos religiosos. Segundo o estatuto, a preservação dos patrimônios das igrejas será financiada pelo Estado, além da validação e anulação dos casamentos religiosos pelos tribunais eclesiásticos.
Diante das fortes reações de outras denominações religiosas ao decreto que beneficiava a Igreja Católica, lideranças partidárias, em especial aquelas vinculadas às hierarquias religiosas evangélicas neopentecostais, elaboraram a chamada “Lei Geral das Religiões”. Cópia fiel do tratado do governo brasileiro com a Santa Sé, o projeto de Lei 5.598 estende a todos os grupos religiosos, sejam evangélicos, católicos, espíritas, umbandistas, candomblecistas, mulçumanos, judaicos ou orientais, os mesmo privilégios então legalmente cedidos à igreja de Roma.
A Câmara dos Deputados aprovou a “Lei Geral das Religiões” como condição para aprovar o acordo com o Vaticano, tendo como relator o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) — atualmente presidente da Câmara. É válido lembrar que o texto prevê certos privilégios às instituições religiosas como imunidade tributária, isenção do cumprimento das obrigações trabalhistas, obrigatoriedade de reserva do espaço público para fins religiosos, preservação de templos e patrimônios por meio de financiamento com recursos públicos, além da anulação ou validação de casamentos religiosos com efeito civil.
No Senado, a “Lei Geral das Religiões” foi aprovada pela comissão de Educação, Cultura e Esporte (CE) em 2010 e seguiu para a Comissão de Assuntos Sociais (CAS), onde ficou parado até 2013. Após a aprovação nas comissões, o texto ainda teria de passar pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), mas foi encaminhado ao plenário por acordo entre líderes, após apelo de parlamentares favoráveis. Como não foi votado, voltou para a CAE, onde foi redistribuído em agosto para receber relatório do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA).
Outros pontos garantidos no texto são a liberdade de assistência espiritual a fiéis em hospitais, estabelecimentos educacionais e presídios, além da prestação de assistência religiosa em quartéis das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) e das Forças Auxiliares (Polícias Militares e Corpo de Bombeiros Militar). Emenda do senador Rodrigo Rollemberg (PSB-DF) aprovada pela CAE garante essa liberdade mesmo a instituições sem organização formal. O projeto também prevê o ensino religioso, de matrícula facultativa, como disciplina do ensino fundamental, respeitando a diversidade cultural religiosa. Além disso, garante o segredo de ofício sacerdotal e descaracteriza qualquer vínculo empregatício entre ministros e instituições religiosas.
Constituição é clara quanto à separação entre Estado e religiões
Os críticos da “Lei Geral das Religiões” ou “Concordata Evangélica” afirmam que a Constituição, em seu artigo 5º, assegura a liberdade de crença e consciência, não tendo o cidadão brasileiro a obrigação de declarar diante de qualquer órgão público ou privado sua opção de fé, valendo esta garantia constitucional, inclusive, para o censo nacional ou pesquisas oficiais. Portanto, o Estado é laico, que é o Estado sem religião oficial. Evangélicos, católicos, espíritas, mulçumanos, umbandistas, candomblecistas, judeus, budistas, agnósticos e ateus têm sua liberdade religiosa amparada pela Carta Magna promulgada em 1988. Portanto, a crítica maior é em relação à necessidade de leis específicas para regulamentar o exercício da fé em solo brasileiro.
Além disso, no artigo 19 da Constituição está claro a proibição do estabelecimento de qualquer tipo de aliança do Estado com uma igreja. Até porque organizações religiosas, inclusive a Igreja Católica, já possuem leis que aplicam de forma geral a todos os cidadãos, que tem no bispo da Diocese o representante de todos os efeitos das paróquias, como inserido no Código Canônico. Este último é o estatuto dos fieis que regulamenta a atividade religiosa em todo o mundo, tendo sido instituído em 1917, e reformado em 1983. Poucos católicos conhecem tal estatuto. Estima-se que atualmente no Brasil existam mais de 500 igrejas oficializadas, além de outras tantas em processo de reconhecimento legal.
Privilégios patrimonial, fiscal e trabalhista geram polêmicas
Em linhas gerais, os pontos que acendem maior debate acerca da “Lei Geral das Religiões” são em relação aos seguintes tópicos: ensino público confessional, privilégios tributários e trabalhistas. Os que se opõem à “Concordata Evangélica” defendem que a nova lei trata-se, na verdade, de normas legais voltadas à isenção fiscal e questões patrimoniais, trabalhistas e educacionais. Alguns representantes da Igreja Católica, por outro lado, afirmam que o texto do projeto original, o do acordo com a Santa Sé, é uma singela consolidação e sistematização da legislação existente. Noutras palavras, por pedirem isonomia junto à igreja do Vaticano, a bancada evangélica teria aproveitado a situação para generalizar novos privilégios.
Ensino religioso
O ensino religioso fora da grade curricular, oferecido sob responsabilidade das diversas igrejas que administram educandários, em coordenação com o sistema geral de ensino, é considerado consentâneo com o Estado laico. Apesar das críticas de que a “Lei Geral das Religiões” fere a separação entre religião e Estado, no que tange ao ensino público confessional, o texto prevê a preservação da supervisão das diferentes igrejas em sua pluralidade, não sendo desassociado de seu projeto político pedagógico e das diretrizes didáticas em vigor. O projeto dá margem à interpretação de que o ensino religioso nas escolas públicas tem de ser obrigatoriamente confessional, como é defendido por algumas autoridades eclesiásticas.
