Em meio ao avanço do número de descrentes, católicos e evangélicos, cada qual de seu jeito, buscam se organizar em estratégias para arrebanhar fiéis

Estande da Vinha FM na Gospel Fair: marketing religioso direcionado a evangélicos
Estande da Vinha FM na Gospel Fair: marketing religioso direcionado a evangélicos | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

Elder Dias

Até algumas décadas atrás, misturar religião com marketing seria como tentar unir dois mundos incompatíveis: o sagrado, de um lado, e o profano, do outro. Água e óleo. Uma visão que — como se observa hoje — não poderia sobreviver às nuances do pós-modernismo do século 21. A não ser parando no tempo ou se isolando no espaço, é impraticável viver a religiosidade sem usar técnicas e tecnologias disponíveis atualmente. Os movimentos religiosos tradicionais que não se adequaram à contemporaneidade ficaram para trás e estão minguando, o que é uma constatação que se faz nas igrejas e é confirmada por quem se preocupa um pouco em estudar o fenômeno — como aponta, por exemplo, o Fórum Pew para a Religião e a Vida Pública, na pesquisa “A Paisagem Religiosa Global”.

Os estudos revelam também que quem vai no sentido oposto ao que poderíamos tradicionalismo no “modus operandi” de evangelizar está ganhando pontos: de modo formal ou não, há quem valorize as inovações, aposte nelas e tente extrair o máximo de seu potencial. Nesse sentido, um marketing poderoso pode fazer milagres. E, no caso, nem se pode dizer que isso seja uma figura de linguagem. “O marketing faz parte do próprio contexto bíblico. A figura de Jesus tem todo um histórico de marketing em torno de si, embora não com o uso desse termo: basta ver as profecias sobre sua vinda, muito antes de ela ocorrer. Essa espera pela chegada do Messias que as Escrituras anunciavam é o maior ‘teaser’ da história, porque gerou uma grande expectativa durante séculos”, explica o pastor Mauro Rezende, fundador da igreja Aviva e que também trabalha com o mercado religioso há 15 anos, como músico — participou da gravação de nove CDs, sendo três próprios — e empreendedor.

Pastor Mauro Rezende, da Igreja Aviva, idealizador da Gospel Fair: “O marketing é bíblico”
Pastor Mauro Rezende, da Igreja Aviva, idealizador da Gospel Fair: “O marketing é bíblico”

Mauro diz que a própria história pessoal de Jesus revela ações que se aplicariam ao marketing. “A Bíblia relata a anunciação de seu nascimento pelo anjo Gabriel. E durante sua vida, Jesus elabora o sucesso da própria pregação e do anúncio de sua palavra, como ao enviar seus discípulos de dois em dois e ao preparar sua entrada em Jerusalém”, diz. Um outro exemplo disso poderia ser os locais escolhidos para pregar a Boa-Nova, como fica bem claro no Sermão da Montanha. O pastor vê, então, esse “publicar, anunciar, declarar” do Evangelho como algo totalmente bíblico. “E isso é fazer marketing.”

Ele tem uma metáfora interessante para definir o que é o marketing. “Primeiramente, nada é mau em si. É como a faca. A mesma faca que corta alimentos e sacia a fome de alguém também pode ser usada para matar”, diz Mauro. Na função de empreendedor, o pastor idealizou uma feira voltada ao público evangélico. Nascia aí a 1ª edição da Gospel Fair, evento que, além de expor produtos e serviços cristãos, foi elaborado com o objetivo de qualificar os “players” do ramo na região, para que busquem se posicionar de forma mais assertiva no mercado religioso, “em plena expansão”. Movida a minicursos, rodadas de negócios e workshops, a feira é anunciada como a maior feira evangélica do Centro-Oeste e o slogan “Do coração do Brasil para o coração da Igreja”. Começou na quinta-feira, 10, e se encerra neste domingo, 13.

De fato, é um evento agregador, com o apoio e a presença de várias igrejas evangélicas (Luz Para os Povos, Fonte da Vida, Sara Nossa Terra, denominações da Igreja Batista, vários ministérios da Assembleia de Deus, entre outras). A estrutura, montada no Centro de Cultura e Convenções de Goiânia, não perde para nenhuma feira de grande porte: tem 140 estandes, divididos em cinco segmentos (editoras e livrarias; gravadoras, produtoras e artistas; vestuário e serviços; veículos de comunicação; e ONGs/Oscips). O espaço conta também com brinquedoteca, área para autógrafos, palco para pequenos shows e “lounges” (salas de estar) para descanso.

O esquema de trabalho montado é bastante profissionalizado: os três sócios — além de Mauro, Douglas Balmant e Jeferson Baick compõem o trio à frente da Spock Promoções, promotora da Gospel Fair — dividem as funções (diretorias geral, operacional e comercial), sua empresa banca os gastos com limpeza e segurança e os serviços de montagem e desmontagem da estrutura física, bem como a assessoria de imprensa, foram terceirizados.

