‘Fungo negro’: doença rara assusta e cresce na esteira da Covid-19
13 junho 2021 às 00h01
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Cientistas conhecem a mucormicose desde o século 19 e o Brasil tem apenas 30 casos da infecção por ano – mas números chegaram a 9 mil na Índia
Recentemente, veio à atenção pública uma doença “misteriosa”. Com número crescente de casos, alta letalidade, associação à pandemia de Covid-19 e lesões assustadoras, a mucormicose – que popularmente está sendo chamada de fungo negro – preocupou a imprensa e a sociedade. Mas o que dizem médicos infectologistas e cientistas micologistas (que estudam os fungos) sobre a doença? Temos razões para nos preocupar ou trata-se de um alarmismo midiático?
Primeiramente, é necessário esclarecer que a doença divulgada como fungo negro, na realidade, não é misteriosa para a ciência. A mucormicose – como é denominada pelos médicos e pela literatura técnica – é uma infecção causada pelos fungos da ordem Mucorales (Mucor sp., Rhizopus sp., Rhizomucor sp.). A enfermidade foi descrita pela primeira vez em 1885 e, no Brasil, existem relatos publicados desde 1970.
Segundo o Ministério da Saúde, o número de casos é baixíssimo: foram apenas 36 casos relatados em 2020 e 29 casos em 2021. Entretanto, a notificação ao Ministério não é compulsória, de forma que os dados provavelmente estão subnotificados. Neste ano, com as atenções voltadas para a explosão de casos na Índia e Paquistão, as ocorrências estão sendo relatadas pela imprensa com preocupação: os estados de Pernambuco e do Rio Grande do Norte já confirmaram as infecções por fungos Mucorales em pacientes que tiveram covid-19.
O que é o fungo negro? O que é o mucor?
Lilian Carla Carneiro é doutora em Biologia Celular e Molecular pela Universidade Federal de Goiás (UFG). A professora explica que, embora o público esteja chamando tanto a doença quanto o organismo causador da mucormicose popularmente de “fungo negro”, os micologistas já usavam esse termo para se referir a um grupo específico de fungos. A designação genérica “fungo negro” é dada pelos cientistas a um grupo diversificado de microfungos caracterizados pela presença de melanina em sua parede celular. São fungos, literalmente, negros, com pigmentação escura.
Por que a explosão de casos?
Mas, afinal, por que uma doença rara e antiga chamou a atenção pública agora? Quem ajuda a explicar é o professor Sandro Rogério de Almeida, doutor em Microbiologia e Imunologia pela Universidade de São Paulo (USP). Em uma exposição proporcionada pela MM Learning – Mundo Microbiologia, empresa de consultoria e cursos sobre microbiologia, o doutor Sandro de Almeida afirma que a mucormicose é uma doença grave, mas rara e oportunista.
Isso significa que esses fungos se aproveitam da perda da capacidade de defesa do organismo dos hospedeiros. “São fungos que normalmente vivem no ambiente conosco. São saprofíticos; ou seja, se alimentam de matéria orgânica em decomposição. Estão no solo, em vegetais, nas fezes de animais. Para se reproduzir, esses fungos liberam esporos muito pequenos que ficam em suspensão no ar. Frequentemente inalamos esses esporos, mas isso geralmente não nos causa problema algum”, diz o microbiologista especializado em imunologia das micoses.
Entretanto, em indivíduos com fatores predisponentes, o quadro pode evoluir de forma diferente. Essas pessoas são aquelas com defesas fragilizadas: portadores de neoplasias, pacientes transplantados, desnutridos, diabéticos, politraumatizados (que utilizam sondas, catéteres ou máscaras de reanimação), submetidos a terapias prolongadas (que fazem uso de antibióticos, quimioterápicos e corticoides), queimados ou aqueles com doenças que suprimem o sistema imune, como a Aids.
Sandro Rogério de Almeida coloca as coisas em perspectiva: “Ao ouvir isso, as pessoas se assustam: ‘Professor, eu tenho diabetes, estou condenado a contrair mucormicose?’ Claro que não! Você apenas aumenta suas chances de desenvolver doenças oportunistas, mas a probabilidade continua baixa. Devemos nos lembrar que é uma doença rara que acomete indivíduos que acumulam muitos fatores predisponentes.”
Condições ideais
A cientista Lilian Carla Carneiro explica que a principal porta de entrada dos fungos Mucorales para o nosso organismo é pelas vias aéreas superiores. “Cuidados com condições higiênico sanitárias são formas eficientes de prevenção. Prevenção está diretamente relacionada com os cuidados de higiene”.