Privilégios trabalhistas
Além da questão do ensino religioso, há outros pontos que merecem destaque, envolvendo aspectos tributários e trabalhistas. Uma delas é a concessão de isenção fiscal para rendas e patrimônios de pessoas jurídicas eclesiásticas. Outro é a manutenção do patrimônio cultural das igrejas, como prédios, acervos e bibliotecas, com recursos do Estado. Um terceiro é a isenção, para igrejas, do cumprimento das obrigações impostas pelas leis trabalhistas do País.
A Constituição proíbe a União, no seu artigo 150, de instituir impostos sobre “templos de qualquer culto”. Sem desconsiderar isto, experimentados tributaristas alegam que o texto das leis recém-aprovadas na Câmara é impreciso, abrindo caminho para ampliação do beneficio. Isto é, a lei poderia ser aplicada não só aos templos, mas a todos os negócios das igrejas, que, em geral, são donas de editoras, emissoras de rádio e TV, escolas e lojas de produtos gospel. A pergunta que fica é: as igrejas terão que submeter à fiscalização dos Tribunais de Contas, como a lei brasileira prevê, ou terá autonomia? Tudo indica que não, o que poderá provocar novos gargalos jurídicos.
Bancada evangélica de Goiás defende Lei Geral das Religiões
A bancada evangélica nesta legislatura é representada por 74 deputados, deste total, 35 são novos e 39 foram reeleitos. São considerados integrantes deste grupo parlamentar com estreita ligação com igrejas de diversas naturezas, os deputados que ocupam cargos na estrutura de instituições religiosas, como ministros, pastores, missionários, bispos e sacerdotes.
A bancada evangélica é reconhecida por colocar pressão em projetos polêmicos como a aprovação do Estatuto da Família que define como núcleo familiar aquela formada por um homem e uma mulher — o que causou polêmica junto à comunidade LGBT. Outro debate que continua na pauta da bancada evangélica é o Estatuto do Nascituro, que prevê garantias legais aos bebês que se encontram ainda em fase de gestação, assegurando a eles o direito à vida, à saúde e a políticas públicas que garantam o seu desenvolvimento.
De Goiás, dois deputados federais se destacam na bancada evangélica: os tucanos João Campos e Fábio Sousa. O primeiro, que também é delegado de polícia e integra a “bancada da bala”, afirma que a “Lei Geral das Religiões” se trata de um projeto importante por seguir na linha da regulamentação e consolidação de princípios constitucionais relacionados às religiões do País.
Além disso, João Campos ressalta que a lei avança nas áreas da cultura e arte no âmbito religioso, além de estabelecer um tratamento igualitário no pondo de vista de direito a todas as manifestações religiosas. “O que importa é a regulamentação dos princípios da inviolabilidade da crença e consciência, ampla proteção de cultos, além de trazer o tratamento isonômico a todas as religiões do País”, afirma.
O deputado federal Fábio Sousa diz que a existência da “Concordata Evangélica” é benéfica ao País ao permitir que o Estado de fato resguarde o direito de cada religião se expressar. “É uma legislação boa, apesar de que não deveria existir, se levarmos em consideração sua essência em não existir interferência da igreja no Estado em nenhum sentido”, diz.
Filósofos e sociólogos defendem amplitude no debate da lei na sociedade
Ao contrário dos parlamentares goianos que integram a bancada evangélica, alguns sociólogos, filósofos e estudiosos das religiões ouvidos pelo Jornal Opção defendem que a “Concordata Evangélica” precisa ser melhor debatida no seio da sociedade. Para Alberto da Silva Moreira, doutor em Teologia e em Ciência das Religiões e professor da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), a Constituição já defende o direito da livre consciência religiosa.
Ele afirma que as questões relacionadas à fé não se definem apenas por meio de legislação, havendo a necessidade de um amplo debate junto à sociedade. Alberto Moreira lembra que a Constituição já resguarda algumas facilidades no que se refere a isenções e desobrigações fiscais de igrejas e na fundação de instituições religiosas. “Há uma cobrança enorme por parte da sociedade para que a religião não se torne uma indústria de fazer dinheiro”, diz.
Para o sociólogo e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) Flávio Munhoz Sofiati, é preciso amadurecer a ideia de Estado laico no Brasil. Segundo ele, antes da aprovação de qualquer lei é fundamental que a sociedade participe do debate em relação ao papel de laicidade no Estado brasileiro. Apesar da ampla liberdade religiosa vivenciada atualmente no País, o professor universitário lembra que ainda perduram constrangimentos, por exemplo, aos que professam religiões de matriz africana como o candomblé e a umbanda. “Até que ponto a liberdade religiosa pode interferir nos direitos de grupos sociais que não comungam da mesma perspectiva de determinadas religiões? O Estado também tem que garantir os direitos do que professam fé diferente.”
Para o filósofo, sociólogo e professor da UFG, Nildo Viana, a “Concordata Evangélica” fere a liberdade de pensamento, além de fazer uso de dinheiro público para fins religiosos. Ele afirma que muitas igrejas vêm ao longo dos anos se transformando em organizações empresariais que acabam exercendo grande pressão sobre o Estado. Seguindo seu raciocínio, há instituições religiosas que advogam interesses mercantis que acabam influenciando a vida parlamentar no Brasil. “Sobre a Lei Geral das Religiões a classifico como um atentado ao princípio laico e democrático do Estado.”