Processo de impedimento da presidente Dilma Rousseff pode até ser legal juridicamente, mas não apaga a arquitetura política que existe por trás dele

O erro de Dilma Rousseff foi não ter tato político o suficiente para saber que, sozinha, não se consegue governar | Foto: Lula Marques/Agência PT
O erro de Dilma Rousseff foi não ter tato político o suficiente para saber que, sozinha, não se consegue governar | Foto: Lula Marques/Agência PT

Marcos Nunes Carreiro

Usar as palavras “im­pe­achment” e “golpe” na mesma frase soa estranho, uma vez que o processo do impedimento da presidente Dilma Rousseff (PT) é legal. O trâmite está sendo acompanhado de perto pelo Supremo Tribunal Fede­ral (STF), logo, se algo estivesse fora do que determina a Constituição Federal brasileira, os ministros do Supremo já teriam se pronunciado a respeito.

Por que falar em golpe, então? Bem, não se trata de um golpe jurídico, mas político. Voltemos um pouco os olhos para a votação que ocorreu na Câmara dos Deputados. A fala do primeiro-secretário da Câmara, deputado Beto Mansur (PRB-SP), resume bem o argumento:

“Pela segunda vez, estou votando o impeachment de um presidente e a presidente Dilma vai receber o impeachment desta Casa porque é incompetente administrativamente e porque não tem relação política com o Congresso Nacional. Nós precisamos recuperar o Brasil e tenho certeza de que, com Michel Temer, vamos fazer isso”.

A fala do deputado é clara em dois pontos:

1) Se o País vivesse tempos de bonança econômica, como os que experimentou nos últimos 15 anos, com crime responsabilidade ou não, Dilma se manteria no cargo.

2) Se a presidente tivesse habilidades políticas, ela conseguiria se manter no cargo. Bastaria ter um bom relacionamento com deputados e senadores. Isso, de fato, não é um das aptidões de Dilma. Ela é exatamente aquilo que falaram ser lá nas eleições de 2010: uma técnica.

Falemos do segundo ponto primeiro: por melhor técnica que Dilma fosse, ela não conseguiria governar sem política. Ela tinha o melhor político ao seu lado — Lula — e, por isso, conseguiu fazer um governo razoável no primeiro mandato. Seu primeiro erro foi achar que conseguiria governar sem seu tutor. Ao tentar apagar a memória de Lula no governo, Dilma perdeu a base, perdeu o pouco do Congresso que tinha nas mãos.

Perdendo o Congresso, Dilma também perdeu poder de barganha. Sejamos francos: é assim que funciona a democracia brasileira. Sem poder de troca e com um desafeto forte na Câmara dos De­pu­tados — o réu Eduardo Cunha (PMDB) —, a pre­sidente ficou à deriva. Veja que o Congresso fez “corpo mole” para aprovar as medidas enviadas pe­lo governo e que visavam amenizar a crise no País.

Arquitetou-se, assim, o golpe. Golpe não acontece apenas baseado em ilegalidades. Um golpe pode ser legal, como este está sendo. Por que não? Dilma cometeu crime de responsabilidade? Ao entender do STF, sim. Não por corrupção, mas pelas pedaladas fiscais e pelos decretos legislativos, que são tipificados como crimes pelo artigo 85 da Constituição e pela Lei nº 1.079, de abril de 1950.

Abriremos um parêntese aqui: (Poderia até questionar esse entendimento, visto que “pedaladas” na execução orçamentária são prática comum. Deveriam abrir, então, processo de impedimento contra praticamente todos os governadores e prefeitos do País. Ora, se um presidente, que tem em mãos o dinheiro da União, precisa mexer na contabilidade para atender aos interesses do País, imagine governadores e prefeitos, que são extremamente prejudicados pela falha da divisão dos recursos proposta pelo atual Pacto Federativo.