“O paciente diagnosticado com Covid-19 está imunologicamente comprometido”, afirma Lilian Carla Carneiro. A pesquisadora reflete que o próprio ambiente hospitalar, sobrecarregado no contexto da pandemia, pode contribuir para o aumento no número de infecções por este fungo. “Acredito que a associação entre condições sanitárias inadequadas e a contaminação de superfícies e equipamentos de fornecimento de oxigênio (esse fungo pode estar presente também no ar) cria condições para a propagação nos locais de tratamento de indivíduos debilitados imunologicamente.”
Uma das hipóteses que pode explicar o aumento no número de casos de mucormicoses na Índia é justamente a junção de diversos desses fatores. A Índia tem a segunda maior prevalência de diabetes no mundo (perdendo apenas para a China). Segundo o periódico científico “The Lancet Global Health”, são 77 milhões de indianos acometidos pela doença, o que corresponde a 17% da população do país – um diabético a cada seis habitantes.
Além disso, há dois meses o país quebra recordes de números de casos de Covid-19. Foram seis mil novas mortes em decorrência do Sars-CoV-2 nas 24 horas anteriores ao fechamento desta edição. Como uma das consequências mais graves da Covid-19 é a inflamação no sistema respiratório, o uso de corticoides é largamente empregado para suprimir a resposta imunológica e evitar o efeito da cascata ou tempestade de citocinas. Esse tratamento evita mortes por Covid-19, mas abre espaço para infecções oportunistas, conforme explica Sandro Rogério de Almeida.
Junta-se a isso o clima indiano, que, como o brasileiro, é quente e úmido em grande parte do território do país e favorece a proliferação dos fungos. Por último, um fator inusitado: em regiões onde o hinduísmo é forte (como o estado de Gujarat), existe a crença de que cobrir o corpo com esterco e urina de vaca oferece proteção mística contra o coronavírus. Não há nenhum tipo de eficácia do esterco no combate à doença, mas a vaca é um animal sagrado no hinduísmo que representa a vida e a terra e suas fezes são utilizadas em rituais religiosos. Como a ordem Mucorales é saprofítica, esses fungos causadores da mucormicose podem ser encontrados no esterco do gado.
O que a mucormicose pode causar
A doença pode se manifestar de algumas maneiras diferentes. Sandro Rogério de Almeida explica que, como temos contato natural com os fungos Mucorales, eles às vezes podem até mesmo fazer parte da microbiota transitória de nossa pele (conjunto dos microorganismos que habitam o ecossistema formado na superfície da pele) sem causar sintomas.
Entretanto, quando ultrapassam a pele, as substâncias angio-invasoras produzidas pelo fungo facilitam sua invasão no tecido dos vasos sanguíneos – o endotélio. “Recentemente, foi descoberto e publicado na revista Nature Microbiology que esses fungos produzem a toxina mucoricina (Mucoricin)”, diz o cientista. A combinação desses fatores causa necrose – a morte do tecido. Caso colonizem os pulmões, esses fungos podem ainda causar pneumonia.
Porém, a forma mais frequente de mucormicose é aquela que ficou famosa por provocar graves lesões no rosto e cérebro. Trata-se da forma rinocerebral. Neste caso, o fungo coloniza os seios paranasais, invade vasos sanguíneos do rosto, palato e cérebro, formando necroses, trombos e lesões. Caso atinja o fundo das órbitas dos olhos, geralmente há perda dos olhos. A taxa de mortalidade da mucormicose rinocerebral é de mais de 50%. Os sintomas vão de dor facial e dores de cabeça com sangramento até perda de visão e confusão mental.
O diagnóstico é normalmente feito através da análise laboratorial de uma amostra do tecido afetado – uma biópsia, explica Sandro Rogério de Almeida. Embora a verificação da doença seja fácil e simples, ela geralmente é detectada apenas em estágios avançados, o que torna o tratamento difícil. “Não há muita opção para tratar os pacientes. Geralmente são administrados antifúngicos, como por exemplo o isavuconazol ou a Anfotericina B intravenosa em ambiente hospitalar, mas quando há necrose a remoção cirúrgica da área atingida é necessária”.
O pesquisador explica que o mais simples é evitar a doença controlando os fatores de predisposição, quando possível. São atitudes como: controlar a diabetes; jamais se automedicar (principalmente com corticóides); evitar tratamento prolongado com imunossupressores; diminuir a exposição ao fungo evitando lugares com muita umidade e pouca ventilação; manter a higiene em dia.