Ideologia desumaniza vítima de linchamento e a transforma em troféu político
10 maio 2014 às 13h05
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A convivência cada vez mais frequente entre criminosos e famílias de bem é que torna as periferias disponíveis para toda sorte de violências — desde a menina queimada num ônibus em São Luís até o linchamento da dona de casa em Guarujá
José Maria e Silva
Naquele tempo, as mulheres eram preciosas como diamantes e se não guardassem um espesso silêncio sob os longos véus, furtando-se aos olhares masculinos, eram lapidadas pelas mãos dos fariseus, que não economizavam pedras em seu afã de aplicar a lei. Jesus, sob o cerco cada vez mais intenso dos soldados, recolhia-se todas as tardes ao Monte das Oliveiras, onde passava as noites. Pela manhã, seguido pela gente humilde à espera de milagres, descia outra vez até o templo e se punha a desafiar os sacerdotes, pregando uma nova lei em forma de parábolas, que aos olhos das autoridades pareciam subversivas. Sua prisão era iminente e os fariseus queriam apressá-la, tentando enredar Jesus em contradições, que pudessem indispô-lo com os romanos.
Por isso, quando escribas e fariseus lhe trouxeram a mulher que a tradição iria chamar de Madalena, Jesus sequer levantou os olhos para ver seu rosto transtornado, com as lágrimas secas nos olhos aflitos e o cabelo desgrenhado sob o véu roto – continuou a escrever na terra com o dedo, como se antecipasse ali seu testamento, às vésperas da prisão e da morte, que tinha como certas. “Mestre, essa mulher foi surpreendida em adultério e pela lei de Moisés deve ser apedrejada”, relatou um escriba sem esconder a ironia do título de “mestre” que normalmente reservava aos sacerdotes do templo. Sem nada dizer, Jesus continuou escrevendo no chão, pois as palavras têm raízes.
Como os fariseus insistissem, Jesus, segundo nos conta João, interrompeu momentaneamente o paciente plantio de palavras na terra e, com a voz mansa, diferente dos brados com que expulsou os vendilhões do templo, disse-lhes firmemente: “Aquele que dentre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra”. Tendo dito essas palavras, que haveriam de ressoar pelos séculos afora, o Mestre retomou sua lavoura íntima, que não foi registrada por nenhum escriba e nunca se soube o que dizia o evangelho segundo o próprio Cristo, escrito na terra, naquela longínqua manhã em Jerusalém. Então, conforme nos relata João com indisfarçável orgulho, os escribas e fariseus, acusados pela própria consciência, foram-se retirando um a um, dos mais velhos aos mais jovens, até que restassem apenas Jesus e a mulher. E ele disse a ela: “Vai e não peque mais!”
“Senhor Jesus dos desvalidos! Dizei-me, Senhor Jesus, se é loucura, se é verdade, tanto horror perante os ceús” – diria o poeta Castro Alves, relembrando a história bíblica, se estivesse no Guarujá, no litoral paulista, no início da noite de sábado, 3, quando a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, foi espancada por um grupo de pessoas no bairro onde morava, sob a acusação infundada de que sequestrava crianças para imolá-las em rituais de magia negra. Sem um Cristo para envergonhar seus algozes, a mulher foi socorrida ainda com vida pela polícia, sob as vaias dos linchadores, mas morreu na manhã de segunda-feira, 5, em função dos traumatismos que sofreu por todo o corpo. Estima-se que dezenas de pessoas participaram do linchamento.
Esse crime estarreceu o País, mas sua trágica dimensão humana foi sequestrada pela ideologia, que desumanizou a vítima para transformá-la num troféu político. A esquerda, com a retórica cavilosa que jamais usou para condenar os criminosos que estupram e queimam pessoas vivas, apressou-se em acusar a jornalista Rachel Sheherazade, do SBT, de ser a autora intelectual do linchamento. O deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), em artigo publicado no portal da revista “Carta Capital” na terça-feira, 6, foi um dos que recorreram a essa tática e voltou a atacar a apresentadora, lembrando, com orgulho, a perseguição que seu partido move contra ela, devido ao comentário infeliz sobre o ladrão amarrado ao poste.
