Embargo da vaca louca força pecuaristas a encontrarem alternativas

28 novembro 2021 às 00h02

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Apesar de embargo chinês, indústria da exportação de carne deve crescer em Goiás. Anaslistas estimam queda na média brasileira
No dia 4 de setembro, dois casos da doença da vaca louca foram detectados em frigoríficos brasileiros. O laboratório da Organização Mundial de Saúde Animal (OIE), no Canadá, é a última instância de referência no diagnóstico diferencial para a doença e confirmou que se trataram de casos atípicos de encefalopatia espongiforme bovina (EBB). Esta forma da doença é considerada pouco preocupante e órgãos responsáveis publicaram que todas as ações necessárias para a mitigação de risco foram tomadas antes mesmo da emissão do resultado pelo laboratório. Entretanto, sob alegação de risco, a exportação de carne brasileira foi embargada pelo principal comprador do país – a China. Com o impacto devastador na indústria da carne, estados pecuaristas começam a encontrar alternativas.
O Brasil é um dos principais exportadores de proteína animal para o mundo, e a China o principal importador, correspondendo a 56% de todo comércio internacional. O impacto foi suficiente para causar queda no preço da arroba bovina na B3 de R$ 320 para R$ 240 no ponto mais grave da crise. Em comparação com o ano passado, o Instituto para o Fortalecimento da Agropecuária de Goiás (Ifag) estima para o Brasil uma queda de 29 milhões para 27,3 milhões de cabeças de gado abatidas para exportação. Em Goiás, apesar do embargo, as exportações devem aumentar de 2,7 milhões para 2,8 milhões de cabeças.
Renato Espiridião Júnior, pecuarista criador de gado nelore, conta como é a perspectiva dos exportadores de carne de Goiás. “O impacto comercial foi grande. Muita gente tomou prejuízo porque investiu em confinamento do gado, já que as projeções eram de crescimento. Com o embargo, todos os planos mudaram: os animais foram soltos no pasto, abates foram adiados para aguardar a normalização dos preços, os frigoríficos aumentaram o estoque. Nós tivemos de correr para o mercado interno: com excesso de oferta, houve redução dos preços na ponta e isso estimulou os compradores brasileiros, o que segurou as contas”.
Boas notícias
Nesta terça-feira, 23, uma boa notícia das autoridades alfandegárias chinesas chegou à indústria de carne bovina brasileira. Pedidos de importação que tenham recebido certificado sanitário antes de 4 de setembro serão liberados na alfândega. Isso potencialmente permitirá que os carregamentos retidos nos portos chineses finalmente sejam liberados. Se estima que o volume parado nos portos chineses seja de cerca de 100 mil toneladas

Para Tereza Cristina, ministra da Agricultura, a liberação da carne certificada antes do embargo representa um primeiro passo rumo à retomada das exportações regulares para a China. “Não existe motivo de preocupação nem para os nossos consumidores nem para os consumidores externos. Essa liberação alivia os nossos exportadores que tinham muitos desses contêineres no mar ou em portos, que serão então liberados para entrarem na China”, afirmou a ministra à agência Reuters.
Teresa Cristina frisou: “Agora, temos um próximo passo para liberar a suspensão da carne brasileira daqui para frente. Estamos em andamento neste processo e espero que isso aconteça ainda no próximo mês”. A ministra disse que Brasil já encaminhou todos os documentos solicitados pelas autoridades chinesas, que estão analisando as informações enviadas.
Entretanto, talvez a crise possa deixar um legado positivo. Com o embargo chinês, os exportadores brasileiros foram forçados a buscar novos compradores. A Rússia havia deixado de comprar carne brasileira em 2017 devido a uma substância (ractopamina) aditivada à ração para promover crescimento muscular dos animais. Há dois anos o Brasil deixou de utilizar o aditivo, que está sendo banido em diversos países, e há a promessa de que a Rússia reabra as portas para exportação brasileira. Se isso acontecer, o país poderá reconquistar o mercado de dois milhões de toneladas anuais.
Há também a promessa de crescimento de 10% das exportações de carne bovina com o avanço do status do país em relação à febre aftosa. Atualmente, o Brasil está na categoria dos países “sem febre aftosa e com vacinação”, mas a expectativa é de que a doença seja erradicada e, caso novas infecções pelos vírus do gênero Aphthovírus não ocorram, pode avançar para a condição de “sem febre aftosa e sem vacinação”. Essa condição é exigida por países como Canadá, Japão e Coréia do Sul. Marcelo Penha é analista de mercado do Ifag e afirma que, apesar do mau momento, a perspectiva é de crescimento para o futuro, especialmente em Goiás.
O analista de mercado especialista na indústria da carne tira uma dúvida que surge quando se considera que o Brasil nunca teve o caso típico e contagioso da doença da vaca louca, mas mesmo assim enfrenta embargos. “Naturalmente questões sobre a rigidez da norma sanitária são levantadas, principalmente nas redes sociais. Lemos conjecturas a respeito de a doença da vaca louca ser apenas um pretexto e o embargo ser na verdade uma retaliação por comentários hostis dos políticos, por gafes diplomáticas. Mas não temos evidências de que esse seja o caso; nenhuma prova concreta. Há maneiras mais simples e prováveis de explicar a situação.”
Marcelo Penha diz que as ferramentas para o embargo já estavam previstas nos protocolos sanitários assinados pelos dois países e, mesmo que se trate do caso atípico da doença, a situação é normal. Para o analista, parece mais provável que a China tenha suspendido importações por questões internas: crise econômica causada pela pandemia de Covid-19, inflação, falência da Evergrande – segunda maior incorporadora imobiliária chinesa. Apesar de podermos elocubrar sobre essa tese, na opinião do analista de mercado é importante ressaltar que o protocolo é feito com base em critérios científicos de biossegurança.
O que é a doença da vaca louca?
Álvaro Ferreira Júnior é o atual chefe do setor de Medicina Veterinária Preventiva da Escola de Veterinária e Zootecnia da Universidade Federal de Goiás (EVZ-UFG). O doutor em Imunologia e Parasitologia Aplicadas explica que a Encefalopatia Espongiforme Bovina, EEB, é uma doença que compromete o encéfalo dos bovinos, degenerando suas células nervosas e deixando em seus lugares vacúolos que fazem com que o cérebro se pareça uma esponja – daí o nome.

