Legalidade de projeto de soldados voluntários da PM é posta em cheque
31 maio 2014 às 10h57
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Serviço de Interesse Militar Estadual (Simve) é alvo de críticas e tem sua licitude questionada. Polícia Militar atesta que projeto estaria conforme a Carta Magna brasileira, que prevê as mesmas exceções legais das Forças Armadas aos militares estaduais
Frederico Vitor
Ao transitar pelas ruas de Goiânia, desde os logradouros centrais aos bairros mais periféricos, é possível notar a presença de policiais militares que chamam a atenção por ostentarem coletes verde-limão. Os “verdinhos”, como são conhecidos pela população, fazem o patrulhamento a pé em dupla, no tipo popularmente chamado de “Cosme e Damião”, ou em motocicletas, bicicletas e em carros. São os soldados do Serviço de Interesse Militar Voluntário Estadual (Simve). Desde sua implantação, em janeiro de 2013, eles têm sido alvo de críticas com a alegação de que estariam juridicamente atuando na ilegalidade e usurpando a função de militares concursados.
Primeiramente, deve-se entender o que de fato é o Simve. Quais seriam suas bases legais e de que o programa é constituído. Começando por sua origem e circunstâncias que levaram a sua criação e sua aplicabilidade, a ideia de aproveitar os reservistas das forças armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica) nas corporações militares estaduais — Polícia Militar (PM) e Bombeiros Militar — é antiga e não foi concebida em Goiás. Em 1998, no Distrito Federal, durante o governo do então governador, e hoje senador, Cristovam Buarque (PDT), ventilou-se tal ideia. Porém, por vários motivos, o projeto não teve prosseguimento.
A cada dia, a PM goiana sofre baixas em seu efetivo por aposentadoria do serviço ativo, por exclusão e licenciamento e até mesmo por pedido voluntário de saída da instituição. Em 2011, a corporação goiana dispunha de um efetivo de 12.788 policiais militares. Hoje, o quadro geral está em torno de 14 mil.
Atualmente são 1.260 voluntários do Simve, sendo que a expectativa do comando da PM é que este número suba para 2.600 em atuação em todo o Estado até o final deste ano.
Faltam efetivos
Considerando o efetivo ideal de policial por habitantes — Goiás tem pouco mais de 6 milhões de habitantes — de acordo com a orientação da Organização das Nações Unidas (ONU), que é de um policial para cada 250 habitantes, é constatável que PM goiana não está de acordo com o recomendável, sendo que para se adequar precisaria de um efetivo geral de 24 mil militares. Não é segredo que o Estado não tem condições financeiras e estruturais para que, da noite para o dia, venha a incorporar mais 12 mil policiais militares.
Há todo um processo que gera impactos ao erário. Para cada novo servidor, além dos custos com formação, aquisição de equipamentos e insumos, a previdência estatal ganha mais um beneficiário que vai pesar na folha de pagamento que, atualmente, compromete cerca de 70% do caixa do Estado. Diante disso, há todo o dilema do crescimento da sensação de insegurança generalizada por parte da população. Enquanto a criminalidade e a violência atingem picos inéditos, o poder público deixa a impressão de que está acuado e impotente perante tal crise.
Uma das saídas para contornar a convulsão vivida pela segurança pública em Goiás — que também é uma problemática nacional —, principalmente pelo desfalque de efetivos para o trabalho de policiamento ostensivo, foi o voluntariado de reservistas das forças armadas no reforço das fileiras da PM. Para tal, o Estado de Goiás editou a Lei Estadual nº 17.882, de 27 de dezembro de 2012, que institui o Simve no âmbito da PM e do Corpo de Bombeiros Militar. A lei prevê a contratação de voluntários por período máximo de 33 meses, egressos do serviço militar obrigatório nas Forças Armadas.
O voluntário deve ter no mínimo 18 anos e máximo de 25, possuir o ensino médio completo, ser portador de certificado de dispensa de incorporação nas Forças Armadas e não possuir antecedentes criminais. A seleção fica a cargo do Comando de Administração e Finanças da PM, setor que também cuida da avaliação física, de saúde, psicológica e social do voluntário. Após serem julgados como aptos, o candidato vai para a etapa seguinte que é o treinamento.
Economia ao erário
Durante o curso de formação, os voluntários estaduais recebem uma remuneração de 70% do subsídio do soldado de terceira classe, ou seja, dois salários mínimos (R$ 1.448,00). Mesmo que a prestação deste serviço militar seja temporária, de no máximo 33 meses, eles não escapam aos descontos de natureza previdenciária. Isso ocorre porque eles prestam um serviço público e, segundo a Lei do Serviço Militar Obrigatório, no qual o Simve se pauta — tema que será discutido mais adiante —, a administração não pode deixar de recolher a respectiva tarifa. A contribuição previdenciária garante a subsistência do militar recruta em caso de ocorrência de sinistro em serviço.