Além de ser a base de seus idealizadores, Goiânia foi escolhida para sediar a feira pelo potencial de mercado para o segmento, já que é a capital de um Estado em que mais de 1,6 milhão de pessoas — equivalente a 30% da população — se declaram evangélicas. A expectativa da organização era de 100 mil visitantes nos quatro dias, número alicerçado no potencial de público evangélico na cidade e na vinda de caravanas de outras cidades e Estados.

É uma aposta total na capacidade de organização guiada por estratégias de marketing, como admite Mauro Rezende. “O planejamento é com certeza um dos recursos para a evangelização. É preciso ser ‘alto-falante’ para alcançar mais pessoas, para ampliar nossa voz. E o marketing, com certeza, é fundamental nesse sentido.”

Na Igreja Católica, a força do voluntarismo
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Multidão de jovens no Adorai de 2013: evento católico que cresce a cada ano conta com trabalho de jovens e famílias | Foto: Rodrigo Roncolato/Adorai

O segmento evangélico se preocupa bastante com a profissionalização do marketing em busca de mais fiéis — o que pode ser compreendido até sob uma perspectiva histórica, já que, desde seu surgimento, com a Reforma Protestante, protagonizada por Martinho Lutero, o cristianismo não católico se deu a missão de falar de Deus fora de uma estrutura hierárquica e alcançar o maior número de fiéis. Pode-se dizer que é uma evangelização de abordagem mais incisiva.

A Igreja Católica sabe que perdeu tempo e fiéis no século 20. Também sabe que isso se deveu tanto à maior secularização quanto ao distanciamento entre clero e leigos. Com o Concílio Vaticano II, na década de 60, há uma reaproximação com os fiéis, o que se efetivou, no Brasil, por meio das comunidades eclesiais de base (CEBs), por um lado, e de movimentos neopentecostais, como a Renovação Caris­má­tica Católica (RCC). As CEBs fo­ram importantes principalmente para marcar a posição da Igreja no pe­ríodo da ditadura militar, mas, a partir do papado de João Paulo II, co­meçaram a perder terreno. A RCC, ao contrário, cresce e hoje é a grande responsável por grande parte da midiatização da Igreja no Brasil, com concessões de rádio e TV.

Padre Marcos Rogério: contato direto e ajuda da web para divulgar festival | Foto: Rodrigo Roncolato/Adorai
Padre Marcos Rogério: contato direto e ajuda da web para divulgar festival | Foto: Rodrigo Roncolato/Adorai

No geral, porém, a Igreja Católica não tem tanto compromisso com uma evangelização sistemática e planejada como os evangélicos. Sem um objetivo tão pragmático de conquistar novos adeptos, se há o que se possa chamar de “marketing”, ele é baseado mais no voluntarismo e em uma intuição que, por vezes, dá muito certo. É o caso do padre Marcos Rogério de Oliveira, da ordem São Pedro ad Vincula e pároco da Paróquia Nossa Senhora da Assunção, região norte de Goiânia. Suas celebrações e sua atuação à frente da igreja têm atraído multidões, especialmente às quartas-feiras, quando na Missa da Família, e em uma sexta-feira por mês, na Missa da Misericórdia, ponto alto do trabalho do sacerdote. Próximo à igreja, as ruas do Conjunto Itatiaia, sede da paróquia, são tomadas por carros com placas de diversos municípios goianos, do Distrito Federal, de Minas Gerais e outros Estados.

Cantor — já lançou três CDs, um deles com orações —, o padre usa a música como um de seus principais meios de evangelização durante missas e pregações. Jovem, tem um dom especial para envolver as pessoas em atividades na paróquia, o que o leva a ter centenas de pessoas voluntárias nos eventos, para os quais geralmente traz atrações artísticas, e não apenas da cena religiosa — já estiveram na paróquia nomes como Sérgio Reis, Almir Sater e Cristiano Araújo, entre outros.

Festival Adorai

O principal marco do calendário da paróquia é o Adorai, um festival de música católica anual que a paróquia promove desde 2011. A próxima edição será em 31 de maio, mas os preparativos já começaram desde o ano passado, ao se encerrar o evento anterior. É este o segredo: trabalho contínuo e “tudo vai crescendo naturalmente”, diz o padre Marcos Rogério.

A evolução se mostra no porte dos locais escolhidos para abrigar o evento: nos dois primeiros anos (2011 e 2012), o Adorai ocorreu em estrutura montada no próprio estacionamento da paróquia; no ano passado, o festival passou para a sede do Clube dos Bancários, no mesmo bairro; e, este ano, será realizado no Goiânia Arena, espaço para até 15 mil pessoas. “Mas vamos estabelecer um teto de 12 mil, para que todos fiquem bem acomodados”, completa Marcos Rogério. No ano passado, a estimativa foi de 8 mil presentes ao show.

