Estatuto cria a figura do infrator de família que substituiu o menor de rua
25 março 2014 às 14h01
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Hoje, os menores roubam, traficam droga, integram gangues, depredam escolas e, graças ao Estatuto da Criança e do Adolescente, já nem precisam ir para a rua — homiziam-se no seio da própria família, como se nada tivesse ocorrido
José Maria e Silva
Quem na década de 80 já era ao menos adolescente deve lembrar-se que o grande problema nacional daquela época eram os menores de rua, eufemisticamente chamados de “meninos e meninas de rua”, que formaram até uma associação nacional, engendrada por adultos, obviamente. Esses menores vagavam como molambos humanos pelas vias da cidade, portando saquinhos de plástico amarelo-avermelhados com porções de cola de sapateiro, o crack da época. Uma pesquisadora goiana, Maria Avelina de Carvalho, hoje doutora em linguística pela UnB e professora da Universidade Paulista (Unip), fez fama nacional ao conviver com aqueles menores, durante o seu mestrado na Universidade Federal de Goiás, entre 1985 e 1989, que resultou no livro de título intragável, “Tô Vivu”, lançado pela Editora da UFG em 1991.
E, nas telas do cinema, um grande sucesso era o filme “Pixote”, de Hector Babenco, lançado em 1980 e festejado internacionalmente no ano seguinte, com premiações na Suíça, França, Espanha, Austrália e Estados Unidos. O filme retrata a história de Pixote, um menor infrator de 11 anos, que é preso na Febem de São Paulo e se envolve com tráfico de drogas, prostituição e assassinato. Como era típico dos filmes brasileiros da época, “Pixote” mistura violência e pornografia, apesar das crianças que dele participam, e tem cenas entre incestuosas e pedófilas protagonizadas pela atriz Marília Pera e os atores mirins que viviam os menores infratores – especialmente o Pixote que dá título ao filme, vivido por Fernando Ramos da Silva, então com 12 anos e praticamente um menor infrator na vida real.
Oriundo de uma favela de Diadema, no ABC Paulista, onde morava com a mãe e nove irmãos, Fernando foi escolhido entre cerca de 1.500 candidatos para viver “Pixote” nas telas, o que lhe rendeu uma carreira meteórica de ator, com um contrato para fazer novelas na Rede Globo. Chegou a participar da novela “O Amor É Nosso”, em 1981, mas seu contrato foi rescindido pela Globo, porque, semianalfabeto, não conseguia decorar as falas. Resultado: Fernando Ramos da Silva não conseguiu se firmar como ator e voltou para a sórdida favela mostrada realisticamente no início do filme, onde morava com a mãe e nove irmãos, envolvidos pelo tráfico de drogas que imperava por entre o imenso amontado de barracos. Acabou baleado e morto por policiais na favela de Diadema em 25 de agosto de 1987, aos 19 anos, suscitando um livro, “Pixote Nunca Mais”, de Cida Venâncio, e um filme, “Quem Matou Pixote?”, de José Jofilly, produzido em 1996.
O marco da Chacina da Candelária
No início do filme “Pixote”, com uma espessa barba negra de revolucionário ou profeta, Hector Babenco faz uma introdução panfletária para inglês ver, citando dados sociológicos sobre a miséria da época, encarapitado diante de uma grande favela de Diadema, em que mostra Fernando Ramos da Silva com sua mãe e seus irmãos em frente ao barraco onde moravam. Mas o naturalismo podre do cinema nacional não foi capaz de humanizar o menor infrator que Hector Babenco finge defender naquele prefácio audiovisual e que teve concretamente à sua disposição durante as filmagens. Pelo contrário, ao pegar um menino miserável de apenas 11 anos e colocá-lo para aprofundar na tela a sordidez da própria vida, chegando a pô-lo para mamar no peito da atriz Marília Pera, numa cena incestuosa e pedófila, o filme corrompe o que restava de infância no Pixote real, iludindo-o com o gosto efêmero de um mundo de sonhos – e ao mesmo tempo sórdido – que estava muito além de seu alcance.
