“Um belo dia, rompe naquelas redondezas um som diferente. Não era o som dos ventos, que frequentemente redemoniavam as relvas dos gerais; nem a cachoeira, rugindo nas pedreiras; também não era o grunhindo dos queixadas, nem o esturro da onça pintada. Era o roncar de um trator puxando uma carreta recheada com bolas de arame farpado.” Esse é um trecho da crônica A saga de Zeca Brejeiro, escrita pelo Antropólogo formado pela Universidade Católica do Chile e doutorado em Arqueologia Pré-Histórica pelo Museu Nacional de História Natural, em Washington (EUA), Altair Sales, um dos mais profundos conhecedores do bioma Cerrado. O recorte é uma narrativa que ilustra a visão de um trabalhador rural ao ver chegada dos grandes produtores que miram ampliar a agricultura, e para isso avançar para cima de mata virgem do Cerrado.

As palavras de Altair Sales pode nos levar a crer que se trata de um relato de algo distante na história, mas é uma visão que se mostra atual e que tem, inclusive, sido destaque em debates políticos –  e a preocupação é válida.

A área ocupada por lavouras de soja no Cerrado cresceu 1.443% no período compreendido entre 1985 e 2021, segundo os dados do Mapbiomas. A agricultura ocupava no ano passado quase 20 milhões de hectares, ou 10% do bioma. Nestes 37 anos, as atividades agrícolas passando de 4 milhões de hectares para quase 25 milhões de hectares no Cerrado. As plantações de soja já ocupam uma área maior que a Itália e comparável à de países como República do Congo, Vietnã ou Malásia

Os dados do Mapbiomas partem de análises feitas com base em imagens de satélites, e assim é foi possível observar uma série histórica de registros e constatar que praticamente um terço (30,6%) da antropização de áreas do Cerrado aconteceu nestes mesmos 37 anos. Em 2021, apenas metade do bioma (53,1%) ainda estava coberto por vegetação nativa. Foram 27,9 milhões de hectares de vegetação nativa perdidos entre 1985 e 2021. 

Na avaliação do coordenador técnico do Mapbiomas e de tecnologia do Agrosatélite, Moisés Salgado, o que se percebe em todos os biomas é que não há necessidade de converter vegetação natural em áreas lavráveis porque já há muita terra aberta com aptidão agrícola. “O Cerrado não é exceção”.

O Cerrado se estende por 18 estados e representa cerca de 22% do território nacional, somando mais de 2 milhões de quilômetros quadrados. Estima-se que só 8,21% disso esteja, atualmente, fora dos limites da expansão agrícola. Menos de 2,85% da área ocupada pelo bioma corresponde a unidades de conservação de proteção integral, que não podem ser usadas para atividade econômica.

Uma carta pública assinada pela ABC (Academia Brasileira de Ciências) e pela SBPC (Sociedade Brasileira de Progresso para a Ciência) em abril de 2017 argumenta que o Cerrado é o tipo de savana mais ameaçado pela atividade humana em todo o mundo. Também é o mais rico em espécies – o Ministério do Meio Ambiente fala em mais de 1000 tipos diferentes de pássaros e mamíferos. Ironicamente, nós conhecemos melhor os mamíferos de savanas africanas, como elefantes e girafas, que os tamanduás, antas e quatis que vivem por aqui.

A vegetação tortuosa, em solo considerado infértil, era de pouco interesse para a agricultura. Isso mudou nos anos 1970, quando a Embrapa revolucionou o uso da terra no bioma. A ‘correção’ do solo com uso de calcário o tornou produtivo e deu início a plantações de soja, milho e algodão, principalmente nas regiões de platô.

O Cerrado então passou a ser cobiçado para cultivos e negligenciado na legislação. Na Constituição de 1988, o parágrafo 4º do artigo 225 já ignorava sua existência como patrimônio natural do Brasil. Em 2012, o Novo Código Florestal estabeleceu que as propriedades precisavam preservar apenas 20% de área como reserva legal – 35% em terras na Amazônia Legal – e praticamente decretou sua morte, não fosse alguma proteção posteriormente determinada por leis estaduais, mas que ainda não conferem ao Cerrado o seu real valor.

Apesar desse avanço da agricultura, em especial a grãos, em relação ao Cerrado, pesquisados não classificam o agricultor como inimigo do bioma. O geografo doutor em Ciências Ambientais e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) Manuel Eduardo Ferreira, é um das autoridades ao se tratar do assunto. Segundo ele, a agricultura e o Cerrado precisam coexistir, por isso um não é antagonista do outro. “O uso da terra também é para geração de alimentos, seja para subsistência ou para o agronegócio. Também  é o que possibilita o desenvolvimento da região. Mas precisa haver uma consciência ampla do setor da necessidade de conservar o restante do Cerrado, que hoje está passando do limite de manutenção. Está abaixo dos 50% da área original. Tem bacias que a área de Cerrado nativa pode estar abaixo de 10%. Não estamos seguindo orientação do próprio código florestal”, alerta.  

