Fundo pode mudar o transporte coletivo público na Região Metropolitana

05 maio 2019 às 00h01

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Proposta prevê a criação de fontes alternativas de financiamento do sistema, tirando peso das costas do usuário que paga as tarifas

Ônibus lotados, veículos desconfortáveis, esperas intermináveis e desorganização nos terminais. O retrato do transporte coletivo na Região Metropolitana de Goiânia é conhecido e a situação não tem melhorado. Mas, agora, os responsáveis pelo sistema começam a trabalhar em um projeto que pode mudar essa realidade.
Trata-se de ampliar a fonte de financiamento do serviço. Hoje, ele é colocado totalmente nas costas do usuários – exatamente o elo mais vulnerável de toda a cadeia. Mas a criação de receitas extratarifárias pode permitir um alívio para eles.
A discussões envolvem a Companhia Metropolitana do Transporte Coletivo (CMTC), a Câmara Deliberativa do Transporte Coletivo (CDTC), prefeitos dos municípios que compõem a rede e o Governo do Estado. A parte técnica está bem adiantada. Ainda em maio, todos os atores poderão se debruçar sobre ela. A partir daí, começa o trabalho político.
Gratuidades
Atualmente, do valor de R$ 4,30 da passagem, aproximadamente 40% são para cobrir as diversas gratuidades (idosos, deficientes, estudantes, policiais e bombeiros, servidores dos correios e crianças), construção e preservação dos pontos de ônibus e terminais. Como não existe almoço de graça, alguém tem de bancar a conta. E ela sobra para quem paga a passagem. Cada tarifa cheia tem aproximadamente R$ 1,70 para cobrir as despesas dos benefícios.

“Todos os custos são inseridos nas tarifas: gratuidades, melhoria dos abrigos, manutenção dos terminais e o custo dos órgãos gestores”, lista o presidente da CMTC, Benjamin Kennedy. Somente com as gratuidades, o custo anual rateado entre os usuários do transporte coletivo é de R$ 500 milhões, segundo a CMTC.
De onde viriam os recursos?
E de onde viriam, então, os recursos para pagar essa conta, senão da própria tarifa? As possibilidades são muitas. Mas há algumas fontes prioritárias: parte do licenciamento dos veículos individuais, recursos do orçamento geral do Estado ou fundos específicos destinados às políticas públicas para jovens e idosos, fatia de tributos arrecadas com estacionamentos, etc.
Em todo esse cardápio, o que é apontado como melhor alternativa é investir parte dos tributos do transporte individual para o coletivo. “Essas fontes são as mais defendidas, pois é uma forma de compensar as externalidades negativas advindas do uso do automóvel”, explica a professora da Universidade Federal de Goiás (UFG) Érika Cristine Kneib, que é doutra em Planejamento de Transporte, pela UnB, e pós doutora em Mobilidade Urbana, pelo Instituto Superior Técnico de Lisboam.

Segundo cálculos preliminares, se uma fatia de R$ 60 do licenciamento anual de veículos da Região Metropolitana fosse destinada ao financiamento do transporte coletivo público, isso representaria R$ 200 milhões, aproximadamente, injetados anualmente no transporte coletivo. Segundo Benjamin Kennedy, seria possível bancar as gratuidades, evitar o aumento exagerado no preço da tarifa e investir em ônibus, abrigos e terminais melhores.
Recém-empossado presidente da Câmara Deliberativa do Transporte Coletivo (CDTC), o prefeito de Trindade, Janio Darrot, também defende a criação de novas fontes de financiamento do sistema. “Em todo lugar do mundo o transporte coletivo é subsidiado, é um benefício coletivo. O trabalhador não pode pagar essa conta sozinho”, diz.
Europa já adota o financiamento extratarifa
Uma nota técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) corrobora a observação de Darrot. Segundo a nota, o sistema de financiamento baseado nas tarifas pagas pelos usuários não encontra paralelo em países da América do Norte nem na Europa.
Os subsídios ao transporte coletivo nas principais cidades europeias têm percentuais diferentes, mas, em média, cobrem 50% do valor total. Segundo o European Metropolitan Transport Authorities (EMTA), em Paris, ele chega a 60%; em Berlim, 54%; em Praga, 74% e, em Estocolmo, 60%.

