Histórias de gêmeos siameses mostram por que Goiás é referência nacional em cirurgia de separação
07 maio 2016 às 08h54

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Reportagem do Jornal Opção conta como está a vida de dois dos 34 gêmeos siameses separados pela equipe comandada por Zacharias Calil no Hospital Materno Infantil

Marcos Nunes Carreiro
Heitor tem sete anos de idade e gosta de estudar. Nos últimos testes da escola, tirou nota boa em quase todas as matérias; em duas, foi com nota dez: história e geografia. No 2º ano do ensino fundamental, o garoto se destaca, pois é bom tanto em língua portuguesa quanto em matemática — algo não muito comum.
Aventureiro, o menino gostar de sair de casa e brincar pela vizinhança. Basta chegar o fim de tarde e lá vem Heitor se locomovendo sobre o carrinho feito por seu pai, Delson, que utilizou uma prancha de skate para criar o objeto que é, ao mesmo tempo, brinquedo e meio de transporte.
Faz menos de um ano que Heitor mora em Riacho de Santana, uma cidade no interior da Bahia e que fica a aproximadamente 700 quilômetros da capital Salvador. Porém, por lá, todos conhecem o garoto, assim como sua história.
É numa tarde de sexta-feira que Delson, o pai de Heitor, recebe uma notificação no Facebook; é um jornalista de Goiânia, querendo saber um pouco da história de seus filhos Heitor e Arthur. Ele está em uma escola de Paramirim, um município do centro-sul baiano que fica a pouco mais de 100 quilômetros de Riacho de Santa.
Ele vê a notificação e pensa: “Não vou entrar em sala de aula agora” e então responde: “Claro”. “Tem algum telefone para o qual eu possa ligar? Ou prefere falar por aqui mesmo?”, diz o jornalista, ao que retorna: “Acabei vendendo meu celular e ainda estou sem, mas eu arrumo um contato de uma amiga aqui do trabalho.” Número dado, o repórter liga e ele começa a contar.
Conta que, em 2008, ele e sua esposa, Eliana, descobrem que ela estava grávida de gêmeos siameses e que todos os médicos a que foram na Bahia desacreditaram a sobrevivência das crianças, recomendando inclusive que não levassem a gravidez adiante. Sem informações suficientes sobre o caso dos filhos, fizeram muitas pesquisas na internet. “E tudo o que lemos a respeito indicaram o nome do doutor Calil.”
A referência encontrada pela internet era Zacharias Calil, cirurgião-pediatra do Hospital Materno Infantil, de Goiânia. Ligaram para a secretária, que os colocou em contato com o médico e, explicada a situação, Calil pediu que o casal enviasse todos os exames já feitos. Uma vez com todos em mãos, tranquilizou os pais. “Ele nos disse que os meninos estavam bem de saúde, apesar da má formação. Nos deixou tranquilos e organizou tudo para que Eliana fosse para Goiânia”.
Em abril de 2009, nasceram Heitor e Arthur, unidos pelo tórax, abdômen e bacia, além de compartilhar o fígado e a genitália. Nasceram em Goiânia, cidade onde moraram os seis primeiros anos de vida, até estarem preparados para a cirurgia de separação. Geralmente, a cirurgia é realizada quando as crianças têm um ano de idade, mas o caso de Heitor e Arthur exigiu um cuidado maior.
Qual? “Faltava pele. A ligação entre os dois era muito grande, então tiveram que colocar os expansores [aparelhos de silicone que possibilitam a produção de pele para reparação de danos] e, durante todo esse tempo, eles ficaram sendo preparados para a separação. Tiveram problemas com os expansores; faltava elasticidade para a pele. Por isso a demora”, explica.
Delson é professor de geografia, servidor efetivo de duas prefeituras, Botuporã e Paramirim — onde estava na sexta-feira em que contou a história pela qual o leitor passa os olhos agora. As duas cidades ficam a, mais ou menos, duas horas de viagem de Riacho de Santana, onde moram Heitor e sua família, que é formada pela mãe Eliana, a filha mais velha Cecília e o filho Eduardo, adotado pela família durante o tempo em que a mãe e os gêmeos moraram em Goiânia. “A família foi para cuidar de dois, voltou com mais um”, conta Delson, sorrindo.
