Ver no outro um pedaço de nós é algo que deveria servir como elo. No fim, diferentes somos todos nós

Renato Moreira, com a banca de sua defesa de dissertação: doutores Marcelo Brice, Francisco Rabelo (orientador) e Manuel Ferreira Lima Filho

— Finalmente, uma ótima notícia! Já era hora de fazerem valer os direitos da criança para 35 e não para uma só!
— Que ótimo para os meninos! Espero que possam estudar e estar tranquilos!
— Um alívio para os nossos. Agora é esperar que isso seja oficializado.
Assim começa uma matéria da edição nacional do “El País”, sobre um assunto triste e, infelizmente, longe de ser “fake news”: a satisfação de mães de alunos do Instituto San Antonio, da cidade de Pádua, situada no distrito de Merlo, na Grande Buenos Aires, com uma “vitória” coletiva: a transferência para outra turma de um aluno portador da síndrome de Asperger, uma forma branda de autismo. Embora elas quisessem que o garoto fosse “convidado a se retirar” da escola, a medida como se deu acabou satisfazendo as mães – o fato de continuar lá, mas não na mesma sala do 4º ano, seria um “mal menor”.

Mas nem é preciso ir tão longe para que a discriminação seja sentida. Ao saber da história acima, uma amiga, professora e ex-proprietária de uma escola infantil, comentou ter já presenciado, em Goiânia, um grupo de pais conseguindo afastar um aluno com diagnóstico de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) de uma sala de aula, sob alegação de que ele tinha uma personalidade “mais agressiva” em relação aos demais. Também disse já ter sabido, por uma amiga, mãe de uma criança autista, que alguns diretores de estabelecimento de ensino na capital educadamente pediram para ela procurar outro lugar para matriculá-la.

Com exceção de algumas ilhas de saber, o proceso educacional não tem vida fácil em nenhum lugar do Brasil. Se são minoria os profissionais preparados para lidar com as dificuldades de alunos classificados como “dentro dos padrões”, seja qual área for, imagine como é a situação de pessoas especiais em um país em que a educação, por regra, só é priorizada (quando é) durante campanhas eleitorais, seja no discurso bonito de candidatos ou em pretensas exigências de quem vota – nunca soube de alguma manifestação genuína de pais por melhoria do currículo das escolas de seus filhos. É simples assim: de geração a geração, semeamos nossa própria ignorância.

Renato, em sua defesa: síndrome não impediu sucesso acadêmico

E, como diz um provérbio de origem árabe, a ignorância é vizinha da maldade. Às vezes, elas são tão cúmplices que nem fazem questão de muro para dividir seus terrenos.
O que seria daquele menino argentino se tivesse sido apoiado, em vez de sofrer rejeição? Poucas daquelas mães argentinas, bem como dos pais e diretores de colégios goianienses a que se referiu o parágrafo seguinte, terão o prazer de ver o filho concluir uma pós-graduação “stricto sensu” e, assim, poder ser chamado merecidamente de “mestre” ou “doutor”, conforme as normas da etiqueta acadêmica.

Nesse sentido, se Goiânia teria de se envergonhar, um pedaço dela pode se orgulhar. Em agosto, a Universidade Federal de Goiás (UFG) ganhou um mestre com síndrome de Asperger. Aos 28 anos, Renato Moreira Araújo defendeu sua dissertação no Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS), da Faculdade de Ciências Sociais (FCS), sob o título “A representação dos setores subalternos na obra musical de Chico Buarque”, uma sequência do trabalho de pesquisa que já desenvolvia desde a graduação.

Não foi fácil chegar até a conclusão do trabalho. Uma novidade? Não exatamente, aliás, pelo contrário. Difícil é encontrar, após anos de dedicação, um mestrando ou doutorando que conclua a tarefa com um percurso de “céu de brigadeiro”. As turbulências são várias: incertezas, fobias, angústias em relação ao objeto de estudo e a sua redação. Orientador de Renato, o professor Francisco Chagas Evangelista Rabelo expôs em um texto como foi orientá-lo. Alguns excertos são interessantes para entender como o processo de um aluno especial pode se assemelhar ao de qualquer outro.

“Ao incorporar Renato ao grupo de orientandos sob minha responsabilidade, cultivei veleidades de que iria resolver muitas coisas. Estava a dissertação adiantada, comecei a duvidar de meus propósitos, além de desenvolver um sentimento de que nada tinha resolvido. Depois, considerei que elas estavam resolvidas a seu modo. Ao modo do Renato. E, nessa medida, a dissertação era a expressão de um orientando portador da síndrome de Asperger”, escreveu.

Na verdade, indo na linha que o professor coloca, todos temos nosso “modo”. Foi o que eu disse ao próprio Renato, em um bate-papo que deu substância a esta matéria. “Mas, se alguém considerado ‘normal’ tira uma nota baixa, é só uma nota baixa; mas, se ocorre o mesmo com o portador de alguma síndrome, a ‘culpa’ é da síndrome”, disse-lhe.

Renato então conta que, por seu jeito, passou por brincadeiras de amigos e colegas durante a infância e a adolescência, mas que tinha as dificuldades próprias dos demais alunos em sala de aula, nos colégios convencionais, que frequentou durante todo o ensino fundamental e médio. “Às vezes minhas notas não eram boas em matemática ou física, mas me dava bem com história, geografia, filosofia. Tive dificuldades normais, como qualquer aluno as tinha também, mas nunca fui reprovado”.

Entrou para a faculdade em 2009, aprovado em 13º lugar entre 60 vagas para o curso de Ciências Sociais. Na universidade, a sociabilidade melhorou e o transcurso acadêmico foi mais tranquilo do que esperava. “Nunca deixei de ter amigos, o que me ajudou bastante. Tenho problema em me sentir sozinho e para isso tive em minha família um grande suporte. Meu pai, minha mãe (já falecida), meu irmão: todos sempre colaboraram para me dar o apoio necessário”.

Mais uma vez, de minha parte: de que difere a situação de Renato em relação aos outros estudantes dentro do padrão? Seriam os mesmos sem a compreensão e a dedicação da família?

Interessante é que Renato só descobriu que era portador da síndrome de Asperger já concluindo a graduação, em 2013. Anterior­mente, na adolescência, tivera diagnóstico para hiperatividade. O agora mestre se prepara para a seleção ao doutorado do mesmo programa, para dar seguimento a sua pesquisa.

Fica como reflexão uma palavra usada pelo professor Rabelo no texto que leu no dia da defesa de Renato: neurodiversidade, um termo cunhado em 1996 por ativistas em prol dos portadores da síndrome de Asperger. Não temos no mundo duas cabeças iguais, mas o diferente pode não ser tão diferente assim.

O mundo clama, cada vez mais, por empatia. Mas falar de empatia se tornou algo “fofo”, “agradável” de ler e ouvir, quase uma espécie de termo essencial para manuais de autoajuda. Não é nem deve ser. Empatia é apenas ver no outro um pedaço de nós, que nos iguala e que nos deveria servir como ponte. Diferentes, uns dos outros, somos todos nós.
Se Renato tivesse concluído agora sua carreira acadêmica, já deixaria um documento aos admiradores da obra de Chico Buarque. E penso: quantas pontes nos caminhos não foram quebradas pela força da ignorância? l