A historieta abaixo é contada por Gary Player, um sul-africano profissional do golfe, que ficou conhecido como “Cavaleiro Negro” – por sempre jogar de roupas pretas – e é reverenciado como um dos melhores da história do esporte. O ano era 2002 e ele concedia uma entrevista para a revista Golf Digest relembrando um fato ocorrido 40 anos antes:

— Eu estava treinando em um campo no Texas e um rapaz com um chapéu grande parou para assistir. A primeira tacada que ele me viu golpear foi direto para o buraco. Ele então disse: “Você ganha 50 dólares se fizer assim na próxima”. E eu repeti. O rapaz continuou: “Você ganha 100 dólares se acertar de novo”. E isso aconteceu. Ele bancou nova aposta e outra vez acertei. Três em sequência. Enquanto tirava as notas, ele disse: “Nunca vi ninguém tão sortudo na minha vida”. E eu respondi: “Quanto mais eu pratico, mais sorte eu tenho”.

Na verdade, essa é uma das muitas histórias a respeito do mesmo enredo. Há muita controvérsia sobre como teria surgido esse tipo de anedota que insinua o sucesso ligado à sorte, mas que fecha com a resposta passando pelo desempenho de algum tipo de tarefa árdua: ou a repetição do esforço (treinamento), ou a persistência no trabalho ou a busca incessante pelo conhecimento. Nesse último, a variante remonta a mais de dois milênios atrás: o mestre Confúcio teria dito “quanto mais você souber, mais sorte você terá”.

Desde que os números da economia brasileira deram uma guinada para cima, nos últimos meses, a grande mídia, majoritariamente, passou a considerar Lula um “sortudo”. Para a maioria dos editorialistas e comentaristas dos jornalões e portais de política, uma maré de bons acasos e medidas de governos anteriores – como a autonomia do Banco Central (BC), a partir de 2021 — são as responsáveis pelo cenário atual.

Entre as várias explicações para o aparente bom momento da economia brasileira, estão, entre outras, o manejo da taxa de juros e do controle da inflação, ambos protagonizados pelo BC; o crescimento da safra e o boom das commodities, graças ao agronegócio; e as privatizações e reformas liberais recentes, responsabilidade dos governos anteriores. O que o atual governo teria feito de positivo? Embora não seja opinião unânime, o arcabouço fiscal elaborado pelo Ministério da Fazenda, tendo Fernando Haddad, seu titular, à frente, foi bem recebido pelo mercado. É a fina fatia dos louros pelo cenário positivo atual que reservam a Lula.

Quem viveu a transição do governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) para o primeiro mandato de Lula vai notar alguma semelhança: o petista era aquele que traria o socialismo para o País, embora – desde a queda do Muro de Berlim, pelo menos – isso já não fosse visto como nada além de um grito sem sentido no meio do nada, para causar pânico. Era o medo do “comunismo”, que vem em ondas, como observado de novo recentemente. Depois do sucesso do Plano Real, o Brasil de 2002 se debatia com inflação em alta, real desvalorizado e credibilidade em baixa.

O petista, então, seguindo a máxima bradada pelo veterano senador Esperidião Amin (pP-SC), fez da política um violino, tomando o poder com a esquerda e tocando-o com a direita. Implantou políticas públicas extremamente necessárias para um País tão desigual, como o Bolsa Família e as cotas raciais. Tirou o Brasil do mapa da fome, mas priorizou também o controle da inflação e os superávits da balança comercial. No fim e no máximo, foi um governo de perfil socialdemocrata.

Em seu terceiro mandato, ele fecha agora o primeiro de seus oito semestres de governo. Segundo os analistas, é a partir de quando poderá ser sentido algum efeito que vá além da inércia — positiva ou negativa — advinda da gestão anterior. O fato é que, até o momento, dois Lulas se apresentaram: um para a grande imprensa e a classe média, que gostam de polêmicas e se alimentam delas para seus debates; e outro para os remediados e as classes mais economicamente desfavorecidas, que precisam de ação em vez de qualquer coisa abstrata.