Manuel Eduardo Ferreira, professor e pesquisador da UFG | Foto: Reprodução

O professor aponta que há um descompasso entre a preservação e o avanço da agricultura, mas que quem perde é o próprio produtor. “É preciso que haja equilíbrio. Estamos falando em manutenção de fauna, flora, água e aspecto climáticos. Quando se olha com atenção todos esses ativos ambientais, eles são benéficos para agricultura. Eles retornam 100% para o uso agrícola, pois temos regulação da chuva, proteção do solo com vegetação nativa e o equilíbrio até de praga”, salienta Manuel Eduardo Ferreira. 

O pensamento do professor se assemelha com quem está na outra ponta. O deputado federal e presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Goiás (Faeg), José Mário Schreiner, defende que a visão de que o agronegócio é inimigo do meio ambiente é um equívoco histórico. “São nas propriedades rurais que estão as áreas preservadas. O Brasil tem 66,3% do seu território preservado, e grande parte dessa área está inserida no interior das propriedades rurais. Os produtores respeitam o mínimo de 20% de reserva legal (RL) em suas propriedades e também a área de proteção permanente (APP). Nós enquanto instituição sempre defendemos e instruímos para a preservação ambiental, pois sabemos da necessidade vital do meio ambiente para a produção”, opina o líder classista.

José Mario Schreiner também avalia que apesar das leis ambientais serem duras, há quem opte por desrespeitá-las. “É importante dizer que os produtores em sua esmagadora maioria defendem e preservam o meio ambiente, no entanto, casos isolados de desrespeito às leis que eventualmente ocorram ganham notoriedade, prejudicam a imagem da categoria como um todo. Nosso trabalho é continuar instruindo para que cada vez menos esses casos isolados deixem de acontecer”, diz ao defender a conscientização e as políticas públicas que busquem o equilíbrio entre produção agrícola e preservação ambiental.

José Mário Schrein | Foto: arquivo

Segundo o presidente da Faeg, embora os dados de satélites indiquem o avanço da agricultura em áreas protegidas, Goiás é um exemplo de preservação. José Mário Schreiner enumera que o estado tem atualmente 23 unidades de conservação no estado, sendo 13 pertencentes ao grupo de proteção integral (12 parques e 1 estação ecológica) e 10 ao grupo de uso sustentável (08 áreas de proteção ambiental, 1 floresta estadual e 1 área de relevante interesse ecológico).   “Acredito que o Brasil precisa mostrar o que é feito dentro da porteira, pois somos além de uma potência produtiva, somos eficientes na preservação, o código florestal garantiu a preservação das nossas áreas, contribuindo assim para todo o planeta”, finaliza. 

Efeitos no clima

Um estudo de pesquisadores brasileiros publicado na revista Global Change Biology concluiu que a perda da vegetação resultou em um aquecimento médio de até 3,5ºC nos últimos 15 anos. Além de mais quente, o Cerrado também ficou mais seco, já que a redução de área verde está criando um déficit hídrico, com menos chuvas caindo na região.

Cerca de 46% da cobertura original do Cerrado já se perdeu, entre áreas de vegetação, savanas e campos. O desmatamento propriamente dito foi responsável pelos piores resultados em termos de aquecimento e queda na precipitação: nas áreas florestais convertidas em lavoura e pasto, ocorreu um aumento médio de 3,5ºC na temperatura e uma perda de 40% na evapotranspiração (umidade devolvida pelas plantas à atmosfera).

“Isso ocorre por princípio físico. Quando se remove a vegetação e incorpora uma agricultura ou nada, deixando somente pasto, estamos causando essa transformação. Assim se altera o clima local e seus aspectos. Altera a capacidade de erradiância de energia solar, ou seja, o solo passa a refletir mais aumentado a temperatura na superfície, a evaporação de água do solo e evaporação da água pelas plantas”, explica Manuel Eduardo Ferreira.

Tecnologia na produção e preservação

Para aumentar as áreas de produção de alimentos no Brasil, os especialistas defendem que não é preciso derrubar se quer uma única árvore. Os dados demonstram que o País tem cerca de oitenta milhões de hectares de áreas degradadas, mas segundo um levantamento feito pela UFG, ainda que se apenas um terço dessa área for recuperada, haverá um aumento de 50% na produção da agricultura e pecuária.

“A agricultura é ciência. Para se ter uma ideia, em uma mesma área com auxílio da tecnologia e irrigação, o produtor hoje produz no mínimo três vezes mais do que há 15 anos. A ciência ajuda para que no Brasil tenhamos três ciclos produtivos por ano sem aumento de área. Um exemplo do avanço tecnológico no campo é que temos uma projeção da produção de grãos para os próximos 6 anos de aumento de quase 50% sem adicionar hectare de terra para a produção. Isso tudo graças à tecnologia e à ciência” afirma José Mario Schreiner.