O modelo brasileiro é especialmente perverso com os mais pobres. Exatamente quem mais precisa do poder público em seus deslocamentos diários. É que os gastos com o transporte comprometem 13% da renda dos 10% mais pobres do País.
Por outro lado, mesmo com a tarifa pesada no bolso, o passageiro não recebe de volta um serviço de qualidade. “Ficam claros os limites do atual modelo, de se aumentar o preço das passagens para financiar as melhorias reivindicadas pelos usuários dos serviços”, diz a nota do Ipea.
Para o presidente da CDTC, Janio Darrot, essa é exatamente a principal reclamação dos usuários. “A maior queixa não é em relação à tarifa, é com a lotação, demora [para o ônibus chegar], as más condições e a sujeira nos ônibus”, cita.
Intervalos menores
Por isso, conforme Benjamin Kennedy, a importância da criação de receias extratarifárias. “Seriam verbas carimbadas para custeio das gratuidades, gestão dos terminais, colocação de ônibus melhoras e com mais capacidade e menor tempo entre viagens”, diz. A projeção da CMTC é que, com esse aporte financeiro, o intervalo máximo entre as viagens seria de 15 minutos para linhas de eixo e 30 minutos em linhas alimentadores em horários fora do pico.
Mas, como contornar a desconfiança dos usuários e da população em geral diante de mais uma promessa de melhora no transporte coletivo, já reiterada e nunca cumprida? Ainda neste mês de maio, os órgãos gestores intensificarão as conversas com o Governo Estadual, prefeitos da Região Metropolitana e empresas do setor.
“Temos de demonstrar para a população, que no mundo inteiro o veículo individual paga por transporte coletivo. Em vários países, há uma taxa para reverter para o transporte coletivo na compra do veículo”, diz Benjamin Kennedy. Mesmo não fazendo parte dos atores envolvidos diretamente na discussão, a professora Érika Kneib diz que a criação de um fundo semelhante aos europeus em Goiás não é apenas viável, como “necessário”. “O fundo captaria os diversos recursos, a partir dos quais seria possível financiar a melhoria da qualidade [do transporte coletivo público]”, diz a pós-doutora em Mobilidade Urbana.

Benjamin Kennedy e Jânio Darrot acreditam que a proposta está bem encaminhada entre os tomadores de decisão, os gestores municipais e estaduais. Otimista, Kennedy espera, inclusive, que no início do segundo semestre o projeto esteja pronto. A partir daí, seria encaminhado para Assembleia Legislativa e Câmaras de Vereadores, para que possa vigorar já em 2020.
Transporte coletivo perde atratividade
Encontrar meios alternativos para o financiamento do transporte coletivo é uma questão que atinge vários segmentos da sociedade, usuários ou não. Aos que precisam dos ônibus, por motivos óbvios. Os que usam o transporte individual, por questões de mobilidade, principalmente. E aos empresários do setor, que precisam que o serviço tenha viabilidade econômica.
Com mais facilidades de financiamento do veículo próprio e sem motivo para deixar o carro na garagem, as pessoas deixam o sistema. Segundo a Companhia Metropolitana do Transporte Coletivo (CMTC), em 2012 o número de viagens da região foi de 232 milhões. Já em 2018, foram menos de 160 milhões.
O tempo de descolamento também tem aumentado. A velocidade média de um ônibus do transporte coletivo na Região Metropolitana de Goiânia chegava a 22,23 quilômetros por hora. Hoje, ele se arrasta a 13 quilômetros por hora. O ex-prefeito Paulo Garcia (PT) começou a destinar faixas exclusivas e preferencias para os ônibus na capital. Mas o projeto não foi ampliado nem levado adiante pelo atual prefeito, Iris Rezende.
Dessa forma, entra-se em um ciclo vicioso. Cada vez mais gente opta pelo transporte individual, entupindo as vias de tráfego. Consequentemente, cada vez mais os ônibus andam cheios e atrasados. Assim, o transporte público ruim prejudica tantos os usuários diretos quanto os que dirigem seus próprios veículos.
Goiânia é um exemplo disso. A frota atual de veículos particulares é de 1.216.646, para uma população estimada de 1.466.105. Ou seja: há quase um veículo automotor para cada morador da capital goiana. São 641 mil carros de passeio, 242 motocicletas e 103 mil caminhonetes.
Outra forma de remuneração
A própria lógica da remuneração atual premia o empresário quando há menos ônibus circulando. Como leva-se em conta o número de passageiro, ônibus mais cheio é mais rentável. Quando se adota outro tipo de financiamento que não apenas a passagem, a lógica muda.
“As empresas passariam a ser remuneradas por número de viagens ou quilômetros rodados. Assim, poderíamos ter uma maior frequência. Seria melhor para a empresa fazer quatro viagens com 78 passageiro que três com 110 cada. E para o passageiro faria uma enorme diferença em conforto”, diz Benjamin Kennedy. “No atual sistema, estamos jogando o usuário para fora do transporte coletivo”, complementa.
No Brasil, ainda impera o modelo em que é a passagem que banca quase integralmente o transporte coletivo. Alguns municípios, porém, têm suas iniciativas, como São Paulo, que investe cerca de R$ 3 bilhões por ano em subsídios. Brasília, destina cerca de R$ 800 milhões por ano – sem, contudo, ter verba carimbada, o que causa atrasos eventuais.
Na capital paulista, a passagem nos ônibus municipais custa R$ 4,30. Em relatório enviado à Câmara de Vereadores, o prefeito Bruno Covas informou que, sem os subsídios, custaria R$ 7,01.
Proposta de Governo
Uma fonte semelhante de recursos deixaria a passagem em Goiânia em até R$ 3,20, se a diferença fosse repassada integralmente. Ou permitiria que parte dessa diferença fosse revertida em melhorias.

Ao menos no Plano de Governo apresentado durante a campanha, o governador Ronaldo Caiado demonstrou simpatia pela alternativa. No Plano de Governo entregue ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE), lê-se a intenção de se estudar novas formas de financiamento. “De forma que o usuário não seja o único responsável pela sustentabilidade financeira do transporte público”, diz o documento.