Execução do carroceiro em São Paulo prova: o Brasil mata sem dó seus filhos mais vulneráveis

15 julho 2017 às 10h51

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Exatamente como não deve ser, este País nunca primou por cuidar de seus filhos, especialmente os mais desprotegidos

Se no mundo houver um ranking das profissões mais indesejáveis, talvez a de carroceiro seja uma das mais bem colocadas dessa lista negativa. Ser carroceiro é ser visto nas ruas com o avesso do olhar que se dirige ao condutor do sedan importado, ao homem de terno e gravata conferindo as mensagens no celular, aos universitários promissores, rosados e risonhos que cruzam a avenida. É uma casta diferente, com o pior do sentido da palavra. Ser carroceiro é sinal de fracasso, de uma sina sinistra.
Carroceiro. Até quarta-feira, essa era a profissão de Ricardo Silva Nascimento, 39 anos, conhecido entre os colegas de ofício como “Negão”. Para melhor entendimento do termo, o sentido em que é usado em São Paulo, a cidade onde ele morava, é diferente do significado em Goiás. Aqui, carroceiro é quem “conduz” uma carroça tracionada por um animal. Para os paulistas, é o próprio carroceiro quem puxa seu veículo, geralmente um carrinho de coleta de materiais recicláveis.
Certamente só pode ocupar o subsolo de qualquer pirâmide social aquele que ousa perambular recolhendo o que as pessoas despejam pelas ruas como restos de suas compras e de seus banquetes. “Ousar” é a palavra adequada: tem de ter muita coragem para ferir a harmonia da paisagem da cidade e para atrapalhar ainda mais o trânsito já complicado da metrópole. Diante de motos, carros, ônibus e caminhões, o que o carroceiro tem, apenas, é sua teimosia perigosa de ocupar uma faixa de pista sob todos os riscos, do simples xingamento até um acidente fatal.
O irônico da história é que o acidente fatal ou o simples xingamento podem ter como autor aquele cidadão porco que, quando se põe ao volante, considera seu carro como o próprio mundo e o restante como depósito dos dejetos de seu planeta de quatro rodas. Enquanto isso, estão ali, “Negão” e seus colegas, na condição de párias da sociedade para algo que uma parcela mínima dos brasileiros se preocupa em fazer: serem sustentáveis, reaproveitar materiais, ajuntar itens recicláveis.

Até quarta-feira era essa a sina de “Negão”. Não é mais. Não que ele tenha trocado por outra sua atividade tão respeitosa com os recursos da natureza, mas tão humilhante aos olhos da sociedade. Nem que tenha ganhado na loteria e preferido parar de trabalhar puxando carroça. “Negão” não tem mais a sina sinistra porque foi morto por um PM após protagonizar uma confusão na porta de uma pizzaria.
O crime ocorreu em Pinheiros, zona nobre da capital paulista. “Negão” levou dois tiros no peito ali, na Rua Mourato Coelho, quase esquina com a Teodoro Sampaio. Muita gente assistiu à cena. Alguns dizem que o carroceiro estava com fome e tinha pedido um pedaço de pizza. O certo é que foi executado pelo cabo José Marques Medalhano, de 23 anos, que fazia ronda a pé com um colega. Seu crime: levantou um pau no rumo dos policiais. Um deles, Medalhano, não titubeou em abatê-lo.
Em um ato completamente arbitrário, a cena do crime foi desfigurada pelos próprios PMs – além da dupla, havia já no local também a Força Tática. Testemunhas dizem que os policiais retiraram à força celulares das mãos de seus donos e apagaram o registro de imagens do que tinha acontecido. Os presentes se indignaram com o que viram – sinal de que interpretaram a ação realmente como completo abuso de autoridade e uso desproporcional da força.
“Negão” foi enterrado na sexta-feira, 14, no cemitério de Perus, na zona norte paulistana. De familiares, só a mãe e a irmã estiveram presentes. A mãe relatou que não falava com o filho havia três anos e que ele era realmente problemático, já tendo sido preso e condenado ao regime semiaberto. Antes, porém, trabalhara como vendedor e gerente de loja. Um dia, decidiu viver no mundo e nas ruas.
Fato é que alguma coisa mudou a vida de “Negão” para essa trajetória. O foco deste texto até que poderia ser ele e sua desrazão, mas não é. Ele está presente aqui por representar uma parcela considerável da população brasileira que é – como ele foi – vulnerável diante de todos os que detêm uma fatia de poder que seja. São diversos os “carroceiros” do Brasil: podem ser sem-teto, sem-terra, subempregados, mendigos, prostitutas, lavradores.
São eles tocados de um lado para outro, como recentemente se viu na cracolândia da mesma São Paulo. São todos aqueles que não dispõem de condições mínimas para se salvaguardar diante de qualquer abuso dos mais poderosos – e todos são mais poderosos que eles. São eles tanto o alvo da violência policial como do sarcasmo do jornalismo sensacionalista. (Aqui, parênteses abertos para lembrar uma cena que presenciei na Praça do Bandeirante, quando um “repórter” de TV entrevistava uma senhora moradora de rua, com transtornos mentais visíveis, tomando banho no espelho d’água do local, como “pauta” para uma “matéria”. Fosse a senhora perturbada de uma família de “gente de posses”, o “repórter” e seu “telejornal” muito provavelmente teriam de desembolsar uma boa quantia como indenização em danos morais pela “reportagem” absurda.)
Se fosse “Negão” uma personalidade ou pelo menos um menino de classe média, morto nas mesmas condições, o crime seria apurado até a última vírgula. O carroceiro talvez não vá se tornar só mais uma estatística porque o crime ocorreu em uma região nobre, em que as pessoas puderam presenciar o ocorrido e este ocorrido teve repercussão. Fosse numa favela ou num garimpo, poderia ser dada a certeza de que só seria um corpo a mais e nada mais. Exatamente como não deve ser, o Brasil nunca primou por cuidar de seus filhos, especialmente os mais desprotegidos – prova são as chacinas de posseiros por grileiros nas disputas de terra, como continua ocorrendo na Amazônia do século 21.
No Brasil de hoje, mais do que nunca, vale mais ter do que ser. Assim, não importa quem seja o porco que suja as ruas cada vez que abre a janela de seu carro importado: ele “tem”. “Negão” e seus colegas párias, sem nada ter, apenas “são”. Um processo de apagamento – às vezes até literal, como foi com o carroceiro – que a atual geração não tem dado perspectivas de superar.