Em todo o filme “Pixote”, talvez a única cena que conte a favor de Hector Babenco seja um trecho de seu discurso introdutório no limiar da favela de Diadema, que deveria servir de reflexão para os fanáticos defensores do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), contrários à necessária – e urgente – redução da maioridade penal. Depois de afirmar que, naquele ano de 1980, 28 milhões de crianças brasileiras viviam abaixo das normas exigidas pelos direitos das crianças preconizados pela ONU e que cerca de 3 milhões de crianças não tinham casa nem origem familiar definida, Babenco sustentava: “A situação da criança é tanto mais caótica quando se sabe que criança só é passível de condenação por algum delito cometido após os 18 anos de idade. O que permite o aliciamento das crianças menores de 18 anos por parte de alguns adultos para que elas possam cometer algum tipo de crime ou de delinquência, sabendo que elas não serão punidas, no máximo, serão enviadas a um reformatório, onde conviverão um par de meses e onde, pela pressão e pela falta de vagas, serão automaticamente colocadas em liberdade”.
Antes de analisar essa fala de Hector Babenco à luz do Estatuto da Criança e do Adolescente, é preciso resgatar outro marco na história dos menores infratores no País – a Chacina da Candelária, no Rio de Janeiro, ocorrida em 23 de julho de 1993, dez dias depois do terceiro aniversário do Estatuto da Criança e do Adolescente, quando seis menores e dois adultos que moravam na rua foram assassinados por um grupo de homens entre os quais havia policiais e ex-policiais militares. A Chacina da Candelária teve na infância brasileira o mesmo impacto deletério que o Massacre de Carandiru teve na segurança pública. Assim como os presos se tornaram intocáveis depois de Carandiru, o menor infrator se tornou sagrado depois da Candelária. A morte daqueles menores mobilizou universidades, imprensa, Pastoral do Menor e demais formadores de opinião, forçando a sociedade brasileira a tirar do papel o Estatuto da Criança e do Adolescente. A partir daí, intensificava-se não só a impunidade do menor infrator, mas também a sua transformação num vírus moral, que destrói as famílias e criminaliza as favelas.
Menores de rua saem de fininho
Foi nesse contexto que o problema dos menores de rua – rebatizados de meninos e meninas de rua – entrou na pauta de prioridades do debate nacional, mobilizando instituições públicas e privadas, que, aos poucos, forçaram a criação de toda uma estrutura burocrática de proteção à infância e à adolescência. Na prática, esse arcabouço burocrático em prol dos menores infratores só tem servido para desperdiçar dinheiro público e aumentar a acintosa impunidade dos criminosos – não apenas dos menores, mas também dos facínoras adultos que terceirizam para a menoridade seus próprios crimes, como já reconhecia Hector Babenco antes mesmo da aprovação do Estatuto. Por mais idealistas e operantes que sejam os conselhos tutelares, eles são impotentes para resolver o problema de menores precocemente monstruosos, como o que atirou no olho de sua namorada de 14 anos um dia antes de chegar à maioridade. E fatos como esse só vêm aumentando a cada dia, desde a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 13 de julho de 1990.
Paralelamente a essa burocracia estatal, também proliferaram em todo o País, nas décadas de 80 e 90, organizações não governamentais voltadas para o atendimento a menores de rua, que de “não governamentais” só tinham o nome: a maioria – senão todas – mamava nas tetas do Estado. Volta e meia apareciam reportagens ou artigos na imprensa mostrando que, em determinadas cidades, havia mais ONGs desse tipo do que menores de rua. Mesmo assim, essas organizações não paravam de crescer e criaram uma espécie de metalinguagem dos meninos e meninas de rua, que, em si mesma, era um ritual, infensa a críticas, pois qualquer reparo que se lhe fizesse era considerado uma forma inaceitável de preconceito. Um verso que depois ficaria famoso, da autoria do menestrel paulista Giovani Mendes Baffô, sintetiza bem essa mística do menor de rua: “Em casa de menino de rua, o último a sair apague a lua”.