Outra questão que deve ser levada em consideração é a pontuação do voluntário caso queira seguir carreira na PM por meio de concurso público. O soldado de terceira classe será pontuado ano a ano, para que se sinta motivado. Assim, o Estado já receberia este recruta nas fileiras dos efetivos, já qualificado e experimentado. Tal situação gera economia na formação do policial de carreira, diminuindo custos aos cofres públicos.
Outro aspecto a ser considerado é o social. A Lei 17.882 que regulamenta o Simve determina em seu Artigo 26, que a PM deve firmar convênio com instituições de ensino superior, pública ou privada, por intermédio da Secretaria de Segurança Pública, para facilitar o acesso do soldado estadual voluntário aos cursos com diplomação de terceiro grau. Tal medida busca qualificar o soldado de terceira classe para o mercado de trabalho futuro, ou para garantir sua participação nos próximos processos seletivos aos quadros efetivos da PM ou do Corpo de Bombeiros.
Atuação limitada
O curso de formação é ministrado na Academia de Polícia Militar (APM) e tem duração de nove meses, sendo divido em duas etapas. A primeira consiste no curso teórico (seis meses de duração) e a segunda é o estágio supervisionado nas organizações policiais militares (batalhões, companhias, pelotões e demais destacamentos) com duração de três meses. A grade curricular segue os moldes do curso de formação de praças efetivos da PM.
Terminado o curso, os soldados de terceira classe terão condições de desenvolver todas as frentes de serviço policial militar, desde trabalhos administrativos até operacionais, mapeados pelo manual do Procedimento Operacional Padrão (POP). Porém, os voluntários estaduais não estarão aptos a desenvolver atividades de patrulhamento tático, ações de operações especiais, de choque, de patrulhamento aéreo, de operações com cães, de segurança e proteção de dignitários, de inteligência, policiamento montado e ações de material ou informações, ambos de natureza controlada. A corporação justifica que tais atividades requerem qualificação e treinamento especializado, sendo vedados aos militares efetivos.
Em suma, por um subsídio bruto de dois salários mínimos, as atividades dos policiais militares voluntários são focadas para o policiamento de proximidade, buscando fortalecer as ações de segurança comunitária mais próxima da comunidade. Eles podem atuar na vigilância de instalações públicas estaduais e recobrimento em zonas prisionais, liberando os policiais de carreira, mais experimentados, para outras missões que requerem mais especialização e expertise.
Constituição Federal assegura o serviço militar voluntário nas Polícias Militares e Corpo de Bombeiros
Os críticos do Simve afirmam que a única forma de ingresso no serviço público é por meio de concurso público ou em cargo em comissão, que no caso de polícia ostensiva é restrito ao trabalho administrativo. O militar, porém, é uma categoria especial e não é servidor público ordinário. A PM goiana entende que, por força da natureza jurídica, assentados nos Artigos 42, 142, 143 e 144 da Constituição Federal (CF) de 1988, os militares estaduais têm garantido as mesmas exceções legais abonadas aos militares federais.
A PM defende que a CF, em seu artigo 144, atribui às polícias militares a caracterização de órgãos de atividade permanente de segurança pública, atuando como força auxiliar e reserva do Exército, cabendo a elas a responsabilidade pelo policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública. Deste modo, a PM se baseou na prerrogativa de que a prestação de serviço militar em suas fileiras não carece de grandes criações ou modificações legais, pois já existe amparo constitucional e legal, por meio do artigo 4º da Lei 4.375/1964, que institui o serviço militar tanto nas forças armadas quanto nas forças auxiliares (PM e Corpo de Bombeiros Militar).
Segundo o parágrafo único do referido artigo: “O serviço prestado nas Polícias Militares, Corpo de Bombeiros e outras corporações encarregadas da segurança pública será considerado de interesse militar. O ingresso nestas corporações dependerá de autorização de autoridade militar competente e será fixada na regulamentação desta Lei”.
O serviço militar na PM goiana não tem caráter obrigatório, mas sim de voluntariado, devendo ser selecionado dentre os dispensados de incorporação, mediante solicitação junto à autoridade militar da Circunscrição do Serviço Militar Obrigatório (CSM) — em Goiânia é a 7ª CSM, localizada na Avenida Paranaíba esquina com a Rua 74, no Centro — em que a força auxiliar deseja recrutar pessoal.