Em defesa da Amazônia, Lula discursa para milhares no evento Power Our Planet, em Paris | Foto: Stephanie Lecocq / Reuters

Ao primeiro, pode-se chamar de “Lula falador”. É aquele que estampa as manchetes dos jornais, dando opiniões desconcertantes sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia, criticando as maiores economias mundiais, alfinetando o agronegócio e – talvez a discussão preferida – fazendo embate direto e incisivo contra Roberto Campos Neto, o presidente do BC, espumando de desgosto por sua irredutibilidade em baixar a altíssima taxa de juros.

Esse é o Lula exposto pelos e aos formadores de opinião. Na sexta-feira, 23, uma grande reportagem sobre o presidente estampava a capa do Libération, um dos maiores jornais franceses, de perfil progressista, com referências pouco elogiosas. “Lula, a decepção”, era a manchete. No conteúdo interno, o principal título registrava a mágoa com o brasileiro: “Lula, o falso amigo do Ocidente”. Adiante, nas páginas seguintes, o texto citava a dificuldade de articulação do governo com o Congresso Nacional, especialmente na Câmara dos Deputados.

A segunda faceta de Lula é pouco apresentada, talvez porque atualmente só seja percebida longe demais das capitais – ou de seus centros nervosos. É onde as medidas que foram implantadas desde o início de seu governo já começam a fazer efeito: as periferias das cidades, as cidades periféricas dos Estados, seus rincões e currutelas.

Nesses locais encontram-se os personagens que deram voto ao petista confiando em janeiros passados, “nos tempos de Lula”, quando pobre tinha mais comida no prato e mais autoestima na alma. É pelo bolso mais cheio que se consegue tanto uma coisa quanto a outra. Para esses, a queda no valor do gás de cozinha, de alguns alimentos e também dos combustíveis, principalmente o diesel, faz uma diferença muito maior do que para quem está da classe média para cima.

Tomemos o exemplo de Trindade, uma cidade da Grande Goiânia, onde parte da população consiste de famílias que não podem arcar com o maior custo de vida da capital, mas ao mesmo tempo estão condicionadas pelo emprego a fixar residência na região metropolitana. O Instituto Municipal de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon Trindade), faz uma pesquisa periódica de preço do botijão de gás. Em 18 estabelecimentos visitados em dezembro, o maior preço era de 115 reais. Em junho, seis meses depois, a mesma entidade visitou 20 locais e o maior valor encontrado foi de 100 reais.

Para uma família de classe média, que tem TV por assinatura, plano de saúde e pode pedir comida por aplicativo em vez de cozinhar, tanto faz se o gás custa 100 ou 115 reais. Já para quem ganha salário mínimo, depende do SUS e do transporte coletivo no entanto, a diferença corresponde a um item a mais a ser acrescentado na cesta básica: compra-se uma caixa de sabão em pó, ou dois quilos de feijão ou ainda um litro de óleo mais farinha de trigo. Não é pouco para quem tem pouco.

Outro parâmetro a analisar é o da cesta básica. Entre dezembro de 2022 e maio de 2023, segundo a Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos, desenvolvida pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o valor da cesta básica teve em Goiânia acréscimo de exatos 26 centavos: de R$ 704,63 para R$ 704,89. Ao aumento nulo no custo do que é essencial para a subsistência sobreveio a fixação do benefício do Bolsa Família em 600 reais, com o acréscimo de 150 reais por criança de até 6 anos, mais ainda adicional de 50 reais por crianças e adolescentes até 18 anos e para gestantes. É muita grana entrando para quem se acostumou a ser esquecido.

É bem provável que seja por isso que algumas pesquisas no interior de Goiás – um Estado de espectro mais inclinado à direita do que ao petismo, é bom lembrar – já captam, ainda que como “dado colateral” (não procurado diretamente no trabalho de levantamento), um aumento da popularidade de Lula. Um pesquisador arrisca-se a dizer que “nos próximos meses” os números favoráveis ao presidente vão “explodir”.

José Pereira dos Santos, porteiro: “Está mais fácil ir à feira” | Foto: Elder Dias/Jornal Opção

Na vida do porteiro José Pereira dos Santos, natural de Santana (BA), no oeste da Bahia, o semestre do novo governo já causou mudanças. Eleitor de Lula confesso, ele diz que já sente a diferença na hora de ir às compras: “Está mais fácil fazer a feira, comprar o óleo, levar arroz pra casa”, relata. Mas conta também que o genro bolsonarista ainda não cedeu às “evidências” de melhora.

