Festival de Cinema revive a histórica Vila Boa
31 maio 2014 às 13h14
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Cidade de Goiás é palco para discussões ambientais e humanas: de exibição de filmes a shows, brasileiros e estrangeiros propõem e ganham diversas reflexões
Yago Rodrigues Alvim
Indo para praça do coreto, na noite de quinta-feira, 29, encontrei Tidi e Fiota proseando. Duas senhorinhas. Proseei com elas. Tidi me contou da festa de 100 anos de Fiota, no dia 17. Perguntei sobre a cidade na calmaria longe do festival, que estava em seu terceiro dia, me respondeu da gostosura da cidade que sempre atrai rostos novos, por sua historicidade estampada das casas e ruas aos bons hábitos de deixar a porta aberta, sem receio, de botar a cadeira e papear sobre os conhecidos.
A cidade é a antiga Goiás Velho, tão nova nas diferenças que se concretizam no recente nome que já se espalhou: cidade de Goiás. Ali, vivem as duas que se amigaram quando tinham 7 anos de idade. Me alertou Tidi: “É preciso aproveitar a vida!”. Era o que eu fazia por tais ruas, de pedras-ladrilhos, que enfeitam por ser memória de um Brasil que se expandiu. Há moços e moças que vem na sexta para aproveitar a bagunça boa no fim da semana. Shows para a juventude. Sem contar as brincadeiras que vivenciam na Praça, para onde eu estava indo. Muitos sorrisos e toda moda duma cultura underground.
Naqueles dias, os pensamentos era aproveitar toda uma programação de algo grande, que atravessa fronteiras de cidades e países e pinta um quadro intrigante numa Goiás anciã, com línguas e mocidade cheia de novidade. Não para aí. São conteúdos outros dos todos filmes exibidos: o futuro natural, do homem, do meio ambiente.
Conhecido Fica. O tal Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental, que teve início em 1998, de uma vontade de projetar Goiás nacionalmente, em termos culturais. Foi dessa cidade-palco que partiram os nove filhos que Tidi deu à luz. Quando grandes, foram à procura de trabalho. Segundo a senhorinha, na cidade é difícil ter trabalho, por isso foram para a capital. Em tempos de Fica, parece que melhora um pouco mais a oferta de empregos, porém algo efêmero.
Na quinta-feira, as filhas já estavam na cidade para visitar a mãe, Tidi. E Dona Fiota contou das parreiras: o motivo de conhecer a “sistemática”, como disse a amiga Tidi, Dona Cora ou poetisa Cora Coralina — ou, ainda, sem o pseudônimo, Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas. Parreira é uma cepa de uvas que para dar no pé, tais uvas, precisava ser cortada, vez e outra, e lá, próximo da casa de Cora vive o moço que a cortava. “Agora é museu. Não sei se está aberto todos os dias”, contou sobre a casa-museu de Cora.
A cidade é a antiga Vila Boa, ex-capital do Estado. Nos costumeiros últimos fins de semana de junho, capital do cinema, pois atrai pessoas do mundo todo. Seja com qual vontade. Há oficinas, palestras, exibição de curtas, média e longas-metragens, shows e há a cidade, com o Morro do Macaco Molhados, onde na mesma quinta-feira, madrugada de sexta, cineastas do Canadá e dos Estados Unidos arriscavam um ou outro passo de dança. O interessante é toda essa mistura que envolve linguagem: explicarei melhor.
Linguagens
Na quarta-feira, 28, foram realizadas as primeiras exibições dos filmes selecionados para Mostra Competitiva Fica – há outras mostras concomitantes, como a 12° edição da Mostra da Associação Brasileira de Documentaristas (ABD) Cine Goiás, a Mostra Paralela, Mostra Infantil (Fica Animado) e a Mostra de Produções Vilaboenses.
Foram dessas duas primeiras exibições, os diretores dos curtas “Refugiados en su Tierra”, Nicolás Bietti, “Inercia”, Mariano Bergara, “Dergo!”, Ricardo Alvez e “Erntefaktor Null”, de Helena Hufnagel, que se reuniram na manhã seguinte para um debate sobre suas produções. O encontro teve portas abertas ao público, que indagou em outros idiomas, dando forma ao quadro dessa discussão: a língua.
Bietti e Bergara são argentinos. Ricardo é goiano. Helena da Alemanha. Espanhol, português e inglês — afinal, a alemã debateu no inglês, com o auxílio de uma intérprete — pintaram uma cena engraçada. Primeiro, exaltação: “Ele fala em português”, disse um dos presentes para uma senhora que perguntava a Ricardo, sobre o filme, em inglês, pois, ela também era intérprete de um outro senhor presente, que não compreendia o português.
