Marine Le Pen deve ir ao segundo turno, mas sua velha política encontrará dificuldade nas urnas

Filha de Jean-Marie Le Pen, Marine deve ir ao segundo turno, mas enfrentará dificuldades | Foto: Charles Platiau

Frank Wan
Especial para o Jornal Opção

Parece ser evidente, para muitos que se fiam à contagem tradicional de votos, que Marine Le Pen passa ao segundo turno das eleições presidenciais francesas. Coloca-se então a questão: quem é o melhor candidato para derrotar a filha de Jean-Marie Le Pen, partindo do princípio –  coisa que a gigantesca maioria da mídia faz – que derrotar Le Pen é defender algum estado da civilização que, com a vitória dela, se perderá? Os leitores já estão habituados a estes axiomas: se Donald Trump vencesse eram também anunciados diversos apocalipses e tsunamis, mas, na lógica midiática, a grande catástrofe vem sempre a seguir.

A Frente Nacional (Front National, FN) não é apenas um partido político, tem também os traços antropológicos de uma religião. Não é incomum perpassarem no discurso dos seus apoiadores expressões como “até ao sangue”. Tal como todos os movimentos religiosos, a Frente Nacional  também tem uma visão particular da história (e de certos momentos chave da história) e esta leitura histórica é uma referência permanente no seu pensamento.

Tendo um discurso anti-estruturas políticas, a FN bate-se permanentemente com o grave problema das fontes de financiamento, mas, como muitas magias que a política faz, o dinheiro sempre aparece e, desta vez, voltou a aparecer sob o título de “dinheiro russo” — e aqui os menos distraídos já se recordam do “fantasma russo” na eleição que levou Trump ao poder.

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Pelo mundo afora, o momento das eleições parece ser um momento de depuração. Há uma súbita febre de honestidade e denúncia, sempre ausente em tempos não eleitorais, onde a pureza ética parece tirar férias. Nos EUA, por exemplo, as mulheres só se lembram que foram vítimas sexuais de algum candidato no período eleitoral — com a dupla perversidade de, não apenas lançar suspeitas, provavelmente injustas, sobre algum candidato, mas também de fazer um péssimo serviço às vítimas reais desse tipo de crime, descredibilizando-as.

Recentemente uma socióloga nos chamava a atenção para o fato de, nos anos 1980, com uma dada ficha de inquérito, 30% das pessoas acreditarem que os políticos eram todos corruptos e, com a mesma ficha, em 2010, o resultado ter dado acima de 75%. Mas, curiosamente, isso não altera significativamente o sentido do voto tomando um conjunto de eleições — embora, na minha opinião, não deixe de ter repercussões no número de abstenções. Seja como for, em período eleitoral alguma lama será sempre mutuamente atirada.

Se François Fillon é acusado de desvios financeiros pessoais pouco consideráveis, mas eticamente muito pesados, Marine Le Pen e seu pai já têm um patrimônio de peso. Também sobre a família Le Pen pairam fortes suspeitas de gigantescos desvios de dinheiro, normalmente, sob a forma de desvalorização dos bens patrimoniais para fuga aos impostos.

É surpreendente para muitos que Fillon esteja sob tantos holofotes por quantias irrisórias enquanto que Le Pen há anos passe incólume, embora recaiam sobre si somas muito mais avultadas. Diria que Le Pen usa a arma da pureza financeira com algum equilíbrio, o que é até estranho para esta família política, mas os telhados de vidro, provavelmente, a isso obrigam. Já Fillon usou e abusou dos bonecos conceituais tão do gosto dos políticos modernos: a honestidade, a transparência, as diversas incompatibilidades dos cargos políticos, etc. Isso levou-o onde o levou, mas agora está pagando uma gigantesca fatura pelo discurso moralista.

Os pecados dos políticos “santos” aparecem sempre que eles deixam o poder e, concomitantemente, de controlar a aparição dos pecados.