Engraçado é que, de uma hora para outra, os menores de rua saíram de fininho do debate público e nunca mais voltaram. Hoje, é como se não existissem menores de rua, pois praticamente não se fala mais neles. As universidades, ONGs e todos os governos estão preocupados é com a população adulta de rua, no meio da qual se incluem os drogados, protegidos por novas ONGs parasitas, e os loucos, expulsos do abrigo hospitalar pela luta antimanicomial da esquerda. Essa crescente e perigosa população adulta de rua já é fruto, em parte, da apropriação do espaço público pelos menores de rua na década de 90. Muitos desses meninos e meninas, fazendo sexo a céu aberto nos logradouros da cidade, reproduziram-se feito coelhos, criando uma geração de crianças que nem tinha como apagar a lua, pois lhe era impossível sair da rua – transformada em sua propriedade privada, graças à proteção do Estatuto da Criança e do Adolescente, por meio de políticas públicas fantasiosas, como educar os menores para usar camisinha.
Mãe e menor infrator: circulo vicioso
O outro fator que eclipsou dos olhos da gente falante os menores de rua e colocou em seu lugar os maiores drogados foi, sem dúvida, a impunidade garantida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, com reflexos diretos na família brasileira. Atentem para o noticiário policial de praticamente todas as cidades do País. Todos os dias, os jornais noticiam a apreensão de menores de idade traficando drogas, muitas vezes em porta de escola. E como é que terminam essas reportagens? Invariavelmente elas informam que o menor foi levado até a delegacia, seus pais foram chamados, a mãe apareceu sozinha, pois quase nunca eles têm pai, e o menor foi entregue a ela, com as devidas admoestações do delegado e do conselheiro tutelar, à luz do Estatuto da Criança e do Adolescente. Resultado: dias depois, o menor é apreendido traficando drogas novamente, é entregue outra vez à mãe e esse círculo vicioso se completa até que ele mate alguém ou atinja a maioridade, pois um menor infrator que zomba até da autoridade policial não vai ouvir conselhos e ralhos de uma mãe impotente.
Eis aí porque os menores de rua deixaram de ser tema prioritário no debate público, dando lugar aos usuários de droga. A existência do menor de rua no passado se devia à incompatibilidade entre a infração penal e a vida em família – excetuando-se aquelas famílias totalmente comprometidas com a criminalidade. Tão logo o menor de uma família trabalhadora se envolvia em pequenos furtos, ele era fortemente pressionado pelos pais – muitas vezes com a ajuda a polícia – a abandonar esse tipo de vida. Caso o menino levasse uma surra em casa por roubar ou traficar droga, o delegado não autuava seus pais nem o conselho tutelar ameaçava abrir um processo contra eles. Sentindo-se acuado pelas autoridades domésticas e públicas, só restava ao menor infrator as seguintes alternativas: conformar-se com a honestidade de seus pais e se submeter a ela ou fugir de casa e ir morar nas ruas.
Hoje, os menores roubam, traficam droga, integram gangues, depredam escolas e, graças ao Estatuto da Criança e do Adolescente, se homiziam no seio da própria família, como se nada tivesse ocorrido. Em 9 de março último, na cidade paranaense de Goioerê (29.743 habitantes), um adolescente foi pego pela polícia portando um revólver calibre 32. A arma ficou na delegacia e ele foi entregue à família. No dia seguinte, ele roubou motocicleta da mãe para entregar ao dono da arma. Sua mãe deu queixa na delegacia, a moto foi recuperada e, mais uma vez, ele voltou para o seio da família. Então passou a pressionar a mãe para conseguir o dinheiro para pagar a arma. Diante da recusa, resolveu sequestrar a própria irmã pequena, pedindo R$ 5 mil reais de resgate, sob a ameaça de jogá-la no rio. Felizmente, a polícia encontrou o menor no meio do mato com a irmã e, apesar da resistência, ele foi preso, na verdade, “apreendido”, segundo a novilíngua do Estatuto.