Ora, é possível escrever um livro com as dimensões da “Suma Teológica” de Santo Tomás de Aquino apenas com o escárnio produzido por intelectuais de esquerda sobre os cadáveres de pessoas inocentes a pretexto de defender supostos direitos humanos de criminosos, que, na verdade, não passam de regalias inaceitáveis. Um exemplo são as visitas íntimas até para menores de idade “em conflito com a lei” que cumprem medidas socioeducativas – um eufemismo para latrocidas e estupradores adolescentes que desfrutam de férias custeadas pelo Estado, com o acompanhamento de psicólogo, nutricionista, odontólogo, médico, enfermeira, farmacêutico, pedagogo, professor de educação física e agentes socioeducativos, pois é esta a formação da equipe multidisciplinar da Fundação Casa, em São Paulo, onde está internado o estuprador e assassino serial Roberto Aparecido Alves Cardoso, o Champinha.
Quando a Lei 12.594 foi sancionada pela presidente Dilma Rousseff, em 18 de janeiro de 2012, instituindo o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo e estabelecendo definitivamente as visitas íntimas para menores criminosos, a então presidente da Fundação Casa, em São Paulo, Berenice Maria Giannella, mestre em Direito Processual Penal pela Faculdade Direito da USP, disse à reportagem do “Estadão” que não temia a ocorrência de um “baby boom” nas unidades da Fundação Casa: “Isso pode haver aqui dentro ou lá fora. O que temos de fazer é reforçar as informações sobre os riscos de uma gravidez indesejada” – afirmou, como se fosse dever do cidadão brasileiro custear motel estatal para os menores criminosos produzirem futuros dependentes da Bolsa-Família e da Bolsa-Detento.
Oferecendo a outra face aos bandidos
E o que é mais grave: a despeito do atendimento vip que recebem da Justiça brasileira, os adolescentes assassinos nem mesmo cumprem os risíveis três anos de internação previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente – com direito à reavaliação da medida a cada seis meses. Como muitos juízes e promotores fazem o papel de advogados desses menores, eles acabam ganhando a liberdade numa das duas reavaliações anuais a que têm direito, raramente cumprindo os três anos de internação. Isso explica o caso do adolescente N.A.R., de 17 anos, da cidade de Agudos, no interior de São Paulo, que, aos 16 anos, em março de 2013, matou com 16 facadas um empresário de 56 anos com quem mantinha relações sexuais. Apenas um ano depois, em 27 de março último, ele foi posto em liberdade pelo Juizado de Menores e, dois dias depois, matou o menor Igor Alves, de 15 anos.
Esse é apenas um entre dezenas, talvez centenas de casos do gênero que desmentem de modo cabal os defensores do Estatuto da Criança e do Adolescente e provam que essa lei é uma das mais danosas já produzidas na história do Parlamento e da Justiça nacionais. Com uma nauseante desfaçatez, que ignora solenemente os fatos e escarnece do sofrimento das vítimas, os defensores do ECA insistem em dizer que ele é mais rigoroso com os menores infratores do que o Código Penal em relação aos criminosos adultos. Ora, se isso fosse verdade, o menor de 16 anos que assassinou o amante com 16 facadas não teria sido posto nas ruas apenas um ano depois do crime, para matar novamente, sem precisar cumprir sequer os três anos de boa vida das “medidas socioeducativas”, cercado de babás estatais.
Agora, pasmem: a medida socioeducativa de apenas um ano que o menor assassino N.A.R cumpria na Fundação Casa de Iaras, no interior de São Paulo, era em regime de semiliberdade, com permissão para visitar seus familiares em Agudos nos finais de semana. Foi justamente durante essas visitas – patrocinadas pela Justiça, com graves riscos para a sociedade – que o menor assassino começou a namorar Igor, um adolescente de apenas 15 anos (convém lembrar), que, com muito mais razão, deveria ser resguardado pelo ECA desse tipo de convivência daninha. Infelizmente não foi e morreu nas mãos do assombroso menor assassino (este, sim, protegido pelo ECA), que lhe desferiu diversas facadas na região do pescoço e pisoteou sem piedade sua cabeça, contando depois aos policiais que planejava matar outros homossexuais com quem pretendia se relacionar.