Afinal, Trump também não pagou impostos e ganhou as eleições! Não só não pagou, como, quando lhe perguntaram se usou um certo fundo para evitar impostos, deu a famigerada resposta: Of course I do, of course I do (Claro que sim, claro que sim). Afinal — e Trump acaba de demonstrá-lo, na puritana  América do Norte —, não pagar impostos e, talvez, andar por aí atrás de umas garotas, não incapacite quem quer seja de ganhar eleições. Em política tudo é assimétrico, o que é válido para Fillon, mas não para Le Pen.

Como em todas as eleições presidenciais no mundo, embora no caso de Portugal isso nunca tenha sido muito evidente, tirando as bizarras eleições de Mário Soares e Freitas do Amaral, o resultado no segundo turno raramente esteve em jogo, o importante é continuar no pleito obtendo o famoso “ingresso” (ticket). Como o equilíbrio partidário na França está muito mais estilhaçado do que em qualquer outro país europeu, depois de obtido o “ingresso”,  o jogo muda quase a cada 24h, entra-se num “xadrez relâmpago” vertiginoso de negociações, jogadas e golpes espetaculares. Se, para o primeiro turno, o importante é ter uma boa base fixa, que é o caso máximo de Le Pen, para o segundo, o importante é a flexibilidade. É por isso que Le Pen, e seu pai já tinha esse fantasma, tem o perfil da eterna derrotada no segundo turno. Ainda ecoa nos ouvidos franceses o famoso bordão eleitoralmente suicida de Jean- Marie Le-Pen: não quero nem um voto de esquerda!

Marine fez imensas maquiagens à filosofia e métodos do pai, mas, para as eleições presidenciais nunca (digo eu) tocará no eleitorado de centro e centro-esquerda que decide eleições. Estratégia cínica: quem tiver o ingresso contra Le Pen “arrisca-se” a vencer,  nem será uma vitória do próprio, será sempre uma derrota do extremismo lepenista. O que os adeptos do Apocalipse aguardam é que à vitória de Trump se siga a de Le Pen, mergulhando o mundo em trevas políticas.

São diversos os temas que apartaram a FN dos outros partidos, entre eles contam-se  os tradicionais temas queridos da extrema direita: a agricultura, a segurança, os imigrantes, entre outros. No quadro europeu, Marine volta ao grande cavalo de batalha de todos os extremistas: a saída da “zona do euro”. A “saída” tem, ultimamente, numa tentativa  de mitigar  a violência da medida, tomando formas bizarras como: a França mantinha o velho franco no seu território, mas negociava em euros nas exportações ou entre as grandes empresas. Claro que isso é visto como um imenso recuo face às posições que a FN já defendeu no passado — recordo que a saída era quase a bandeira primeira do movimento em tempos recuados, a tal ponto que, nos bistrôs se dizia que Marine era “moeda, moeda, moeda” (“monnaie, monnaie, monnaie”). Marine defende-se dizendo que é uma medida mais prática, uma vez que a saída do euro seria mais violenta. Le Pen e todos os europeus assistem com perplexidade à incapacidade da Inglaterra de sair da “zona do euro” após o referendo. Marine também agita a bandeira do referendo na França e esta é, aliás, a primeira medida que diz tomar, se sair vitoriosa.

A verdade é que a França padece de todos os males dos países europeus desde a implementação da moeda euro: dívidas pública e privada altíssimas, difícil acesso ao crédito, etc.

Na França, país com uma democracia velha e astuta, o discurso mágico tradicional dos políticos de “aumentar os salários dos professores, policiais e médicos e baixar os impostos”, decididamente, não pega. Marine vê-se na contingência de recorrer a propostas dentro da sua cultura política: não tratar os estrangeiros em situação irregular (muitos brasileiros) nos hospitais públicos! Recorre a estes estratagemas argumentativos porque sabe perfeitamente que a maioria das outras medidas faraônicas que propõe teriam custos incomportáveis.

