A insanidade do Guarujá comprova: internet mata
10 maio 2014 às 14h13
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No mundo “high tech” conectado à barbárie, a informação se processa com tal velocidade que é compartilhada antes de passar pelo cérebro
Acabo de ouvir em uma rádio um dos apresentadores ler a pergunta de uma ouvinte sobre se realmente a presidente Dilma Rousseff aprovou (no caso, sancionou) uma bolsa de R$ 2 mil para profissionais do sexo. O chamado Bolsa Prostituição é um dos hoaxes (histórias falsas espalhadas via internet) mais populares atualmente.
E a que se propõe um hoax? Por que alguém resolve espalhar uma mentira? Os motivos são variados e podem ser explicados com a psicanálise de Freud ou o pragmatismo amoral de Maquiavel. É algo para satisfazer o ego ou para detonar um rival. Um hoax pode até ser divertido, mas, por desinformar, nunca é positivo. Pior: grande parte deles é por natureza maligna, por conduzir ao chamado linchamento moral.
Há cerca de dois meses, fiz uma matéria sobre o tema no Jornal Opção. Citei Lula e Rachel Sheherazade no título, por ser duas das pessoas mais detonadas pelos hoaxes nas redes sociais. O ex-presidente é vítima de boatos principalmente com o uso do nome de seu filho, que teria ficado bilionário durante seu governo e adquirido aviões e fazendas no Pará. Nada comprovado, mas tudo espalhado. A jornalista do SBT, que virou estrela depois de produzir editoriais conservadores e∕ou reacionários, virou funcionária fantasma de um tribunal da Paraíba, onde trabalhava antes de se mudar para São Paulo. Tudo mentira.
Todos têm o direito de não gostar do que ela diz, mas é preciso garantir até o fim o direito de ela dizer qualquer coisa. Para os excessos, existem a lei e os processos.
Por ironia, o linchamento moral que ela sofre nas redes ganhou muito mais força após ela produzir um dos editoriais mais “sem noção” da história dos telejornais, ao ser no mínimo condescendente com os espancadores de um adolescente acusado de furto e amarrado a um poste no Rio de Janeiro.
Disse Sheherazade: “O marginalzinho amarrado ao poste era tão inocente que em vez de prestar queixa contra seus agressores, preferiu fugir, antes que ele mesmo acabasse preso. É que a ficha do sujeito – ladrão conhecido na região – está mais suja do que pau de galinheiro. Num país que ostenta incríveis 26 assassinatos a cada 100 mil habitantes, arquiva mais de 80% de inquéritos de homicídio e sofre de violência endêmica, a atitude dos “vingadores” é até compreensível. O Estado é omisso. A polícia, desmoralizada. A Justiça é falha. O que resta ao cidadão de bem, que, ainda por cima, foi desarmado? Se defender, claro! O contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite. E aos defensores dos Direitos Humanos, que se apiedaram do marginalzinho no poste, lanço uma campanha: Façam um favor ao Brasil. Adote um bandido!”
Qualquer “repórter” policial diz isso em programas com a tríade sangue-armas-algemas. O impacto da mesma coisa dita no horário nobre é totalmente diferente, muito maior, e por isso mereceria resposta forte dos órgãos reguladores.
“Homem Primata”
Colocada essa questão, fica difícil saber onde começa e onde termina a responsabilidade da informação em casos como o da barbárie contra a dona de casa do Guarujá (por total coincidência, ouvindo o disco “Cabeça Dinossauro”, clássico dos Titãs, toca agora “Homem Primata”). O fato é que um retrato falado de uma acusada de sequestrar crianças para rituais de magia negra foi postado por um blog da cidade e os moradores deduziram que coincidia com a aparência de Fabiane Maria de Jesus, uma dona de casa de 33 anos, moradora do bairro de Morrinhos. Resolveram matá-la.
Que tipo de coautoria têm os responsáveis pelo blog? Qual a influência que o discurso desastroso de Rachel Sheherazade causou em algumas das pessoas que lincharam Fabiane? Não dá para saber.
O fato é que hoje a informação corre muito, muito rápido. E às vezes o que corre é uma informação errada. Já era possível a mídia linchar moralmente um inocente antes da internet, como ocorreu no caso Escola Base. O problema é que as redes sociais viralizam as informações de tal forma que em vários casos não é possível fazer muita coisa: o mal já está feito. Como convencer aquela senhora ouvinte do programa da rádio de que não existe o Bolsa Prostituição?
O triste destino de Fabiane se deve à união de duas eras da história da humanidade: o mundo “high tech” conectado com a barbárie. A informação se processa com tal velocidade que é compartilhada antes de passar pelo cérebro. Assim, do linchamento moral ao linchamento propriamente dito, bastaram um simulacro de foto, um boato, uns insanos comunicando e dezenas de outros executando.