O pai, que devido aos dois trabalhos mora em Botuporã durante a semana, conta como foi o período de espera pela cirurgia: “Eu não podia abandonar meus empregos, então fiquei. Cecília, que hoje tem oito anos, ficou sob os cuidados da avó e tia maternas”. Dolores é o nome da avó, mas todos a chamam de “vó Dora”; ela é mãe de Eliana e também de Elisângela, a tia citada.
Durante seis anos, portanto, a família ficou divida. Só se reuniam durante os feriados, inclusive Eduardo. “Eduardo ficava na mesma casa que Eliana, em Goiânia. Foi acompanhar uma parente e acabou vendo em minha esposa uma mãe. Ele se apegou muito aos meninos, assim como nós a ele. Quando voltamos para a Bahia, ele veio junto; faz parte da família agora”, afirma. Mas nem todos voltaram.
Delson explica que a equipe médica sempre foi muito sincera sobre os riscos da cirurgia, que é altamente complexa, e que Zacharias Calil, às vésperas da cirurgia disse: “Se, durante a cirurgia, eu perceber que algo está mais complicado do que imagino, eu não faço. Só farei se houver a possibilidade dos dois saírem com vida”. A cirurgia foi realizada, mas houve complicações no pós-operatório e Arthur acabou não resistindo.

Para o pai, a perda faz parte daquilo que Deus planejou; para o irmão, não se trata de uma perda, mas de uma ausência. “Heitor lidou com a falta do irmão melhor que todos nós. Ele lembra de Arthur com saudosismo, mas sem tristeza. Ele entendeu o acontecido”.
O melhor de Heitor, conta o pai, é sua força vital. Ele brinca e, em nenhum momento, parece se importar com seu estado físico. “Ele ficou com algumas deficiências, mas não se isolou por causa delas. Eu temia isso, mas, ao contrário, ele não se sente envergonhado. Gosta de se reunir com os amigos e jogar videogame.” Heitor é esperto. Tão esperto quanto Larissa, menina muito conhecida em Santo Antônio de Goiás, cidade a menos de uma hora de viagem da capital Goiânia.
Larissa tem 16 anos e é conhecida não apenas na cidade onde mora, como também nos municípios ao redor. Sua mãe, Luciana Gonçalves, conta que ela adora sair e, se deixar, vai a todas as festas da região. “Fizeram uma festa do milho aqui na cidade que durou cinco dias. Durante cinco dias, Larissa estava lá”, relata.
Rindo das histórias da filha, Luciana diz que, um dia Larissa pediu para que ela a levasse a uma festa em Nerópolis. Chegando lá, tinha um show da dupla sertaneja Zé Neto e Cristiano. Estavam assistindo ao show, quando um dos cantores avistou Larissa em meio à multidão. “Ele parou o show e pediu para um dos seguranças ajudá-la a subir no palco, acredita?”, afirma a mãe orgulhosa.
E não é para pouco. Se Heitor é o último nome que os goianos conhecem devido à cirurgia de separação de gêmeos siameses, é devido a ela. Larissa e Lorraine foram as primeiras gêmeas separadas cirurgicamente em Goiás, operadas pelas mãos de Zacharias Calil. “Tudo o que eu mais queria era ver as duas separadas, mas no dia da cirurgia eu quis desistir. Estava com medo”, confessa Luciana. “Quem me fez mudar de ideia foi o doutor Zacharias”. Lorraine
morreu em 2007.
Aliás, Zacharias é o maior exemplo de Larissa, que cursa o 3º ano do ensino médio na Escola Pe. Alexandre de Morais, em Santo Antônio de Goiás, e vai prestar vestibular no fim do ano para medicina. “Ela é muito inteligente e gosta de estudar”, afirma Luciana. “Diz que quer ser médica e ajudar as pessoas como doutor Zacharias ajuda.”
“O HMI tem as melhores estatísticas do País”

O fato de Delson e Eliana Brandão saírem da Bahia para Goiânia em busca de tratamento diz algo a respeito de Goiás. Atualmente, o Estado é referência nacional quando o assunto é cirurgia pediátrica. E, se o nome de Zacharias Calil é reconhecido no Brasil inteiro, é também devido à equipe formada no Hospital Materno Infantil (HMI), que é público, e já acompanhou 34 casos de gêmeos siameses.