Naturalização do crime nas famílias
Em outros tempos, um menor com esse grau de periculosidade já teria sido expulso de casa para viver nas ruas e, toda vez que fosse preso, a polícia jamais cogitaria entregá-lo aos pais. Ele iria diretamente para um reformatório. Provavelmente, não seria reformado, mas ao menos pouparia seus pais e irmãos da convivência com um criminoso dentro de casa. Hoje, esse tipo de menor infrator já não tem necessidade de ir para a rua, pois, em nome de sua impossível recuperação, a família e a escola são obrigadas a incluí-los em seu convívio. É óbvio que, em vez de recuperar o menor, a família vai é ser chantageada e corrompida por ele, começando pelo fato de que as mães, como o pai da Parábola do Filho Pródigo, tendem a ficar sempre do lado do filho imprestável, prejudicando os demais. Esse é o grande mal do Estatuto da Criança e do Adolescente: ele não se limita a garantir a impunidade de criminosos até os 18 anos (o que já ocorria antes) – na prática, vai muito além e, no afã de justificar o comportamento criminoso do menor, acaba criminalizando toda a sua família e, por extensão, as comunidades onde vivem.
Quando a dentista Cinthya de Souza, arrimo dos pais idosos e de uma irmã com deficiência mental, foi queimada viva por um bando de criminosos em São Paulo, entre eles vários menores, a mãe de Thiago de Jesus Pereira, de 25 anos, considerado o líder do bando, simplesmente saiu-se com essa para alegar a inocência do filho: “Acho estranho porque ele só saía pra roubar às seis horas e esse caso [da dentista morta] foi à tarde”. Vejam a naturalização do crime pela própria família do criminoso, como se roubar fosse apenas uma forma legítima de trabalho. Sem dúvida, esse criminoso de 25 anos não se tornou tão cruel somente depois de adulto. Como diz o provérbio, espinho quando tem de furar já nasce com a ponta fina. Ele deve ter praticado várias infrações penais quando menor, sendo mantido pela lei no seio da família até que sua própria mãe, diante de um Estado leniente, começou a achar normal seu filho sair para roubar todos os dias e recolher-se à casa, com horário marcado, como se fosse um burocrata do crime.
Aliás, essa naturalização do crime por parte das mães foi cantada em verso por Chico Buarque na célebre canção “Meu Guri”, de 1981, contemporânea do filme “Pixote”. Trata-se de uma espécie de hino ao menor infrator, em que o compositor mal esconde seu deslumbramento com a mãe que, fazendo-se de inocente, finge que o filho morto nas batalhas do crime era um anjinho em vida. Hoje, a ideologia que anima as instituições que atendem ao menor infrator é a mesma dessa apologia ao crime de Chico Buarque. Prova disso é a declaração do promotor Renato Varalda ao jornal “Correio Braziliense” (edição de 13 de março) a propósito do menor que, horas antes de completar 18 anos, matou com um tiro no olho a namorada de 14 anos, fez um vídeo do crime e o enviou para seus amigos. Indagado sobre a proposta de redução da maioridade penal, diante desse caso, o promotor reagiu contrariamente, afirmando: “No sistema penitenciário, só 10% dos detentos têm acesso a estudo. O primeiro impacto negativo seria a interrupção dos estudos desses meninos. Fora isso, está mais do que comprovado que o sistema não recupera ninguém”, afirmou.
Reparem no absurdo dessa declaração. Apenas algumas horas separavam o menor infrator sujeito a medidas socioeducativas de três anos do adulto criminoso que poderia ser condenado a 30 anos de prisão. E o menor sabia disso, tanto que resolveu matar a namorada para intimidar os amigos horas antes de completar a maioridade. Mesmo diante desse espantoso grau de frieza e crueldade, o criminoso é chamado de “menino” pelo promotor, o que se torna ainda mais grave porque sua vítima, sim, era uma indefesa menina, de apenas 14 anos. Toda vez que, com base no Estatuto da Criança e do Adolescente, uma autoridade se coloca contra a redução da maioridade penal porque ela teria o “impacto negativo” de interromper os estudos desses “meninos”, na prática se está afirmando que a obrigação do Estado é manter os menores infratores na escola o máximo possível – à custa da segurança e da dignidade das demais crianças e adolescentes, especialmente as meninas, obrigadas a conviver com esses que serão, indiscutivelmente, seus algozes.