Marine recorre à relação “tratamento médico/estrangeiros” para manter vivo o simbolismo fascista da xenofobia porque, neste momento, está  provado para a sociedade que não é possível, por exemplo, fazer um automóvel sem recurso a peças e materiais oriundos de diversos países — lembrando que a indústria do automóvel na França tem um peso importante.

É preciso ver tudo o que Marine Le Pen propõe com uma pitada de sal porque ela, normalmente,  sabe que não vai ganhar e pode, portanto, dar-se ao luxo de dizer qualquer coisa. Estas medidas, propostas e ameaças servem apenas para capitalizar votos.  Muitas vezes também se usa com a FN uma medida diferente da que se usa com os outros partidos, leem até aos últimos caracteres tudo o que está no programa da FN e põem-se a acusar Marine Le Pen de cada detalhe programático. Ora, é sabido: os eleitores não leem programas de partidos, guiam-se por muitas outras coisas.

No limite dos argumentos de Marine está sempre o bordão: a Europa não funciona por causa da imigração…

O que vai acontecer agora, então?

A questão numérica é simples de equacionar: qual é a porcentagem de votantes de Fillon que poderiam eventualmente votar na Marine Le Pen? Segundo números das últimas 48 horas, votariam, dos absolutos, 18% em Fillon e desses votantes em Fillon, 30% dizem-se dispostos a votar na Marine num segundo turno. Tomando como referência geográfica e nacional  todas as votações até hoje, faltariam a Marine Le Pen cerca de 10 milhões de votos. Para uma proposta política tão rígida é difícil vislumbrar que tipo de votante faria toda a viagem do espectro político para aterrar no voto da extrema direita (democrática).

O interessante em quase todas as eleições europeias é que quem decide, muitas vezes, é a abstenção e os abstencionistas. A abstenção absoluta desestabiliza as porcentagens relativas e, não há desejo, nem pavor maior para os candidatos do que o cidadão que “finalmente”, portanto, inopinadamente, decidiu ir votar.

Não cessa de me espantar que a França tenha tanto candidato, tanto partido, tanto movimento, tantas frentes e haja tanta gente que se não se sente, de todo, representada. Estas pessoas, muitas vezes, decidem eleições.

Uma das manobras clássicas nestas eleições é os candidatos mostrarem-se ao lado de políticos no governo ou com peso institucional internacional das suas famílias políticas. Para isso fazem estas vistas relâmpago. Marine Le Pen visitou agora o Líbano e o pormenor de se recusar a usar as roupas tradicionais islâmicas tem sido sublinhado. Uns veem nisso um ato de coragem de defesa dos valores ocidentais. Na França, alguns dizem que é um ato contraditório, uma vez que Marine Le Pen defende que os estrangeiros na França têm que respeitar os valores da França, ora, ela deveria também ter respeitado os do Líbano.

Penso que as posições políticas de Marine Le Pen, face ao mundo moderno, se depauperizam. As ideias tradicionais cada vez mais se afastam das necessidades e desafios modernos, as linhas divisórias passam pouco por dicotomias obsoletas, mas — e isso não é irrelevante — a força da FN é a fraqueza de todos os outros. A FN é  obsoleta, mas os partidos e candidatos democratas são de uma fragilidade de cristal: corruptos, carreiristas, totalmente vazios ideologicamente, cínicos, mentirosos, contraditórios, ao serviço de interesses econômicos, ao serviço dos seus interesses, com discursos oficias de plástico, bonitões filhos do marketing, pagos por corporações, e toda a sorte de vícios humanos.

O preço é elevado porque, por exemplo, vejo que há cada vez mais pessoas muito atentas, esclarecidas, informadas e com memória. Assim sendo, os velhos truques políticos do tipo “promete-se qualquer coisa atrativa e depois, no poder, faz-se outra” cada vez funcionam menos.

Há um princípio universal e eterno que Marine Le Pen e a sua família política têm dificuldade em entender: em POLÍTICA um voto conta!

PS: François Bayrou acaba, neste momento, de assinar um acordo de apoio a Emmanuel Macron.

Frank Wan vive em Portugal. É ensaista, poeta, tradutor e professor.