Embargo do Nexus prova como o funcionamento das instituições pode salvar uma cidade

18 junho 2016 às 13h01

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Imprensa, setores organizados da sociedade — como o CAU-GO —, Ministério Público e Poder judiciário fizeram um trabalho conjunto que resultou em vitória diante de uma importante e difícil batalha

Elder Dias
É verdade que o poder econômico impera Brasil afora — e que Goiânia é a capital de um Estado ainda periférico, embora mais bem posicionado nas últimas décadas. É verdade que a política tem seus interesses pouco republicanos, que afetam o cotidiano do cidadão e podem mudar o status de uma cidade com uma canetada — e vem por aí a tentativa oficial absurda de promover mais uma expansão urbana no município. É verdade, ainda, que nunca nenhum projeto grandioso por aqui foi interrompido por conta apenas da força de uma mobilização.
Mas é verdade também que isso tudo tem mudado. Basta uma rápida passada de olhos ao redor, a partir da conjuntura brasileira: megaempresários na cadeia, tendo de fazer delações premiadas para se safarem, com certa economia de tempo, da privação de liberdade; políticos se articulando de maneira desesperada para tentar desarticular o trabalho da Operação Lava Jato; redes sociais derrubando ministros; e um juiz de primeiro grau atemorizando todo o mundo dos poderosos.
Alguma coisa parece, portanto, estar fora da ordem natural histórica — e apodrecida pelos séculos — deste País. Se no mundo da casa grande hoje há gente da senzala pisando no tapete, isso se deve aos anos de PT no governo, mas não são consequências apenas disso. Existe um apelo, que advém da própria Constituição Federal de 1988, para que isso aconteça — e cujo conteúdo parece estar de fato dando seus primeiros frutos agora, mais de um quarto de século depois.
A Lava Jato prova que o Brasil pode (e deve) mudar. E isso gera reflexos às vezes imperceptíveis, não apenas na conjuntura nacional: há um sentimento de “fazer o certo” que tem sido introduzido no dia a dia das pessoas. Está claro que é muito bom perceber que ações assertivas poderão estar a um alcance cada vez mais palpável das mãos dos cidadãos de agora em diante.
Na semana passada, a Justiça determinou o embargo das obras do Nexus Shopping & Business, um megaempreendimento que pode alterar a paisagem e o ritmo da cidade em uma região vital, já que está projetado para o cruzamento de duas vias arteriais — na Praça do Ratinho, no encontro das Avenida D e 85. Por conta do conhecido poderio do setor imobiliário na capital, muitos julgaram como “batalha perdida” uma empreitada dessa monta. Para alcançar a recente sentença liminar, o caso Nexus contou com vários componentes institucionais que fizeram sua parte — e outros que não cumpriram o que deveriam, é bom que se diga.
Pode-se dizer que sem um veículo de comunicação disposto a bancar o tema o embargo teria acontecido? É pertinente a negação, no caso. Protagonista de denúncias desde a primeira hora, o Jornal Opção foi a porta de entrada para que os demais entes acabassem envolvidos. A partir de uma papelada com cópias dos formulários preenchidos do estudo de impacto de vizinhança (EIV) apresentado pelas construtoras Consciente e JFG, sócias no Nexus, e repassadas pelo vereador Djalma Araújo (Rede), que contestava seus dados, como um todo, o jornal procedeu uma apuração investigativa, envolvendo suas duas equipes (edição diária e semanal), que chegou até a consultar um perito. Bingo: a suspeita que havia, de falsificação de assinaturas, ficou ainda mais evidente.
Desde seu lançamento, em outubro, o Nexus já foi capa do semanário por pelo menos 16 vezes. Sua versão diária (online) também sempre tratou o tema com absoluta prioridade. Foi uma campanha aberta contra o empreendimento? Sim, porque o entendimento jornalístico era de que esse seria o papel a cumprir para denunciar algo que estava tramitando de forma errada e que poderia prejudicar sensivelmente todo o conjunto da cidade.
Mas por que outros veículos não entraram na “briga”? Talvez por não terem, nesse caso, uma “margem de liberdade” para fazer a cobertura — os empreendedores investiram pesado na publicidade em diversas mídias. Não se pode pensar que jornalismo se faça sem interesses: eles existem e trazem limitações à atuação. Mas a diversificação dos canais de comunicação traz o fator positivo de, com a cobertura de um (ou alguns) deles, recuperar o que poderia ser perdido com o desinteresse dos demais. O Jornal Opção foi o vetor que fez a cobertura necessária para o caso, salvaguardando o papel institucional da imprensa.
Como parceiro de primeira hora, a publicação contou com o aval técnico do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Goiás (CAU-GO). A entidade, em si, já é um presente para a sociedade: homologada como tal no último dia do governo Lula, em 2010, tornou-se, agora autônoma do Conselho de Engenharia e Agronomia (Crea), e vem ganhando poder e importância desde então nas discussões sobre a cidade. A acessibilidade e o posicionamento de seus conselheiros deram respaldo à cobertura e fizeram avançar o tema. Não é preciso ser exatamente um expert para saber o tamanho do impacto ambiental — e consequentemente de vizinhança e, também, de trânsito — que uma obra do porte do Nexus causaria em uma região já tão adensada como os setores Marista e Sul. Mas ter repercussões do tema avalizadas tecnicamente deixa tudo em outro nível de autoridade.

