‘João de Deus foi preso; a nossa cidade está livre’, diz morador de Abadiânia
10 setembro 2023 às 00h01
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“A nossa cidade está liberta da maldição graças a Deus. Esse homem (João de Deus) dividia a cidade. Tinha o lado dele e o lado do povo. Ninguém podia colocar nenhum comércio do lado de lá da BR-060 porque ele não deixava. Hoje a cidade é uma só. João de Deus, que não tem nada de Deus, foi preso e a cidade está livre”, foi o que disse Adão de Souza, 54 anos, pedreiro e morador de Abadiânia desde o ano de 1987.
A cidade de Abadiânia, na região leste do Estado de Goiás, faz parte do território integrado de desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno. Até o ano de 2018, a sua população estimada era de 19.614 habitantes. A cidade é conhecida internacionalmente por causa da casa Dom Inácio de Loyola, onde João Teixeira de Faria, mais conhecido como João de Deus, realizava suas cirurgias sem anestesias.
A cidade, no auge da casa Dom Inácio, chegava a receber cerca de 4 mil turistas por semana. Eram pessoas que vinham de outras cidades, estados e países para receber tratamento para qualquer tipo de problema de saúde. João de Deus era conhecido pelos milagres que suas cirurgias espirituais operavam. A economia da cidade era pujante, e grande parte dos moradores trabalhavam na casa e nos muitos hotéis e pousadas que ficavam lotados durante todo o ano.
A parte da cidade onde fica a antiga casa de João de Deus é formada por pousadas e hotéis, que, logo após as denúncias de abuso sexual e lavagem de dinheiro contra o médium, faliram. Os turistas desapareceram, deixando a economia do município em estado crítico e muitos desempregados. Na época, boa parte da imprensa conjecturava que a Abadiânia se tornaria uma cidade fantasma. Porém, ao que parece, o município vai pelo caminho contrário. A cidade está se reerguendo surpreendentemente rápido. A reportagem do Jornal Opção foi até a cidade para verificar o que tem acontecido na cidade de Abadiânia e questionar se a população sente falta de João de Deus.
Período de Crise
A aposentada Célia de Mello Oliveira, 69 anos, conta que veio para Abadiânia pela primeira vez em 1994 trazendo a sua mãe para uma consulta com o médium. Célia é natural de Campo Grande (MS) e no ano de 2000 se mudou definitivamente para Abadiânia, após uma intervenção que fez com João de Deus para curar uma cólica interminável e ter constatado o milagre da cura.
A aposentada relata que percebeu que o ramo das pousadas seria uma boa alternativa e logo providenciou um espaço com a intenção de alugar quartos para os turistas que chegavam atrás de uma consulta com o médium. “Eu tinha uma pequena pousada e uma lojinha de roupas que era de onde eu tirava meu sustento. Era muito trabalhoso, mas era gratificante. Graças a Deus não faltava hospedes, o movimento se dava o ano todo. Infelizmente quando surgiram as denúncias, os turistas desapareceram e tive que entregar o local da pousada”, narrou a aposentada com tristeza.
Dona Célia ainda informou que, com o bom andamento financeiro, havia comprado um veículo financiado, que pagava com o faturamento da pousada. Mas com o fechamento, precisou decidir se comia ou pagava as prestações do carro. A aposentada disse que, mesmo com todas as acusações que pesam contra João de Deus, não o julga e se sente grata pelo que fez por ela e seu neto, que supostamente foi curado da síndrome de West pelas intervenções espirituais do médium.
“Quem sou eu para julgá-lo? Se é culpado, para isso existe a justiça”, disse. A aposentada afirmou que é frequentadora da casa Dom Inácio de Loyola, que faz parte das correntes e que muita gente ainda procura o estabelecimento em busca de um milagre.
Jonas dos Santos* é dono de uma pousada com 20 quartos na rua Francisca Teixeira Damas, que dá acesso à casa Dom Inácio de Loyola. O local é uma rua fantasma. O empresário conta que, antes das denúncias, era muito difícil encontrar uma vaga ociosa, não somente em sua pousada mas em todas da cidade. “A maioria dos donos de pousada alugavam os espaços e, não suportando a falta de clientes, foram embora. Muitos locais se tornaram clínicas de recuperação”, disse.