Diante desse monstruoso Champinha gay; do menor que pôs fogo na dentista; do outro menor que ajudou a arrastar o menino João Hélio; daquele que matou o estudante Victor Hugo para lhe roubar o celular; dos menores que queimaram a menina Ana Clara dentro de um ônibus em São Luís; do rico e esquecido menor que assassinou a médica Valéria Frota em Goiânia; daquele que, dois dias antes de completar 18 anos, ajudou a pôr fogo no casal Luiz Fernando (17 anos) e Mayara (15 anos) em Anicuns, no interior de Goiás, estuprando antes a menina; daquele outro que, às vésperas de completar 18 anos, aproveitou a menoridade penal para matar a namorada de 15 anos com um tiro, enquanto filmava o crime e o exibia para os amigos; enfim, diante de milhares de criminosos menores e adultos que têm como esporte ceifar cruelmente a vida alheia, é um escárnio exigir que os familiares das vítimas de assassinatos, sequestros e estupros continuem sendo obrigados por lei a oferecer a outra face para os bandidos.
Estado é assistencialista em excesso
É justamente a impunidade que o Estado brasileiro, por via legal, garante aos criminosos a principal responsável pelos linchamentos, como o que vitimou Fabiane Maria de Jesus, em Guarujá, no litoral paulista. Mas enganam-se os Sakamotos, os Boechats, os Wyllys e outros porta-vozes da esquerda que, de modo sutil ou escancarado, atribuem os linchamentos à classe média branca, cristã e burguesa, que, instigada pela jornalista Rachel Sheherazade, estaria estimulando o extermínio de jovens negros nas periferias, com a anuência da polícia, numa espécie de limpeza étnica. Fabiane, aliás, era branca e estava com o cabelo louro no dia em que foi linchada em meio à floresta de canelas negras e pardas que se vê no vídeo. O que motiva os linchamentos é justamente a ausência do Estado – não o Estado assistencialista, que há muito já é onipresente nas favelas brasileiras, mas o Estado legal, que reconhece direitos, cobra deveres e detém o monopólio da violência como instrumento da Justiça.
Em 9 de fevereiro último, no artigo em que defendi a apresentadora Rachel Sheherazade da sanha dos que querem linchá-la moralmente, afirmei que ela “errou ao não criticar, com a devida veemência, a atitude das pessoas que amarraram o rapaz no poste”, pois, mesmo sendo compreensível que as pessoas queiram fazer justiça com as próprias mãos, não é desejável que ajam dessa forma. Disse ainda que “o desejo de vingança é profundamente humano e quem não o sente no fundo do coração é porque foi desumanizado pelos defensores dos direitos humanos e já não consegue perceber a diferença entre a morte de um inseto e a de uma pessoa”. A maioria dos linchamentos que ocorrem com regularidade no Brasil – muito antes do comentário da apresentadora do SBT – é pautada, em parte, por essa sede de justiça insatisfeita que facilmente se deteriora em vingança, desencadeando a selvageria das multidões.
Entre as vítimas mais comuns de linchamento estão os estupradores e assassinos de crianças. Em abril de 2010, em Pombos, no agreste pernambucano, um menino de 13 anos foi estuprado e morto. Seu assassino e estuprador, de 23 anos, foi esfaqueado, apedrejado e atropelado pela multidão enfurecida, restando à polícia recolher o cadáver abandonado na entrada da cidade. Em agosto de 2012, no distrito de Castelo dos Sonhos, em Altamira, no interior do Pará, um agricultor de 32 anos, armado de facão, depois de agredir a esposa, que conseguiu fugir com o filho de 8 anos, degolou um cão, uma galinha e o próprio filho de 4 anos, bebendo em seguida o sangue do cachorro. Depois de preso em flagrante, cerca de 200 moradores invadiram a delegacia da cidade durante a madrugada, renderam os agentes, arrastaram o infanticida para a rua, espancaram-no com paus e ferros e, por fim, incendiaram seu corpo. Conta-se que até um carro de propaganda circulou pelas ruas convocando a população para o linchamento.