Antes até, Bergara ajudou Bietti com o espanhol e traduziu, com mais facilidade que a intérprete presente na mesa, para o inglês, alcançando mais pessoas que ali estavam presentes. É uma bagunça, notável até pela tentativa de explicação. O que chama a atenção é perceber que nessas ruas anciãs, solo de paredes repletas de memórias, caminham jovens duma modernidade estonteante ou, como li recentemente, “sou muito moderno para tanta contemporaneidade”, e ainda cineastas, donos de ideias imagético-materializadas com reflexões para o amanhã e há também senhorinhas sentadas à beira do caminho.
Disso, a estória dum curta: o de Bergara, “Inercia”. Entre a chave de um carro e todo seu cotidiano engarrafado nos mesmos problemas a que se atraca, a que comete, errando os mesmos erros, e uma bicicleta que avoa, o protagonista do curta acorda do sonho, em que escolhia a bicicleta, e termina ligando o velho motor do carro. Um senhor passa, no meio do trânsito, em uma bicicleta. “Há quem faça a diferença”, disse o diretor, no debate.
Ele se incluiu no todo humano que sempre caí com as mesmas falhas. As falhas fazem parte do todo que esses humanos pretendem problematizar, para quem sabe surta uma ou mais bicicletas, no mundo. Pela língua, se comunica, se reflete. Garotos e garotas, como Renato Soares estudam línguas como inglês e francês para que as fronteiras sejam apenas geográficas. Ele acompanhava a inglesa Amy Browne, diretora de “A Will for the Woods”, exibido no Teatro São Joaquim, na sexta-feira, 30. Foi ele quem me apresentou o canadense Isaac King, diretor da animação “Second Hand”, apresentado no sábado.
A conversa brincou no francês e mostrou que há outros vocabulários presentes naquelas ruas — nem que seja uma vez no ano. A riqueza é grande por pensar que pessoas se unem pelo mesmo fim: o cinema. Em conversa com o americano, prole de família holandesa ou sem nacionalidade estacada, numa perspectiva transnacional, como ele prefere, “antissegregacionista”, Robert Stam o festival é rico para essa troca de conhecimento. “Super importante os festivais. São importantes para lançar cineastas, para lançar modalidades do cinema. O festivais, em geral, são importantes inclusive para que muitas coisas, que não iríamos conhecer, existir”, disse.
Festival
A abertura do Fica foi realizado na terça-feira, 27. Da capital goiana, saiu um ônibus com professores, profissionais que ministraram oficinas e workshops e cineastas. À noite, no Palácio Conde dos Arcos, o escritor goiano José Mendonça Teles foi homenageado na cerimônia de abertura da 16° do festival. O governador Marconi Perillo (PSDB) compareceu ao evento ao lado dos secretários Gilvane Felipe, da Cultura, Jacqueline Vieira, do Meio Ambiente, e de Leonardo Vilela, de Gestão e Planejamento, e da prefeita Selma Bastos, do PT, e de outros deputados federais e autoridades. O consultor de cinema do festival e diretor da Cinemateca Brasileira, o professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) Lisandro Nogueira participou da solenidade, junto do secretário de Audiovisual do Ministério da Cultura, Mário Borgneth, que representava a ministra Marta Suplicy.
A Orquestra Sinfônica Jovem de Goiás, sob regência do Maestro Eliseu Ferreira, apresentou “Clássicos do Cinema”, como 20th Century Fox e Missão Impossível. Logo após, na Praça do Coreto, foi rodado o longa “Tainá 3”, no projeto Fica a Céu Aberto – Cine Solar. Uma proposta de cinema itinerário. Marcelo Bione e Flávia Vilar vieram para Goiás atrás de uma melhor estrutura para exibição dos vencedores das Mostras Competitivas, no Fica Recife. Em novembro se realizará a segunda edição do projeto na capital de Pernambuco, que segue a estrutura do cinema a céu aberto, itinerário.
O secretário Borgneth era atração do primeiro dia do Fórum de Cinema, quarta-feira, na unidade Sant’Ana. Lá, apresentou as boas novas para o audiovisual brasileiro e, mais especificamente, regional. Após uma discussão ampla com realizadores e professores de cinema goianos, o status que se apreendeu da produção cinematográfica do Estado é: “em andamento”. Como disse o cineasta goiano Jarleo Barbosa, “onde há vão, há oportunidade”. Foi o que constatou Borgneth.
Audiovisual regional
Após a conversa com os produtores independentes goianos, o secretário afirmou: “Existe um momento auspicioso no audiovisual brasileiro. Estamos vivendo uma curva positiva que tem assegurado participação crescente do produto nacional, seja no mercado exibidor cinematográfico, seja nas programações das TVs por assinatura e isso se tem traduzido num choque de demanda muito grande”. Há mais produções e há mais recursos disponíveis, além dum maior escoamento dessa produção.