Isso deu suporte para que, depois de publicações reiteradas — uma sequência de reportagens a partir de outubro —, o Ministério Público Estadual (MPGO) resolvesse entrar na história. Com o promotor Juliano de Barros Araújo à frente, o órgão fez um levantamento minucioso da documentação e solicitou ao CAU-GO um relatório à parte sobre a situação do Nexus como empreendimento. As diferenças entre as medidas e números apurados pela comissão do conselho em relação aos dados do projeto original foram gritantes.
Em meio a isso, o MP entrou com uma ação civil pública na Justiça. Temia-se — e muitos davam isso como certo — que ela seria indeferida. Mas não foi o que ocorreu: na segunda-feira, 13, o juiz Fabiano de Aragão Fernandes, da 2ª Vara de Fazenda Pública, determinou a imediata suspensão das obras — a licença ambiental havia sido concedida em maio e os trabalhos no local começaram dia 1º de junho. De pronto, os operários interromperam sua movimentação. Mais uma vitória do caminho institucional.
É bem verdade que a trilha também teve seus percalços. Nem sempre as instituições funcionaram de acordo com o que pedia a cidade. Embora em questão não implicada diretamente no caso — mas em uma demonstração do poder das construtoras —, na Câmara de Goiânia a Comissão Especial de Inquérito (CEI) das Pastas Vazias, conhecida como CEI das Pastinhas, depois de muito estardalhaço, pouco avançou. O relatório final isentou os servidores diretamente responsáveis pelo setor na Prefeitura. Na Comissão de Constituição, Redação e Justiça (CCJ) houve a rejeição do decreto legislativo que pedia a cassação do alvará do complexo.
Na administração municipal, as portas nunca estiveram fechadas para o Nexus. O atual secretário municipal de Planejamento Urbano e Habitação, Sebastião Ferreira Leite, o Juruna, tem ligação estreita com o setor imobiliário — já advogou para algumas das maiores construtoras da capital. Já o titular da Agência Municipal de Meio Ambiente (Amma), Rodrigo Melo, possui afinidade com Júnior Friboi, seu padrinho político e também dono da JFG Incorporações, empresa que banca o Nexus ao lado da Consciente Construtora, de Ilézio Inácio Ferreira.
Talvez os EIVs e os EITs [estudos de impacto de trânsito], bem como outros relatórios e papéis processuais necessários à execução de uma obra, até então servissem em Goiânia — como, talvez, na imensa maioria das cidades brasileiras — apenas como documentação “pró-forma”, para integrar a burocracia. Como aquelas fotos 3×4 para concurso que têm de constar de uma relação que já pede uma certidão de identidade com foto: todos sabem que não terá uso algum, mas entram ali porque estão pedindo. Talvez nem o próprio Ilézio, mentor do megaempreendimento, tivesse noção de que um desses documentos “simplórios” poderia atrapalhar o andamento da obra, de alguma forma.
Sim: na Goiânia do século 21, gerida pelo conceito de “cidade sustentável”, um relatório que deveria servir para analisar o potencial de incômodo que uma construção poderia causar em suas imediações — e, a partir dele, gerar medidas preventivas ou mitigadoras — era, até então, visto como um papel “pra inglês ver”. A ponto de serem recolhidas assinaturas irregulares. Em outros países isso seria um escândalo, uma aberração — imagine algo assim ocorrendo em Estocolmo, a capital da Suécia. O fato de ocorrer é desanimador; mas outro fato — o de essa falha grave, ao ser verificada, levar a uma punição, ainda que provisória — traz alento: estamos caminhando para uma relação mais igualitária entre os que nada podem e os que tudo têm? É possível, embora ainda estejamos muito longe de uma situação ideal. Entre esses “prós” e “contras”, o caso Nexus mostra um passo significativo na mudança da relação entre os poderosos e as leis. Como aliás, em nível nacional, a Operação Lava Jato vem mostrando que isso é não só possível, como necessário.