A impunidade segundo as classes sociais
No interior do Nordeste, até pela precariedade das forças policiais, que não conseguem conter as multidões, casos assim não são raros e ocorreram muitos linchamentos nos últimos anos, apesar de passarem despercebidos pela grande imprensa – o que impede a nação de ter a dimensão exata da violência selvagem que grassa em suas entranhas. No Rio de Janeiro do narcotráfico e das milícias, entre os milhares de desaparecidos anualmente, muitos devem ter sido mortos em linchamento nas favelas, longe dos olhos da imprensa e das autoridades. Estudiosos do fenômeno, como o sociólogo Sérgio Adorno, livre-docente da USP, tendem a ver nos linchamentos uma expressão da vida comunitária que atualiza a antiga vingança familiar, transposta para a segurança da multidão anônima, que escapa ao crivo das consciências individuais e dificulta a punição por parte do Estado.
O mais provável, entretanto, é que os linchamentos atuais sejam facilitados não pelo espírito de comunidade, mas justamente pela presença impune de criminosos no seio dessas populações – não só os criminosos-vítimas, mas também os criminosos-algozes, geralmente beneficiados pela Justiça. A cidade de Guarujá, que integra a violenta Baixada Santista, é um dos focos do crime organizado. Desde os atentados promovidos pelo PCC, em 2006, a cidade se tornou um dos palcos de assassinatos de policiais no interior. E Morrinhos, o local onde Fabiane foi linchada, é um dos bairros mais pobres de Guarujá, formado por quatro etapas de moradias, com um vasto currículo de ocorrências policiais, geralmente devido ao tráfico de drogas, muito presente na comunidade. Um dos linchadores da dona de casa, por exemplo, um rapaz de 19 anos que já é pai de um filho de 4 anos, tem passagem pela polícia por tráfico de drogas.
Nas classes altas da sociedade brasileira, impunidade é sinônimo de corrupção. É com os corruptos que as classes abastadas são obrigadas a conviver cotidianamente, naturalizando o suborno, a propina e o desvio de recursos como algo intrínseco à vida nacional. Quando vocês virem um jornalista pontificando na imprensa sobre corrupção, como fez Elio Gaspari em artigo no “New York Times” sobre os baderneiros de junho, lembrem-se que ele, como qualquer outro jornalista, está cansado de apertar a mão de corruptos e até almoça com eles. É assim ou muda de profissão. Isso vale não só para profissionais como jornalistas, advogados e engenheiros, obrigados a trabalhar diretamente com o setor público e a conviver com políticos, mas também para várias outras categorias profissionais ou empresariais, pois o Estado brasileiro é onipresente na vida social e, onde há Estado, há um corrupto de plantão.
Já nas classes baixas, a impunidade é de outra ordem. Como os pobres não participam dos grandes negócios da sociedade e só convivem com o Estado na condição de dependentes de seus serviços, a impunidade entre eles se associa ao crime comum, como assaltos, agressões e assassinatos. Sobretudo depois que o Brasil afrouxou as leis penais e pratica uma política de inclusão social de assassinos, latrocidas e estupradores, que transitam o tempo todo entre o presídio e as comunidades periféricas, com o patrocínio do próprio Estado, por meio de regalias penais como regime semiaberto, saídas temporárias, visitas semanais e outras formas de convívio permanente entre criminosos e famílias pobres – com gravíssimos prejuízos para a moral dessas últimas.
Quantas crianças da favela não ganham doces do “tio” simpático, que seis vezes por ano sai da cadeia para visitar seus parentes, no Dia dos Pais, Dia das Mães, Natal etc., mesmo tendo sido preso por matar uma pessoa durante um assalto? O que os olhos não veem o coração não sente, diz o provérbio. Como a criança não viu o assalto, o sangue, a vítima caída, o “tio” fugindo, mesmo quando fica sabendo do caso, a imagem que prevalece é a do vizinho simpático, que joga bola no campinho de pelada, toma cerveja no bar da esquina, cumprimenta seus pais todo educado. Um bandido, é bom lembrar, não é necessariamente um monstro no convívio social. Muitos podem ser afáveis na maior parte do tempo, até porque a lassidão moral costuma ser mais simpática do que o rigor ético. Com isso, uma vez que é impossível conciliar na mesma pessoa o moço simpático com o ladrão assassino, as pessoas, até pelo bom coração, tendem a ficar com a simpatia, esquecendo o crime.