Jonas revelou que perdeu seu faturamento e teve que correr atrás de outro meio para sustentar a si e a sua avó. “Inicialmente fazíamos jantinha e entregávamos na cidade. Isso durou três meses, depois fomos para Goianésia e em seguida para Anápolis, onde trabalho hoje.”
Recuperação
Jonas afirmou que, com a inesperada recuperação econômica, o hotel foi reaberto em abril deste ano e, em geral, funciona com metade dos quartos ocupados. Os clientes vêm em função das novas industrias e do lago Corumbá Quatro. “Hoje Abadiânia anda com suas próprias pernas, não depende de um médium para sobreviver. Estamos nos reerguendo devagar. Estou alugando metade dos quartos o que já é muito bom”, assegura.
Arthur de Souza Sales Prado, 17 anos, estudante, trabalhava em uma farmácia localizada às margens da BR 060 que tinha como principais clientes os turistas que vinham se consultar com o médium. Com a prisão de João de Deus, o faturamento do comércio caiu e os cinco funcionários foram dispensados. O jovem; entretanto, conseguiu um novo emprego e afirma que a cidade está voltando ao normal. “Depois de um tempo as coisas estão melhorando. Aqui no meu novo trabalho fazemos promoções e descontos para atrair novos clientes e está dando certo. Estou feliz novamente”, fala com sorriso.
Adão, o personagem que dá início a esta reportagem, afirmou que o Lago de Corumbá Quatro ajuda a fortalecer a economia local. O pedreiro garante que não falta trabalho para os profissionais da construção civil nos diversos condomínios que se instalaram nas proximidades do lago. Há ainda as lanchonetes e restaurantes que precisam de empregados nas proximidades do Corumbá.
Cicatrizes
A proprietária de um açougue, que não quis ser identificada, aceitou falar sobre João de Deus. Como ela, se percebe que grande parte da população tem medo ou receio de falar sobre o assunto. A comerciante compartilha da opinião do pedreiro Adão: “Estamos libertos, foi a melhor coisa que nos aconteceu, aquilo era uma maldição, a cidade era pesada espiritualmente”, revela.
A mulher relatou que teve uma queda enorme em seu faturamento com a prisão de João de Deus, a ponto de quase fechar o açougue. “Meus clientes eram moradores da cidade que trabalhavam na própria casa, nos hotéis e pousadas. Todo mundo aqui dependia do João de Deus. Foi um ano de angústia, mas que já está superado. A cidade está vivendo por conta própria, João de Deus, já era.”
Esse também é o pensamento de funcionários da Câmara municipal ouvidos pela reportagem, mas que também preferem não ser identificados, por medo de retaliação. “Sabemos que João de Deus é muito poderoso”, disse um deles. “A sensação que temos é de liberdade. Realmente, as pessoas achavam que a cidade iria acabar, mas o que estamos vendo é exatamente o contrário, nossa querida cidade está renascendo sem a dependência dele”, asseguraram.
Edney José de Freitas, 47 anos, é proprietário de um comércio no ramo de medicamentos localizado à beira da BR 060. Edney expressa que seu comércio era totalmente dependente dos turistas que vinham para a cidade em busca do médium. “Antes, eu tinha muitos empregados, meu faturamento era maravilhoso. Meu comércio era o primeiro para quem vinha do bairro onde fica a casa, isso me colocava em vantagem”, argumentou.
O comerciante afirmou que, após o acontecido, viu seus clientes sumirem e sua receita cair drasticamente a ponto de ter que demitir todos os funcionários e ficar sozinho na loja. “Confesso que pensei em vender e mudar de ramo, mas com a chegada de algumas indústrias e a movimentação do Lago de Corumbá, a economia voltou a girar na cidade. Hoje já estou pensando em contratar uns dois colaboradores. “
O comerciante J.R.S., que quis ter apenas suas iniciais identificadas, é dono de uma pequena mercearia na cidade. Ele explica que por pouco não fechou as portas. “De um dia para o outro vi as coisas desandarem. Fiquei sem chão, com muitas contas para pagar e minha renda sumir. Quase entrei em depressão. Acho que, o que me sustentou foi a fé em Deus. Graças a Deus sempre tive meu nome limpo e consegui alguns empréstimos que, aliás, ainda estou pagando.”