A ideologia política pesa para os mais fanáticos, mas o fato exposto por números de pesquisas recentes já apontam que grande parte dos eleitores mais moderados que votaram em Jair Bolsonaro (PL) pelo menos não está execrando o governo Lula: segundo a Ipec divulgada no dia 9 de junho, 41% do total deles considera a atual gestão federal ao menos regular e 8% está entre o “bom” e o “ótimo”.

Lula é um “sujeito de sorte”, como escreveu o Estadão em editorial da semana passada, parafraseando o verso de Belchior? Talvez, como considera Maquiavel, o veterano líder tenha lá sua estrela (a “fortuna”, nos escritos do filósofo político italiano), mas como diz o ditado do início do texto, ele trabalha (a “virtù”, nas palavras do mesmo pensador) por seu destino benquisto. Se a marca de seu antecessor foi promover motociatas e incentivar manifestações antidemocráticas, até o momento Lula tem tido uma rotina de caixeiro viajante: só para a Europa fez três viagens, e também já foi à Argentina, ao Uruguai, aos Estados Unidos, à China, aos Emirados Árabes. Antes de começar seu mandato, esteve também na COP27, realizada no Cairo, capital do Egito. Nada por turismo, como demonstram as manchetes, às vezes nem positivas, como as do Libération: o presidente está lá fora para vender seu peixe, conversando com líderes mundiais e buscando fazer alianças.

Lula é isto: um “falador”, como julga a imprensa nacional, a parte dela mais elitista achando que o nordestino pouco letrado se julga mais do que é e não sabe se pôr em seu lugar. E ele realmente provoca, instiga, como fez com o chanceler alemão, Olaf Scholz, na sexta-feira, 23, ao citá-lo na cúpula organizada pelo governo francês de Emmanuel Macron para discutir um novo pacto financeiro global. “Se eu pudesse, ia pegar o chanceler alemão, ia levá-lo para ser ministro de Minas e Energia no meu País, para ele poder transformar todos os nossos minérios em produtos para exportar produtos acabados, e não apenas minério”. Uma fala que geraria climão, mas terminou com aplausos espontâneos em um discurso arriscado, improvisado, mas que acabou sendo forte e ousado na medida certa.  

O “Lula falador” e o “Lula fazedor” são um só, embora quem o veja tenda a enxergar somente uma dessas facetas, de acordo com o ponto – inclusive socioeconômico – de onde o observa

Em meados do século 20, o linguista britânico John Langshaw Austin elaborou a teoria dos atos de fala. Nela, a linguagem é performance: o falar vai muito além da mera transmissão de informações, é a expressão de uma ação e representa uma forma de agir sobre o interlocutor e sobre o mundo circundante, dando sentido a ele. Dessa maneira, podemos dizer que o “Lula falador” e o “Lula fazedor” são um só: trabalham juntos, embora quem o veja tenda a enxergar somente uma dessas facetas, de acordo com o ponto – inclusive socioeconômico – de onde o observa.

Afinal, fazer política é, em essência, marcar posição expondo com veemência as próprias ideias. É isso que Lula está fazendo desde o dia seguinte ao de sua eleição. Foi assim que, ainda sem mandato, fechou acordo para a aprovação no Congresso da PEC da Transição, sem a qual não teria nem orçamento de verdade para governar; foi assim, também, que negociou a troca do impraticável teto de gastos pelo arcabouço fiscal, mais realista, e cujo texto final, aprovado pelo Legislativo, deve seguir em breve para sua sanção presidencial.

Talvez não com a mesma precisão de Gary Player, o golfista do início do texto, mas o petista vai executando suas tacadas, priorizando, como sempre ressalta, a agenda dos mais pobres, sejam pessoas, sejam países. Em ambos os casos, a resistência da elite é grande. O que não se pode negar é que o “atrevimento” das palavras de Lula faz coisas acontecerem. Um “sujeito de sorte” que, longe de fazer mágica, pela “virtù” cria sua própria “fortuna”.