Todos os seres humanos são iguais na imperfeição
É essa convivência cada vez mais frequente entre criminosos e famílias de bem que torna as periferias tão disponíveis para toda sorte de violências, desde as queimas de ônibus até o linchamento de culpados ou inocentes. Ao contrário do que afirmam os ideólogos de esquerda, que querem atribuir esse tipo de violência às famílias conservadoras das classes abastadas, que incitariam as massas com seu suposto moralismo, o linchamento é uma expressão brutal dos mais baixos instintos humanos e dificilmente arregimenta pessoas religiosas, de classe média (com exceção dos jovens), com sólidos laços familiares. Pessoas assim, ao contrário, são as que mais se indignam com linchamentos e torturas, como provam os próprios estudantes e professores universitários. Ou alguém imagina uma Rachel Sheherazade linchando um ser vivo só porque fez um comentário infeliz? Nem o filósofo Paulo Ghiraldelli, que desejou o estupro da apresentadora com repetido escárnio, seria capaz de praticar uma atrocidade dessas.
Linchamento não é prática de famílias estabelecidas, mas de pessoas desgarradas. As massas urbanas compartilham com as hordas primitivas a solidariedade mecânica de que falava Durkheim, onde não há espaço para a racionalidade do indivíduo e ele se confunde com a turba. Um pai de família comum, caso se veja envolvido por uma multidão enraivecida, pode até contribuir com o linchamento de uma pessoa, movido por uma solidariedade mecânica duplamente irracional, já que a turba urbana não tem nem mesmo os laços sociais da antiga horda e se move pelas emoções do momento. Mas é quase impossível que esse cidadão pacato seja capaz de atirar a primeira pedra – essa tarefa exige criminosos contumazes ou potenciais, que servirão de estopim para a multidão. Nem precisa ser um chefão do tráfico, como aqueles que prescrevem chacinas no Rio; pode ser apenas um membro de gangue de rua, que não é menos letal do que um assassino, como provam as torcidas organizadas.
No artigo “A selvageria como regra”, publicado na “Folha de S. Paulo” em 22 de abril último, antes do linchamento de Fabiane, o jornalista Clóvis Rossi reflete sobre o crescente número de homicídios no Brasil e, para ilustrar sua reflexão, conta que, dias atrás, seu genro esqueceu o portão da garagem aberto. Um vizinho ligou para Rossi, que também mora perto, para avisá-lo. O articulista da “Folha” diz que esse episódio banal se tornou digno de menção porque o Brasil está “perdendo a capacidade de conviver civilizadamente”. E conclui: “O vizinho de minha filha não precisou da presença da polícia no quarteirão para agir civilizadamente. Mas, se a moda do desrespeito continuar se espraiando, chegará o dia em que alguém como ele, vendo o portão aberto e sem polícia perto, invadirá a casa e levará o que puder”.
Imagino a indignação desse vizinho ao ver sua boa ação retribuída com tanto desrespeito por Clóvis Rossi. Com que autoridade moral, o articulista da “Folha” acredita que seu bom vizinho poderá se transformar num bandido e invadir a casa alheia caso encontre o portão aberto? Se o Brasil chegasse mesmo a esse nível de selvageria, por que até seu gentil vizinho iria sucumbir à barbárie e Clóvis Rossi não? É esse dedo em riste dos intelectuais – que nunca se veem como parte do problema – que faz o Brasil parecer pior do que é. Ao contrário do que diz Clóvis Rossi, a nação brasileira não é pior do que a alemã (que criou o nazismo), a russa (que matou de fome os ucranianos) ou a norte-americana (que desumanizou os negros). Todos os seres humanos são iguais na imperfeição.
Por isso, é um erro culpar indiscriminadamente as pessoas de bem pelo linchamento de Fabiane, atribuindo a toda a sociedade um crime que, se fosse possível ser investigado com precisão, provavelmente revelaria uma hierarquia do mal, com criminosos de verdade iniciando a chacina e atiçando a multidão. Muito menos se deve usar esse trágico episódio para justificar um afrouxamento ainda maior das leis penais sob a desculpa de que a função da Justiça não é punir, mas educar. Justamente porque ninguém está livre de pecado, é que é preciso que a Justiça recolha as pedras – excluindo da sociedade os criminosos que a conspurcam. Caso contrário, irá se intensificar a banalização do mal e o homem de bem não chegará ao ponto de se aproveitar do portão aberto do vizinho, mas provavelmente filmará o ladrão roubando e postará as imagens na internet, com indiferença.