*Matéria originalmente publicada em 31 outubro 2021

Existem pelo menos três versões plausíveis para a etimologia da palavra Goiânia. A capital de Goiás pode ter sido batizada com o título do poema épico de 1896, Goyania, do escritor baiano Manuel Lopes de Carvalho Ramos; pode ser uma referência aos índios Goyazes, extintos pela cólera e pelos bandeirantes no século XVIII; ou pode ter vindo do tupi-guarani guyanna, que significa “terra de muitas águas”. A última é a alternativa mais aceita: a área escolhida para a construção da cidade é a de uma planície rebaixada, relevo que favorece o afloramento das águas. 

Originalmente, havia 89 nascentes e 85 cursos d’água na área onde hoje está Goiânia – ou pelo menos esses são os números que se repetem nas publicações oficiais sobre os recursos hídricos da cidade. Entretanto, não existem mapas que apontem onde estariam esses córregos e não há informações sobre cada um deles em órgãos públicos, pois boa parte dos cursos de água na região eram temporários (só existiam na época de chuvas) e foram soterrados durante a construção da cidade. 

Quem afirma é a doutora em Geografia, Karla Maria Silva de Faria, professora do Instituto de Estudos Socioambientais (Iesa) da Universidade Federal de Goiás (UFG) e pesquisadora no tema das análises geoecológicas em bacias hidrográficas e do cerrado. A professora relata que o processo aconteceu principalmente na fase inicial da construção de Goiânia, durante as décadas de 1930 e 1940, e depois quando a cidade cresceu mais intensamente, nas décadas de 1960 e 1970. Nesse período, os padrões de conservação eram diferentes, bem como o entendimento acerca do impacto ambiental e urbanístico que essas intervenções teriam no solo da cidade.

Durante a edificação de Goiânia, os canais de drenagem característicos de córregos temporários encontrados pelo caminho foram sendo canalizados em manilhas e inseridos na galeria pluvial da cidade. Alguns córregos perenes (cheios de água o ano todo) foram enterrados sob o asfalto, como é o caso do Córrego dos Buritis, que nasce no Clube dos Oficiais da Polícia Militar, no Setor Sul, corre três quilômetros sob as avenidas 87 e 85, e retorna à superfície ao lado da Assembleia Legislativa do Estado de Goiás. Os córregos Santa Helena e Padre Souza tiveram o mesmo destino.

O processo é comum no crescimento urbano desordenado e aconteceu em diversas cidades brasileiras. Isso, porém, não significa que seja livre de consequências. Aliado à impermeabilização do solo, o desmatamento das matas ciliares, a erosão e assoreamento dos rios, a mudança da dinâmica hídrica sob a cidade pode provocar mudanças no solo. O processo de subsidência e colapso do solo são fenômenos que já podem ser percebidos em pontos de Goiânia; bem como enchentes no período das chuvas, fato que já foi explorado pelo Jornal Opção.

O processo de subsidência pode ser definido como o movimento lento de afundamento de terrenos. Em locais como no entorno do Lago das Rosas, Setor Oeste, já foi observada a deformação do solo e deslocamento vertical de construções. O acontecimento se explica justamente pela da seca no terreno que historicamente foi um brejo. Karla de Faria dá outro exemplo: “Toda obra afeta o direcionamento do fluxo da água e sua drenagem. No setor Itatiaia, o crescimento urbano gerou condições artificiais do escoamento da água. As chuvas agora se concentram no ponto mais baixo do bairro, a Avenida Planície. Por isso, próximo dali, há um processo erosivo nas galerias pluviais próximas à rodovia”.

Ainda podemos citar como exemplo de consequência da ignorância sobre a hidrogeologia da cidade os empreendimentos imobiliários ao redor do Parque Flamboyant. Ali, as  garagens dos edifícios encontraram o lençol freático. A água invade a área dos prédios e é bombeada por motores a diesel para o parque próximo. Em 2019, o Jornal Opção verificou que órgãos ambientais desconheciam o nível dos lençóis freáticos sob a cidade e a qualidade das águas. Desde então a situação é a mesma.

Karla Faria acrescenta que novos planos diretores da cidade incorporaram a preocupação com níveis dos lençóis freáticos e preveem instrumentos para garantir a recarga dos reservatórios naturais e a infiltração da água, como por exemplo as caixas de retenção. Entretanto, apenas legislar a solução não resolve o problema prático, afirma a professora. 

“Além de prever o instrumento, o poder público precisa colocar em prática e fiscalizar”, diz Karla Faria. “O solo da cidade está há 40 anos sem receber água diretamente, pois tudo é impermeável. Se implementarmos todos os poços de infiltração, temos de monitorar os impactos”. A professora afirma que a universidade tenta estudar o que está acontecendo sob Goiânia, mas que seu poder é limitado. “Pesquisamos em áreas públicas, mas apenas o poder público é capaz de monitorar quanto da lei realmente é aplicada em áreas privadas e qual é o resultado de suas ações”, conclui.