O comerciante disse: “O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem ao amanhecer”, fazendo uma citação da bíblia. O homem ressaltou que esse período de “noite” durou menos de um ano e logo as coisas começaram a melhorar novamente com a vinda de empresas para o município. “Posso dizer que a economia da cidade está se reerguendo de forma inesperada. Admito que não esperava que fosse tão rápido assim”, descreve, com satisfação.
Geilsa é moradora de Abadiânia há 23 anos, casada e tem três filhos. A dona de casa trabalhava em uma pousada e conta que assim que surgiram as denúncias, o movimento da casa foi a zero e, consequentemente, todos os trabalhadores perderam o emprego. “Fiquei um ano desempregada, foi muito difícil, pois estava vivendo de ajuda de algumas pessoas da igreja, amigos e da prefeitura. Mas já consegui me colocar no mercado de trabalho e hoje estou trabalhando novamente, mas em outro ramo. “
Empresas
A indústria de beneficiamento de feijão das marcas Kicaldo, Dona Dê e Tio Chico chegou em Abadiânia dois anos após a prisão de João de Deus. O Gestor de TI da empresa, Rusivell Pereira dos Santos, esclareceu que inicialmente a empresa tinha a intenção de se instalar no município de Goiânia, porém, acabaram escolhendo Abadiânia devido à localização geográfica e também pela proximidade com a Matriz que fica em Brasília.
Questionado se houve algum incentivo por parte da administração municipal e estadual, Rusivell foi enfático em dizer que não. “Houve apenas apoio, mas nenhum incentivo financeiro”. A indústria gera 60 empregos, sendo que 50 são de moradores da cidade, outros dez vieram de outras unidades. Para Rusivell, a chegada da empresa na cidade, com certeza tem ajudado a alavancar a economia local, pois os colaboradores compram no comércio local.
Mais uma grande indústria que inaugurou as atividades no município, no dia 18 de abril deste ano, foi a Brasilit. A marca francesa de materiais de construção civil pertence ao grupo Saint-Gobain e chegou à Abadiânia com um projeto de fabricação de mais de 100 mil toneladas de produtos em fibrocimento ao ano. A planta gerou cerca de 200 novos postos de trabalho entre posições diretas e indiretas.
Saulo Verissimo, médico veterinário, é sócio proprietário da empresa de Produtos Alimentícios Dona Gê, que atua no ramo de frangos caipira e abatedouro de aves e está na cidade desde 2008. Saulo expôs que, apesar de Abadiânia ser um mercado consumidor dos produtos da fábrica, a economia da empresa não sentiu a falta dos turistas por ter clientes em muitos outros locais.
Saulo Veríssimo avaliou que Abadiânia se reinventou a partir da saída do João de Deus. “A cidade era dependente dele para tudo e, com esse episódio, o município acordou e viu que tem potencial para muito mais”, observou. O empresário lembrou que a indústria está em processo de expansão e grande parte dos novos funcionários serão do gênero feminino, que podem chegar a 30 vagas diretas e mais 100 indiretas.
Prefeito
José Diniz (PP) é o prefeito da cidade de Abadiânia pelo segundo mandato. O prefeito pontua que estava à frente da gestão municipal durante o período conturbado da prisão do médium. Diniz assumiu em 2017, e logo no ano seguinte, se deparou com a cidade praticamente desesperada, com aproximadamente três mil pessoas que dormiram empregados e acordaram desempregadas.
“Como se não bastasse, dois anos depois veio a pandemia de Covid-19, outro problema de grande proporção”, diz José Diniz. “Contudo, eu afirmo que a pandemia não causou tantos estragos econômicos para Abadiânia quanto João de Deus. Claro que a Covid-19 foi trágica para o mundo todo do ponto de vista humanitário e de saúde, mas, analisando puramente o aspecto financeiro, a denúncia contra o médium nos pegou de surpresa e causou um clima de incertezas enorme”, afirma.
Diniz diz que, dos 68 hotéis e pousadas, apenas oito estão funcionando atualmente. “A cidade era muito dependente da casa Dom Inácio de Loyola. A estrutura foi feita para atendê-lo e, como essa estrutura foi danificada, todo o restante sentiu o abalo”, diz. Vendo o desespero das pessoas, o prefeito conta que criou de imediato 100 cargos comissionados. “Fui duramente criticado, mas era o que eu poderia fazer naquele momento para tentar ajudar. “
Logo em seguida, ações mais abrangentes foram feitas pela administração para trazer mais receita para a prefeitura e melhorar a vida das pessoas, segundo Diniz. “De imediato regularizamos a orla do Lago Corumbá Quatro. Para se ter uma ideia, somente a arrecadação com o Imposto Sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) já superam e muito o que arrecadávamos com as unidades que davam assistência à casa Dom Inácio.”