A história começa em 1999 com o caso Larissa e Lorraine, considerado por Zacharias o mais desafiador. O médico recebeu a reportagem na tarde de terça-feira, 3, e disse que o HMI, agora, tem a maior estatística do País. São 34 casos. “Acabou aquilo de todos os pacientes irem para São Paulo, o que é importante para Goiás”.
“O caso Larissa e Lorraine foi o primeiro e, desde então, formamos uma equipe de alto nível e que está preparada para trabalhar com casos graves e complexos. São cirurgiões pediátricos, ortopedistas, anestesistas, cirurgiões plásticos, cirurgião vascular, cirurgião cardíaco, entre outros. Ficamos horas na sala de cirurgia”. No caso Arthur e Heitor, por exemplo, foram 18 horas de anestesia e 14 horas de cirurgia.
Contudo, se a cirurgia é uma etapa importante, Zacharias é categórico ao falar do período após a operação. “O pós-operatório é o mais complicado, porque esses pacientes apresentam muita variação. É preciso ter uma equipe só para eles. Às vezes, a criança está bem e faz uma intercorrência em fração de minutos”, explica.
Acontece que, embora as cirurgias tenham alcançado cada vez mais taxas de sucesso, as pesquisas na área ainda são poucas; e não apenas no Brasil, mas no mundo. Zacharias afirma, por exemplo, que ninguém sabe ainda como se dá a interação entre gêmeos siameses; como o organismo deles reage.
“Eles dividem o mesmo corpo, o mesmo sangue. Quando se separa, provoca um transtorno no organismo e ninguém descobriu ainda como se reverte isso. Causamos uma verdadeira tempestade metabólica, modificamos tudo”, diz. E os dois fatores em que a equipe encontra mais dificuldades são o cardíaco e o renal.
É justamente a questão cardíaca o fator complicador das gêmeas siamesas que nasceram no início do mês. As duas meninas nasceram prematuras no dia 2 de maio, no HMI. A mãe, Jessyca Calado Guedes, de 24 anos, mora em Goiânia. As meninas são unidas pelo e abdômen, compartilhando o fígado e uma membrana do coração.
Segundo Zacharias, a equipe precisará ter uma preparação muito grande para a cirurgia, devido condição cardíaca delas. “Elas estão unidas pelo tórax e pelo abdômen. No tórax, elas dividem uma mesma membrana, que é o pericárdio; os corações são individuais, mas estão colados, embora não se comuniquem. O fígado também é único. Com isso, teremos que fazer uma estratégia de programação cirúrgica para atuar na separação. Estamos programando a cirurgia para quando elas estiverem com um ano”, revela.
Por que apenas com um ano? “Com essa idade”, responde o cirurgião, “elas estarão com um bom peso, com a vacinação em dias. Aí entrarão duas equipes: a de cirurgia cardíaca e a de cirurgia pediátrica. Se conseguirmos, será algo inédito, pois teremos que fazer a cirurgia cardíaca associada à pediátrica. É algo muito complexo e ainda não vi nada descrito na literatura mundial em relação a isso. Porém, temos que, primeiro, avaliar a sobrevivência delas”.
Segundo ele, uma cirurgia antes de um ano de idade só deve ser feita caso ocorra um fator de emergência em que seja necessário interferir. “Mas, se pudermos levar até um ano de idade, é melhor, pelo peso, imunidade e resistência das crianças”.
Complicações
Zacharias Calil explica que casos de má formação como a de gêmeos siameses são complexos e que 75% dos casos morrem nas primeiras 24 horas, pelas más formações associadas. Dos 25% restantes, outros 25% morrem nos primeiros 15 dias. “As estatísticas são altas. A literatura médica mundial fala em sobrevida de, no máximo, 20%. Em Goiás, conseguimos uma sobrevida de 50%. A medicina não é exata, mas vai evoluindo. A cada dia nós temos novos equipamentos para mantê-los vivos. Antigamente, morriam todos.”
Zacharias alerta: é extremamente necessário que uma mulher grávida faça o pré-natal, visto que, em caso de má formação, o diagnóstico precoce é esse essencial. “A má formação deve ser identificada no pré-natal para evitar surpresas. Se o obstetra vai fazer um parto desses sem a informação, diminui a sobrevida. Com o pré-natal, o parto será encaminhado para uma equipe mais complexa e multidisciplinar.”