Consequências do desconhecimento 

São inúmeros os exemplos de acidentes geográficos causados por mudanças hídricas no ambiente urbano, e suas consequências ultrapassam o dinheiro público gasto em conserto de estruturas. Luziano Carvalho, delegado titular da Delegacia Estadual de Repressão a Crimes Contra o Meio Ambiente (Dema), comenta o potencial desperdiçado dos córregos goianienses. 

Luziano Carvalho afirma que, protegidos e aproveitados, os córregos poderiam ter função ambiental, paisagística e de lazer para a população. O delegado comenta ainda que, em seu ponto de vista, o principal obstáculo para conseguir recuperá-los é o engajamento da sociedade na proteção ambiental. “Não faltam leis – os planos diretores da cidade são projetados levando em consideração critérios ambientais rígidos. O que falta é que a sociedade cobre o cumprimento e a fiscalização dessas leis.”

“Em duas décadas que estou à frente da Dema, conseguimos cercar e reflorestar as nascentes dos córregos até onde era possível”, diz Luziano Carvalho. “Na Serrinha, por exemplo, se recuperou a nascente, mas uma rede pluvial desviou a água. No parque Cascavel fizemos esse trabalho, mas o córrego foi assoreado. Recuperamos o parque Macambira Anicuns, mas foi construída uma rua em cima. Quando a sociedade permite que se faça esse tipo de coisa, acabou.”

Marcos Correntino, membro do comitê de estudos de bacias hidrográficas para informações territoriais e planos diretores, afirma que o não mapeamento dos canais de drenagem que já foram córregos torna impossível a preservação e recuperação dos mananciais. “Segundo o plano diretor em vigor, ao se construir em Goiânia, é necessário deixar uma área permeável mínima de 15% da área do terreno (sendo mínimo de 5% de forração vegetal e 10% de complementação com caixa de retenção). Verificamos que na bacia do Córrego Cascavel, apenas 2% do solo é infiltrável”.

A impermeabilização do solo impede a recarga dos lençóis freáticos, o que mata os mananciais, diz Marcos Correntino. Outro exemplo dado pelo engenheiro hidrólogo é o caso do Morro da Serrinha, onde há projeto de construção de edifícios. “Se o Morro for impermeabilizado, a Avenida 85 vai virar um rio na estação das chuvas. Tudo isso está previsto no estudo de meio físico hidrogeológico necessário para compor o plano diretor. Mas há pressões, como os interesses do mercado imobiliário, que acabam vencendo o bem público da população.”

O desconhecimento se estende também para a qualidade das águas. Marcos Correntino afirma que a quantidade de esgoto que entra nos cursos d’água urbanos é ignorada – “A Companhia de Saneamento de Goiás (Saneago) é quem tem estrutura para tratar a água. Por meio da Saneago, conhecemos a taxa de água coletada e tratada nas bacias do Ribeirão João Leite e Rio Meia Ponte, que abastecem a cidade. Mas a companhia não é capaz de tratar todo volume dos rios, além de não ser responsável pelos córregos dentro e abaixo da cidade”, diz Marcos Correntino.

Sobre a degradação dos cursos d’água urbanos, o hidrólogo diz: “Em Goiânia, muitos córregos recebem esgoto sem tratamento – são redes clandestinas, fora do radar do poder público, que jogam o rejeito in natura na rede pluvial. Isso acontece em setores como Jardim América, Água Branca, Parque Amazônia. Isso se tornou um problema de saúde pública, já que a água utilizada para regar hortaliças comercializadas em feiras livres é contaminada com a bactéria H. Pylori e outras.” 

Os cursos d’água que existem dentro da cidade de Goiânia fazem parte da bacia hidrográfica dos afluentes ao Paranaíba. Dessa forma, a fiscalização e gestão do Plano de Gestão de Recursos Hídricos (UPGRH) é responsabilidade da Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Estado de Goiás (Semad). O Jornal Opção ouviu o responsável pelo plano, o doutor em Engenharia Hidráulica e Saneamento Klebber Teodomiro Martins Formiga.

O engenheiro explica que o monitoramento dos níveis hídricos é realizado pelo acompanhamento da vazão de diversas estações. Nos últimos anos, pelo consumo dos recursos acima do esperado, o plano incluiu o monitoramento de grandes usuários de água (indústrias e produtores agropecuários) por meio de hidrômetros que informam as autoridades sobre o uso de água em tempo real. 

“Reconhecemos que água é um bem finito e que todos têm direito ao seu uso”, afirma Klebber Formiga. “Assim, o que tentamos fazer no plano de gestão é alocar a água disponível de forma racional. Em Goiânia, falta água no tempo da seca e em outros lugares já estamos no limite do estresse hídrico em todos os períodos do ano. Dessa forma, o que projetamos é que a outorga seja concedida de forma racional e que taxas sejam incluídas para disciplinar o usuário”.