Ao todo, o padre contabiliza 250 pessoas diretamente envolvidas, jovens e famílias inteiras. O curioso é que não há nenhuma equipe especializada. “O que há é um envolvimento das pessoas por constatarem a seriedade do que é realizado.” Uma conquista importante é o apoio cada vez maior da Arqui­diocese de Goiânia — todo evento de porte promovido em uma paróquia deve ser do conhecimento e ter o consentimento do bispo, no caso, dom Washington Cruz.

A Igreja Católica tem uma estrutura hierárquica e uma tradição que exigem essa prudência, conforme relata o padre Marcos Rogério. Aos poucos, com o crescimento do evento, há uma adesão maior de padres e grupos de outras paróquias. De algo que começou de forma tímida, hoje, o evento já pode ser considerado supraparoquial, por ser difundido por núcleos da própria estrutura da arquidiocese como o setor de Juventude. “No fim, todos veem que isso soma para a Igreja”, acredita.

Apesar de não ter uma estrutura profissionalizada, o trabalho de divulgação é intenso, tanto por parte do padre como da equipe de comunicação. “Não contratamos ninguém para trabalhar com marketing, mas visitamos os grupos de jovens e de oração e eu, pessoalmente, vou até os meios de comunicação”, revela o padre. O evento já está com inserções em rádios locais e o objetivo é conseguir divulgação também nas TVs, “não em forma de comerciais, mas principalmente na programação”. A webrádio da paróquia também tem um amplo horário para divulgar o festival.

Mas a aposta mais acessível, barata e eficaz é a internet. O Adorai tem uma homepage bem estruturada, mas a divulgação maior do evento ocorre por meio das redes sociais. Sua fan page (página institucional) no Facebook já tem mais de 11 mil curtidas. As atrações musicais — cantores Diego Fernandes e Tony Allysson e os grupos Anjos de Resgate e Missionário Shalom — multiplicam o raio de divulgação pelas redes, por seus perfis no Twitter, no YouTube e no próprio Facebook. É por esse meio que os fãs-clubes (sim, muitos cantores e grupos de música religiosa têm fãs-clubes consolidados e atuantes) acompanham notícias e programam viagens para assistir aos shows. “Vamos ter gente de todas as partes de Goiás, são mais de 20 caravanas já confirmadas”, conta o padre.

Análise – A saída para a fé talvez seja consumir Deus

A década de 90 trouxe um fato que revolucionou o marketing religioso: o padre Marcelo Rossi ultrapassou os limites do gueto da “música de igreja” e suas canções — embora ele cante muito menos do que chame o público para fazer isso no lugar dele — viraram hits nas rádios e o levaram à televisão. Tornou-se estrela global, figurinha constante do “Domingão do Faustão”, “Fantástico” e em programas da apresentadora Xuxa. Outros cantores católicos e evangélicos seguiram o caminho aberto e se conheceu a música religiosa, antes circunscrita a um campo reduzido, como fenômeno de massa. No meio evangélico, Aline Barros, Regis Danese, Oficina G3, Diante do Trono; já na Igreja Católica, entre os padres, o hoje já veterano Marcelo Rossi, o galã (e também um dos mais posicionados) Fábio de Melo, Antônio Maria e Reginaldo Manzotti.

Dessa forma, exercer a fé cristã hoje é também, em parte e para muitos — especialmente das novas gerações —, receber orações pelo celular, assistir a pregações no YouTube, comprar DVDs de cantores gospel e curtir páginas de padres e pastores no Facebook. Não é por acaso que é o segmento que nada contra a corrente no rio do mercado fonográfico, que, no geral, ainda não aprendeu a lidar com os tempos de internet e segue para desaguar em águas turvas.

Líderes religiosos se dão bem também no mercado de livros. Na semana passada, na lista dos mais vendidos, o padre Marcelo Rossi estava na 2ª posição entre os livros, com seu “Kairós”, e em 3º com o CD “Já Deu Tudo Certo”, que, a propósito, foi o mais vendido de 2013.

O sucesso nessas áreas impulsionou um marketing também voltado a todos os produtos cristãos: hoje há sites especializados nos mais diversos produtos, de camisetas a pacotes turísticos temáticos. As diversas emissoras religiosas, além de tantos programas de evangelização em horários de outras TVs e rádios, multiplicam o raio de ação das estratégias desse mercado.

Obviamente, será preciso um maior distanciamento histórico e temporal para entender onde tudo isso vai dar: que tipo de religiosidade terá sido criado com o advento das estratégias de mercado e da comunicação online. Analisan­do o momento atual daqui a algumas décadas é puro exercício de futurologia. O que dá para efetivamente afirmar é que o marketing está sendo uma arma importante para recuperar a religiosidade — ou minimizar suas perdas. Diante de um mundo cada vez mais consumista, a saída para preservar a fé talvez seja consumir Deus.