Dificilmente as contas de um governador sobreviveriam caso os tribunais de contas dos estados mudassem seu entendimento sobre pedaladas fiscais, tal como fez o Tribunal de Contas da União (TCU) no fim do ano passado. Será que os ex-presidentes Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva não “pedalaram”? Pedalaram.

Veja a fala do relator da Comissão Especial de Impeachment da Câmara, deputado Jovair Arantes (PTB-GO), sobre os ex-presidentes FHC e Lula, em entrevista ao Jornal Opção: “Quando eles davam uma ‘pedaladinha’, era um mês, no máximo. Corriam lá e tampavam.” Ora, as “pedaladinhas” não eram crime? Não. As pedaladas de Dilma, em 2014, também não eram. Segundo quem? O TCU.

Para o TCU, as pedaladas fiscais, até o fim do ano passado, eram legais. A mudança de entendimento por parte do Tribunal é que tornou todo o atual processo de impeachment possível. E tudo isso tem a ver com o momento político-econômico pelo qual passa o País.

A questão aqui é: FHC e Lula tinham um bom relacionamento com o Congresso e não deixaram o País afundar em uma crise. Então, temos o seguinte: é um golpe político, arquitetado por aqueles que querem subir ao poder? Sim. Porém, é um golpe necessário. Dilma já não tem condições de governar e, talvez, a única forma de mantê-la no poder seria por meios que extrapolam os trâmites legais, o que é inaceitável para um País que luta contra a corrupção.

As hordas tucanas e peemedebistas, e que assumirão o poder após a saída de Dilma, também es­tão envolvidas em corrupção? Praticamente todos os partidos com representatividade no Congresso estão — e a Operação Lava Jato deixou isso bastante claro. Mas eles conseguirão governar e, assim, colocar o País de volta na trilha do desenvolvimento econômico. Dessa forma, podemos fechar o parêntese).

Verdade seja dita: a grande parte da população acha que Dilma está sendo afastada do cargo por envolvimento com corrupção. Quem está discutindo a questão dos crimes de responsabilidades são os políticos, os intelectuais e os formadores de opinião. Sobre a corrupção, não há indícios da participação de Dilma nos esquemas encabeçados por seu partido. Fora isos, tirar o PT do poder será uma solução paliativa.

O erro da presidente foi político-administrativo. Se ela, como sugeriu o deputado Beto Mansur, tivesse um bom relacionamento com o Con­gresso, o pedido de impeachment não seria aprovado na Câmara.

Mais: se o País não estivesse no meio de uma grave crise econômica, o crime de responsabilidade de Dilma receberia “vistas grossas”, como recebeu em 2014 pelo TCU e pelo Congresso. É preciso ter o mínimo de franqueza intelectual para admitir isso. Todos os deputados e senadores acreditam que, se não houvesse crise, não haveria impeachment; com crime ou sem crime. Ponto.

E por quê? Ora, para a grande parte da população o que importa é ter emprego. No primeiro trimestre de 2016, segundo o IBGE, a taxa de desemprego chegou a 10,9%. As pessoas são práticas e querem a queda das taxas de desemprego, a retomada do poder de compra e a organização do mercado. Sem isso, o País para, empresas fecham e pessoas, sobretudo as mais pobres, ficam sem renda. Num país capitalista, isso não pode acontecer. Afinal, o que move um país como o Brasil é o capital.

Para discutir algo fora disso, estaremos questionando o sistema e as políticas econômicas. Ideologica­mente, acho que o capitalismo tem mais falhas que pontos positivos. Contudo, é necessário encontrar um sistema melhor e ele ainda não nos foi apresentado. De qualquer forma, mesmo que tivesse, a mudança para outro sistema é lenta. Demoraria décadas para que a cultura assimilasse uma alteração desse porte.

Então, é necessário ser pragmático, por mais que isso fira nossas ideologias. A solução, infelizmente, pede a saída da presidente; e, afinal, defendê-la como pessoa não é o mesmo que defender seu governo. Porém, é preciso ser franco: sim, se trata de um golpe; necessário, mas golpe.