Respaldo constitucional
O Simve foi alvo de estudo de tese científica amplamente discutida e analisada pela Procuradoria Geral do Estado (PGE), membros do Poder Judiciário e Ministério Público (MPGO), além de diversos juristas goianos. Segundo a PM, o projeto não é nenhuma inovação, consiste apenas na regulamentação da Lei Federal 4.375/1964 (Lei do Serviço Militar), o que nada mais é do que a continuidade da prestação do serviço militar nas fileiras das forças militares estaduais.
A PM goiana considera que o Simve não é inconstitucional e não fere as normas legais pelo fato de que a corporação de Goiás, segundo o parágrafo 6ª do Artigo 144 da CF, é uma força auxiliar e reserva do Exército. Partindo do conhecimento de que o Exército é uma força armada e que não é possível existir uma reserva apartada do corpo principal, a PM goiana integra, indiretamente, as fileiras da Força Terrestre. Sendo assim, os policiais militares são formadores de reserva em sua essência.
O comando da PM sustenta que o Simve oferece aos jovens a oportunidade de formação pessoal e profissional para o pleno desenvolvimento da cidadania, além de criar mecanismos que estimulem a cultura de segurança pública, com participação do jovem nas atividades de segurança. Como já tratado, os voluntários estaduais recebem um auxílio financeiro para custeio de suas despesas e estudos. Em contrapartida, estes soldados atuam em serviços de policiamento comunitário, mais próximo da população, recobrimento e saturação.
Diante do índice de aumento da criminalidade, que dentre outras causas, se deve a sensação de impunidade, gerada pela arcaica legislação penal, a presença do policial fardado inibiria a incidência de delitos. A PM defende que onde há o braço forte do Estado o crime não se instala. Pensando nisso, o Simve viria suprir a necessidade de efetivo para o patrulhamento em caráter de prevenção, ou seja, o policiamento de quarteirão, comunitário, de saturação em grandes zonas comerciais e em áreas críticas.
“Simve é um projeto de governo, não de Estado”
Vozes opositoras ao projeto também têm ressonância na Assembleia Legislativa, e uma delas é de um oficial da PM, o deputado estadual Major Araújo, líder do PRP no Parlamento goiano. De acordo com o parlamentar a forma de admissão dos soldados de terceira classe que compõem o Simve é ilegal, pois a função de policial militar deve ser de carreira, ou seja, admitidos por meio de concurso público. Ele admite que os voluntários estaduais trouxeram reforço ao efetivo da corporação goiana, entretanto entende que o programa é uma política de governo, não de Estado. “Um simples decreto do Executivo de contenção de despesa faz com que este projeto desapareça.”
Na semana passada, o Ministério Público de Goiás (MP-GO) propôs uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) contra a lei que instituiu o Simve na PM e no Corpo de Bombeiros. Conforme requerido na Adin, fica proibido que integrantes do Simve desempenhem “policiamento ostensivo ou qualquer outra atividade militar”.
Segundo o procurador-geral de Justiça, Lauro Machado Nogueira, a nova legislação nacional de regras gerais sobre o serviço militar voluntário delimita que a modalidade seja instituída apenas para serviços administrativos e auxiliares de saúde e de defesa civil. Dessa maneira, “o porte ou o uso de armas de fogo e o exercício do poder de polícia” se constituiriam em atividades exclusivas para agentes cujo processo de seleção se dê por meio de concurso público.
“Policiamento ostensivo, com efeito, não passa de atividade militar, a qual, sendo função policial, exige do agente público que a desempenhe o pertencimento aos quadros efetivos (membro da carreira) da Polícia Militar, selecionado, desse modo, em concurso público”, explicou o procurador-geral. A ação também questiona o trecho da Lei Estadual nº 17.882/2012 referente às “atividades militares de competência estadual”, uma vez que, conforme a Constituição Federal, é atribuição da União estabelecer as normas gerais de organização das PMs e Corpos de Bombeiros.
Outra polêmica envolvendo a PM e o Simve foi o último concurso para soldado efetivo nos quais vários candidatos entraram no cadastro de reserva. Eles acusam a PM de colocarem os Simve nas funções que eles, os concursados, deveriam exercer. Em forma de protesto, os candidatos acamparam em frente do Palácio Pedro Ludovico Teixeira na esperança de serem atendidos pelo governo.
De acordo com o coronel Edson Costa Araújo, superintendente executivo da Secretaria de Segurança Pública, as vagas para soldado de segunda classe, no qual os candidatos que estão protestando prestaram o certame, e o Simve, são institutos totalmente diferentes. Ou seja, os que entraram no cadastro de reserva devem aguardar uma vaga para soldado de segunda classe, que são militares efetivos de carreira. Os voluntários estaduais preenchem vaga de soldados de terceira classe, em caráter temporário. “As vagas não se misturam. O Simve que entra na corporação não está tomando o lugar de ninguém.”