José Diniz revela que quem mais gerava receitas para o município não eram empreendimentos ligados à casa, mas os taxistas, que recolhiam o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) – “aliás, eram os únicos que recolhiam”, afirma o prefeito. “Não sei porque, mas o João não queria que ninguém pagasse os impostos para a prefeitura. Tínhamos cerca de 100 taxistas, que foram reduzidos a dez em atividade hoje”.
O prefeito acredita que João de Deus tinha influência direta com as gestões anteriores da cidade. Diniz não soube dizer qual o Produto Interno Bruto (PIB) do município atualmente, contudo. Faz uma correlação ao valor que é repassado duodécimo para a Câmara Municipal, que de acordo com ele, em 2017 era de R$ 78 mil, e agora está R$ 394 mil. Ou seja, quase cinco vezes mais.
Outro fator importante para impulsionar a economia local foi regularizar as orlas da GO-474 e BR-060, para incentivar as indústrias a se instalar em Abadiânia. “Antes, uma indústria só poderia comprar uma área às margens dessas rodovias no módulo rural que é de 20 mil metros. Com a aprovação da nova lei, nós baixamos o limite para 2 mil metros. Isso atraiu as indústrias que vieram para cá nos últimos três anos.”
Outra razão pela qual a economia voltou mais forte é a aprovação pela Assembleia Legislativa de Goiás (Alego) da lei que concede incentivos fiscais ao Norte e Nordeste do Estado. “Sabendo disso, fui atrás desse desconto para nosso município, mesmo sabendo que não fazemos parte da região contemplada. Entretanto, consegui convencer os parlamentares da nossa necessidade e Abadiânia foi inserida nesse contexto.”
“Por conta desse incentivo, chegaram dez novas empresas no município”, diz o prefeito. “Seis já estão funcionando e as outras quatro entrarão em funcionamento até o final do ano. Temos a perspectiva da criação de três mil empregos diretos, que coincidentemente, é o mesmo número das pessoas que ficaram desempregadas em 2018”, lembrou o prefeito. “Não posso deixar de mencionar o Escarpas Eco Parque que está funcionando no lago gerando vários empregos diretos e indiretos”, cita.
José Diniz concorda com os moradores da cidade quando dizem que João de Deus já é um caso superado e ficou no passado. Todavia, o prefeito diz não se esquecer de que enquanto funcionou a casa Dom Inácio de Loyola foi muito importante para Abadiânia. Diniz destaca que Abadiânia foi referência no turismo internacional por quase 40 anos, tudo isso dado a movimentação da casa.
José Diniz, ressalta que o segredo para a superação foi planejamento e muito trabalho, contando com o que tinha na cidade. “Quando eu assumi, já tínhamos o Lago, a BR-060 e eu assumi para fazer nossa cidade se desenvolver e crescer. Quero reiterar que todos esses projetos para crescimento econômico já estavam em minha pauta de governo, independente do ocorrido com João de Deus. Porém não fico feliz com o que aconteceu, pelo contrário, Já imaginou como seria nosso município se a casa estive em pelo funcionamento como antes? Não tenho dúvidas que hoje seriamos a cidade mais próspera do Brasil.”
Governo do Estado
Joel Santana Braga, secretário de Industria e Comércio de Goiás, destaca a cooperação do estado para a instalação dessas empresas em Abadiânia, com os incentivos fiscais, como o desconto de ICMS. “Trabalhamos arduamente junto com o prefeito para minimizar o sofrimento das pessoas e repor a mão de obra perdida. “
Joel evidencia a regularização dos terrenos ao redor do lago e o asfalto da GO-474 que liga a cidade ao lago e aos condomínios. O secretário garante que as indústrias turísticas e náutica estão revolucionando a economia de Abadiânia e, que a proximidade com Brasília, Goiânia e Anápolis, tem colaborado para esse boom imobiliário que está acontecendo no município, além de estar localizado em ponto estratégico geograficamente para a logística.
*Nome alterado a pedido do entrevistado
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