Conforme o secretário, essa curva só tem condição de se eternizar, perenizar, enraizar, se o impacto positivo desse momento alcançar os pólos regionais. “Então, cabe a produção regional goiana estar sintonizada com esses diferentes programas e demandar espaços, qualificar-se para uma participação de maior protagonismo nesse cenário todo.” Tal realidade é resultado de um processo que envolve uma reflexão, um entendimento, uma mudança de mentalidade por parte dos produtores, explicou, e, certamente, é um processo que passa pela articulação dos atores institucionais que atuam em torno da atividade: governo estadual, municipal, canais público e privado.
“Esses atores têm que estar sintonizados com o que está acontecendo no mercado brasileiro, de modo geral. Talvez o grande agente que possa promover essa reunião, esse novo entendimento, por meio desse aro institucional seja, exatamente, a produção independente, a mais ou a primeira interessada nisso tudo”, disse Borgneth felicitando novas possibilidades para o audiovisual nacional e, principalmente, regional independente.
Sobre as ações necessárias, o secretário apresentou a necessidade de uma política que fortaleça o espaço público da comunicação e que se fortalecerá quando absorver toda a riqueza da diversidade cultural, todo o potencial artístico que está, além dos muros da televisão: muito mais na sociedade, na produção independente. “Esta é uma relação de ganho. Ganham os produtores independentes, pois têm uma plataforma importante de difusão na televisão, ganha a televisão que agrega a qualidade artística dos produtores independentes e, sobretudo, ganha a sociedade goiana que passa a ter um serviço público de comunicação mais qualificado. Esse é um jogo que interessa a todos”, concluiu.
Sobre o Ministério da Cultura, disse da característica essencial nacional que objetiva o todo brasileiro: “Por ser exatamente uma secretaria nacional, projetamos em âmbito nacional e o que sabemos e estamos trabalhando para isso, é que a parceria Secretaria do Audiovisual, Agência Nacional do Cinema (Ancine) e TV Brasil lançará, no segundo semestre, quase 70 milhões em editais regionais para animação, documentário, obras de ficção”, comentou, o que induz a arranjos produtivos, que colocam o produtor independente em parceria com os canais públicos de televisão.
Fronteiras fílmicas
No segundo dia do Fórum, a atração foi o professor Robert Stam. A segunda mesa debateu a temática d”As Fronteiras entre a Ficção e o Documentário”. Sobre essa fronteira, disse: “Na análise é muito mais interessante fazer uma abstração dessa distinção”. No documentário são pessoas cotidianas que podem sofrer e tem que se considerar isso, explicou. Por mais que haja reflexão pela ficção, o público sabe que é ficção. No encontro, Stam exibiu trechos de filmes para discutir o assunto. Um título interessante é “O Ato de Matar” (The Act of Killing), em que a documentação utiliza da ficção para reconstruir as mortes relatadas por assassinos, como eles as viam.
“As pessoas podem dizer ‘ah, eu gosto mais de documentário e eu falo: gosto mais de documentário à ficção’, não digo que essa distinção não existe”, ia concluindo. Para ele, o mais interessante é misturar as coisas e ver as dimensões, por exemplo, fictícias do documentário e documental da ficção. Pois, analiticamente, abre mais espaço para as discussões.
Stam já esteve mais de 100 vezes, no país, como brincou. Há dez anos, participou do Fica. Sobre o cinema comercial disse ser interessante. Se especializa mais no alternativo. Alternativas é uma boa palavra para o começo do fim desse texto. As palestras e presentes, que se seguiram, como muitas outras produções e exibições caminham na proposta que marca o festival: “O futuro está Impresso nas marcas que deixamos. Preserve-se”.
O caráter ambiental se multiplica no ambiente homem e nas atitudes possíveis. Nessa edição, comentou o estudante Júnior Bueno, a programação possibilitou maior participação nas atividades propostas. Além disso, é notável uma maior mobilização da polícia, propiciando uma maior segurança aos presentes na cidade, assim como o ambiental gera trabalho aos moradores, que ganham 60 reais por dia, para coleta do lixo que se espalha, contraditoriamente, buscando soluções.
Dessas atrações, diversas, do Fica 2014, ainda se estendem às vozes e canções de Pato Fú, Gal Costa e Nação Zumbi — a banda pernambucana se apresenta na noite de hoje, como encerramento do festival. A cerimônia de premiação das produções vencedoras será às 17 horas deste domingo, no Cinemão, que fica na Unidade Sant’Ana.
Dos moradores da antiga Vila Boa aos moradores de países outros, de pequenos que se estatelam na magia de animações aos jovens que aproveitam a euforia cultural e musical e aos senhorzinhos sentados na porta de casa, como Dona Tidi e Fiota, de quem se aventura na produção e realização do evento, do trabalho ao lazer, Fica se expande na oportunidade de fazer arte e refletir os campos da vida. Seja com ideias simples, seja da fuga do caos cotidiano de outras cidades, engarrafadas no “fazer, fazer, fazer”, para uma cidade engarrafada por pessoas à procura de algo, por mais invisível que seja, vai se transformando em história e marcando as pedras anciãs com memórias do hoje.