Opinião – O Simve é apenas o começo de uma grande reforma
A iniciativa de aproveitar os reservistas das forças armadas, treinados e disciplinados pela Marinha, Exército e Aeronáutica, no trabalho de segurança pública é louvável e positiva. Muito destes militares que foram dispensados do serviço militar possuem extenso conhecimento de ações táticas, manuseio e manutenção de armamentos pesados. Antes aproveitar tal expertise a favor da sociedade no serviço voluntário policial militar do que no crime organizado, que a cada dia vem assediando e recrutando tal mão de obra qualificada para ações criminosas especializadas e violentas.
Um dos motivos da mudança da Brigada de Operações Especiais do Exército do Rio de Janeiro para Goiânia foi justamente à tentativa de livrar os reservistas do assédio do crime organizado da região Sudeste. Após engajados na Força Terrestre, os recrutas eram altamente treinados em variados tipos de combate, inclusive táticas e combate urbano. Posteriormente, dispensados do serviço militar, estes combatentes acabavam cooptados por organizações criminosas instaladas nas comunidades carentes dos morros cariocas. Para que esta problemática não venha ocorrer em Goiás o Simve serve como porta de entrada para que estes voluntários treinados pelas forças armadas venham a somar no esforço de enfrentamento ao crime em Goiás.
O Simve não pode ser encarado como a resolução de todos os problemas do policiamento presencial. A questão é muito mais complexa e profunda. Para que o cidadão brasileiro possa desfrutar de plena tranquilidade e segurança, são necessárias várias reformas. O sistema federativo brasileiro não foi contemplativo com os Estados. A União ficou com a deliberação de todo o regramento da segurança pública, diferentemente de outros países, em que as regras criminais são específicas de cada região, Estado, província ou departamento.
Exemplo clássico são os Estados Unidos, onde cada um de seus 50 Estados possui seus próprios códigos penais e de segurança pública. No Brasil, quem legisla sobre as normas penais é o Congresso Nacional. Todo o sistema judicial, de execução penal e policial, é regrado por Brasília. A execução e responsabilidade pela segurança pública são dos Estados e do Distrito Federal. Desta forma, os entes federativos devem operar o sistema que a União desenhou por meio da Constituição Federal de 1988, no Artigo 144.
Os municípios, talvez a parte mais interessada pela segurança pública, pelo fato da vida da maioria dos cidadãos brasileiros se desenrolarem nas cidades, estão praticamente livres de qualquer responsabilidade nesta área. Mesmo assim, as municipalidades possuem uma parcela importante na segurança pública, que é a de polícia administrativa, exercida pelas guardas municipais que, nos últimos tempos, estão se armando e tendo seus papéis rediscutidos.
Apesar de a União arrecadar mais de 70% de todos os tributos do País, o governo federal não tem responsabilidade direta com a segurança pública. As unidades federativas praticamente não recebem nenhum auxílio para viabilizar suas policias. Não há, em esfera federal, nenhum órgão responsável pela coordenação da segurança pública. Cada Estado tem seus bancos de dados e informações que não são compartilhados entre si. Ou seja, cada governo estadual funciona como uma ilha. Até mesmo o Ministério da Justiça tem dificuldades de divulgar estatísticas nacionais de criminalidade por conta da recusa ou pela descoordenação das secretarias estaduais de segurança pública.
O governo federal têm 39 ministérios, porém nenhum é dedicado exclusivamente à segurança pública. Se houvesse uma pasta específica, provavelmente, poderia viabilizar políticas macro para a área. Começando com a padronização de bancos de dados e pela regulamentação do fluxo de informação entre as instituições policiais. As discussões em torno do estabelecimento de um piso nacional para os policiais militares e civis poderia ser levada a cabo com mais consistência. Atualmente, existe um Conselho Nacional de Segurança Pública no Brasil, porém o órgão é criticado por ter pouca funcionalidade e quase nenhum resultado.
Outro gargalo que muito atrapalha o bom funcionamento da segurança pública no Brasil são os intermináveis problemas com o sistema judiciário e de execução penal. O arcaico sistema legal — o Código Penal e todas as leis criminais — é outro peso que atrasa o avanço desta área. O clamor público é por leis mais duras, mas na realidade o País precisa rever o seu arcabouço jurídico e definir um sistema mais claro para a sociedade, no sentido de que possa atuar de forma pedagógica. Enquanto isso, a impressão de impunidade no Brasil é demasiada e causa sensação de que aqui, a prática do crime, por mais nefasta que seja, fica sem punição.