HGG realiza uma cirurgia de redesignação sexual a cada quinze dias
22 maio 2022 às 00h00
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Para participar do programa, basta que pacientes procurem a rede básica de saúde e peçam encaminhamento para o projeto de transexualidade do HGG
Em Goiás, pacientes que buscam o processo de transição de gênero e pacientes com desvios de diferenciação sexual já são atendidas no Hospital Alberto Rassi (HGG) via Sistema Único de Saúde (SUS) desde 2017. O hospital, com uma equipe multidisciplinar especializada, é o único do estado a realizar todo o tratamento – ambulatorial, psicológico e cirúrgico – e vem recebendo pacientes de outras unidades da federação que precisam do serviço.
A ginecologista Margareth Giglio, que coordena o Serviço de Identidade de Gênero, Transexualidade e Intersexualidade (Ambulatório TX) do HGG, já realizou mais de 5,7 mil consultas. Atualmente, 350 pacientes frequentam o Ambulatório TX ativamente. A médica explica que há uma grande demanda pelo tratamento no Brasil, e que em um dos centros de referência, na cidade de Ribeirão Preto, São Paulo, mais de cem pacientes aguardam na fila. Em Goiás, uma cirurgia de redesignação sexual é feita a cada quinze dias, e o HGG tem potencial para realizar um procedimento por semana.
- Distúrbio de diferenciação sexual: o termo intersexual está sendo substituído por disturbios de diferenciação sexual. A condição não é rara, acometendo até 1,7% da população, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), e tem diversas causas possíveis. Se caracteriza pela genitália indefinida ou mal formada. São crianças que não necessariamente se sentem diferentes do seu fenótipo, mas que precisam de tratamento precoce para evitar o mal desenvolvimento de características sexuais e a exclusão social.
- Transexuais: São pessoas com disforia sexual, que experimentam algum grau de incongruência entre seu sexo biológico e sua identidade de gênero. Há o sentimento de pertencer a um gênero diferente de seu sexo biológico. O tratamento pode ser iniciado a partir dos 18 anos de idade, com atendimento psiquiátrico, psicológico e hormonal. Após dois anos de participação no programa do HGG, tendo o paciente pelo menos 21 anos de idade, o tratamento pode levar à cirurgia de redesignação sexual.
Em comum, os tratamentos para as duas condições podem envolver as cirurgias de readequação genital, mas Margareth Giglio explica que estas não são o fim do tratamento. “Temos várias formas de cuidar. A cirurgia não é o final do processo, já que esses pacientes continuam dependendo de hormônios, medicamentos e acompanhamento psicológico. Nossa equipe multidisciplinar aborda todos os aspectos com médicos ginecologistas e urologistas, cirurgiões plásticos, psiquiatras, psicólogos, fonoaudiólogos.”
O processo não é trivial, diz Margareth Giglio: “Antes da cirurgia, os pacientes têm de cumprir 2 anos com 24 sessões de atendimento psicológico. Algumas doenças mentais podem contraindicar a redesignação para certos pacientes. Há mulheres trans que desejam próteses mamárias, mas não a cirurgia genital; e há homens que optam apenas pela hormonioterapia para se masculinizar com testosterona. Como cada caso é um caso, nossa equipe tem de trabalhar muito unida.”
A complexidade do processo exige cuidado, explica a médica. “Dentro das readequações, a cirurgia mais especializada é a de se fazer uma vulva ou vagina a partir da genitália masculina. São necessários três profissionais médicos no processo, e no HGG já contamos 12 mulheres redesignadas desta forma. No Brasil, não há uma unidade formadora desses profissionais. Portanto, lutamos para manter a demanda baixa.”
Entrevista com uma mulher trans
Lenna Campos é redatora, mestre em teoria e estudos literários, e concluiu sua transição com 23 anos de idade. Nascida e criada no Rio de Janeiro, vive em Goiânia com a família desde 2019.
Como foi o início do seu processo de transição?
Na prática, eu sempre me senti diferente, não pertencente ao meu sexo biológico. Comecei a me identificar formalmente como mulher aos 18 anos de idade, mas isso não foi surpreendente para as pessoas próximas de mim, pois sempre fui muito ligada ao universo feminino, desde que consigo me lembrar. Meus pais relatam que eu manifestava aversão às coisas de menino desde a infância, mas sinceramente não me lembro muito dessa fase de minha vida, que foi quando mais sofri segregação na escola, por parte de colegas e professores. Acho que bloqueei muitas dessas memórias.
Houve conflitos no procedimento formal para registro do seu gênero e atendimento médico?
Não, foi relativamente tranquilo. Eu comecei a transição quando já tinha apoio de minha família e amigos. Sei que esses são os pontos em que minhas colegas enfrentam boa parte dos conflitos, portanto ter apoio das pessoas que me amam foi realmente fundamental para encarar todo o procedimento. Me sinto imensamente triste por saber que essa não é a realidade da maioria das pessoas trans.
Fiz o caminho convencional. Das unidades básicas de saúde, fui referenciada a um Ambulatório de Transexualidade especializado na cidade do Rio de Janeiro, onde eu vivia na época. Após anos de hormonioterapia, terapia cognitiva e comportamental, visitas regulares a todos os atendimentos médicos necessários, fiz a cirurgia de redesignação pela rede pública de saúde.
Foi necessária alguma espécie de adaptação ou sua rotina continuou como antes?
Como foi tudo muito gradual, apenas as pessoas mais próximas acompanharam todo o processo. Quando concluí a transição (não conclui de fato, pois ainda sou acompanhada por profissionais), eu já estava trabalhando em um escritório convencional, onde conto com o respeito dos meus colegas. Sei também que essa não é a regra para todas as pessoas, mas acredito que tive relativa sorte, pois minha adaptação foi tranquila.
Acredito que a maior parte dos obstáculos esteja na entrada no mercado de trabalho: devido ao preconceito, muitas pessoas acreditam que contratar uma mulher trans trará problemas ao ambiente de trabalho. Empregadores acham que precisarão mudar todas as regras no escritório – do banheiro ao uso da linguagem. Mas a verdade é que as pessoas trans querem pertencer, funcionar bem em sociedade, progredir com toda a coletividade. No final das contas, o ambiente se beneficia de diversidade; a diversidade não é um problema para o funcionamento “normal” das coisas.
A minha relativa sorte não significa que o preconceito não exista, é claro. Eu particularmente não preciso me expor ao público e não falo sobre transexualidade o tempo todo porque sou muito tímida. Mas talvez o estranhamento e a aversão das pessoas explique parte dessa timidez. O Brasil ainda é o país que mais mata transexuais e travestis (foram 140 assassinatos a pessoas trans em 2021, segundo Dossiê Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais). Por tudo isso, apesar de me sentir acolhida, há o constante medo da ignorância alheia quando preciso sair do meu círculo de pessoas mais próximas.