Estudos de estatística com dados hospitalares sobre síndrome respiratória aguda grave (SRAG) mostram que, na verdade, óbitos no País já passaram da casa do meio milhão

Uma bomba nuclear acionada por acidente cai sobre a cidade de Feira de Santana, a segunda mais populosa da Bahia. Não há sobreviventes: toda a população, de mais de 600 mil habitantes, é dizimada.

Claro, obviamente – embora nos tempos atuais nunca seja exagero advertir –, que essa passagem trata-se de ficção. Serve como um precário exercício de analogia ao que seria a tragédia que vivemos, ela se concentrada em um único município da Nação. É em torno desse absurdo número de mortes que o Brasil pode chegar ao fim do primeiro semestre, no balanço da pandemia – e, se tomarmos em consideração todos os óbitos por síndrome respiratória aguda grave (SRAG) não contabilizados como Covid-19, certamente assim será.

Na verdade, levada em conta essa estatística, o Brasil ultrapassou 400 mil mortos pela catástrofe sanitária já faz algum tempo. Em 24 de março, uma reportagem do “Valor Econômico” baseada em dados do Observatório da Covid-19, mostrava que as mortes por SRAG, desde o início da pandemia, já ultrapassavam, naquela data, o número que se alcançou oficialmente apenas agora.

Para ter ideia de como devem ser analisados óbitos com esse registro, no ano inteiro de 2019 – antes, portanto, da pandemia chegar ao Brasil –, foram ao todo 5.342 mortes por SRAG. Apenas em uma semana de abril de 2021 foram 86.651 – observe-se que este número é mais do que o total de óbitos registrados por Covid no mês inteiro. De todas as pessoas com SRAG e resultado laboratorial para algum vírus na pandemia, mais de 99% acabaram diagnosticadas com Covid. Em outras palavras, diagnóstico de SRAG é praticamente diagnóstico de Covid-19 desde que se iniciou a pandemia por aqui.

Ocorre que confirmar SRAG como Covid-19 depende de confirmação de exames e de informações burocráticas e cartoriais. E tudo leva a crer que muitas vítimas, dezenas ou até centenas de milhares de pessoas, não tiveram nem terão sua causa mortis registrada como Covid-19. É exatamente o contrário do que propagam os negacionistas que acreditam em caixões com pedras em vez de corpos e mortes por acidente de trânsito transformadas em estatísticas do novo coronavírus: há muito mais gente morrendo por Sars-CoV-2 do que aparecem nos registros oficiais.

Agora, no fim de abril, quando esse número oficial de fato passou a casa tenebrosa de 400 mil óbitos, os dados de subnotificação já estão jogando a tragédia para outro patamar. Novas estimativas, em duas análises distintas e baseadas em registros hospitalares, indicam que as vítimas, na verdade, já são mais de meio milhão de brasileiros.

Uma das pesquisas foi liderada por Leonardo Bastos, estatístico e pesquisador em saúde pública do Programa de Computação Científica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Em entrevista à BBC Brasil, o cientista chegou ao cálculo de 514 mil óbitos.

Outra análise, feita pelo engenheiro Miguel Buelta, professor da Universidade de São Paulo (USP), lotado na Escola Politécnica, chega a um número ainda maior: 540 mil compatriotas já morreram por coronavírus.

No meio desse caos, um dado positivo é que a subnotificação do Brasil, entre os países com mais casos e mortes na pandemia, é, apesar de tudo, menor do que em muitos outros. Em março, o Ministério da Saúde mexicano admitiu que, com a revisão dos dados, o número de mortes causadas pelo coronavírus no país seria 60% maior do que o relatado até então. Antes disso, em dezembro, na Rússia a situação revelada foi ainda mais grave: a revisão de dados sobre a Covid-19 no país mostrava um número de mortes (186 mil) que seria maior do que o triplo (55 mil) registrado até então.

Brasil x Estados Unidos
Neste ano, os Estados Unidos viraram exemplo de como combater uma pandemia: máscara, distanciamento, higiene e vacinação em massa. Mesmo assim, por enquanto continuam a ser o País com mais mortes e se aproximam dos 600 mil registros – o “por enquanto” deve-se ao que está no final do texto.

Em números oficiais, por lá houve cerca de 60 mil mortes entre 1º de março e 30 de abril (pouco mais de 10% do total desde o início das mortes); no mesmo período, no Brasil registrou quase 150 mil óbitos (quase 40% da soma). Isso dá uma mostra de como anda a evolução da doença nos dois países mais populosos da América – e do tamanho do problema que ainda temos.

Números absolutos, porém, não podem ser isolados: é preciso relativizá-los e proporcionalizá-los. A população estadunidense é de quase 330 milhões. O número de mortes por Covid-19 nesse período dos meses de março e abril ficaria em 182 por milhão de habitantes. O Brasil tem população de 211 milhões. Na divisão do número de óbitos em 60 dias na razão por milhão de habitantes, o número vai a 711. Ou seja, no mesmo período, morreram proporcionalmente quase quatro vezes mais brasileiros (a razão fica em 3,90) do que estadunidenses na pandemia.

A grande disponibilidade de doses e tipos de vacina fizeram a diferença para que os Estados Unidos saíssem de uma grave situação em janeiro para uma perspectiva de volta à normalidade em breve | Foto: Marco Verch

Se tomarmos apenas abril, a situação fica ainda pior. Os 82.401 óbitos oficiais por aqui totalizariam 390,5 mortes por milhão, enquanto nos EUA houve 22.723 mortes – com os registros ficando em 69,2 por milhão. Tirando novamente a razão entre as duas médias, o valor ficaria em 5,64. Falando com mais palavras e menos algarismos: no mês passado, apenas com os dados publicados, a pandemia matou entre cinco e seis vezes mais no Brasil do que nos Estados Unidos.

Por lá, porém, com a população vacinada devidamente, a tendência é de queda cada vez mais acentuada nos óbitos. Ou seja, menos gente vai morrer a cada semana. A chegada do verão e especialmente a data da independência – o 4 de Julho – devem trazer a mais genuína esperança de rotina voltando ao normal. Se não houver alguma intercorrência, as aglomerações por lá serão cada vez menos temidas.

E o que é a esperança por aqui? É de outro nível, infelizmente, bem longe do cenário de saída da pandemia. O que as pessoas torcem é para que haja um paradoxo, a “estabilização do caos”: que as mortes não aumentem mais, que não voltem a pressionar o sistema de saúde como em março e abril.

Essa estabilização, hoje, se daria em um platô muito alto – a média móvel de mortes está em torno de 2,5 mil. Isso significaria 17,5 mil mortes por semana, ou 70 mil por mês. Embora os dados objetivos mostrem uma redução da curva de óbitos nas últimas semanas, com a segunda onda parecendo caminhar para o fim, é preciso ter em conta que o comércio reabriu e que as aglomerações voltaram a se intensificar. O que poderia ser um antídoto para uma reaceleração do processo mórbido, o Plano Nacional de Imunização (PNI), não deslancha, com a dependência de insumos da China e da Índia. Mais do que isso, as novas variantes são sempre uma ameaça de nova disparada. Por isso, especialistas não descartam o risco de uma terceira onda chegar bem mais rapidamente do que o intervalo da primeira para a segunda.

Na hipótese de manter o platô, com a queda vertiginosa das mortes nos Estados Unidos, o Brasil poderia assumir o indesejado primeiro lugar das mortes na pandemia em quatro meses. É o que ninguém por aqui espera, mas necessário de levar em consideração, até para que se possa tomar medidas.