A EEB não é causada por vírus ou por bactérias, mas sim por prions. O termo prion vem do inglês para “partícula proteica infecciosa”, e corresponde a trechos de proteínas anormais com capacidade de autorreplicação que causam graves problemas nos organismos por reagir com proteínas normais em células do cérebro. Os prions são resistentes à pasteurização, altas temperaturas e qualquer tipo de medicamento desenvolvido até hoje, comenta Álvaro Ferreira, e, por isso, órgãos internacionais exigem que a propagação das doenças priônicas seja evitada com rígidas normas sanitárias.
No caso atípico que ocorreu no Brasil, animais idosos desenvolvem a forma espontânea da doença – sem uma cadeia de transmissão. Álvaro Ferreira explica: “Mas, quando o gado morre, a doença pode passar adiante caso os príons sejam ingeridos por outros animais. Isso ocorria antigamente, quando a carcaça podia ser aproveitada para alimentação dos bovinos. Atualmente, isso é proibido, a ração é composta exclusivamente por soja, milho, e jamais carcaças de outros animais.”
Álvaro Ferreira comenta o procedimento legal quando há suspeita de vaca louca. “Geralmente, no caso atípico, o animal é eutanasiado sem mais problemas. Então, a vigilância sanitária estadual é notificada para fazer o diagnóstico diferencial, pois algumas doenças têm impacto na saúde pública, como é o caso da raiva e da vaca louca, ou impacto na economia como o herpesvirus bovino. Caso haja dúvida no diagnóstico, a análise laboratorial é feita pelos Laboratórios Federais de Defesa Agropecuária (LFDA). Então, a Organização Mundial de Saúde Animal (OIE) é informada e o caso é reportado a todo o mundo. Qualquer autoridade interessada pode acompanhar a qualquer momento o que está sendo feito.”
A rigidez das normas tem o objetivo de evitar a ingestão dos príons por seres humanos, o que pode levar à doença priônica neurológica humana – a Doença de Creutzfeldt-Jakob (DCJ). Essa doença é semelhante à EEB dos bovinos: ataca o sistema nervoso central provocando demência e anormalidades nos movimentos por dano nos tecidos do cérebro, não tem tratamento e leva à morte.
“É Muito importante destacar que a doença atípica é um fenômeno espontâneo que acontece em animais velhos mas que não apresenta risco para a sociedade. Na fazenda, você pode ter uma vaca velha que amanhece doente, com comportamento diferente. O fazendeiro provavelmente vai abater e descartar, mas é muito importante ressaltar que é necessário o cuidado de chamar um médico veterinário para fazer o diagnóstico diferencial. Hoje estamos tranquilos quanto às políticas públicas, o serviço de vigilância é rápido. O nosso gargalo está na ponta, pois muitos fazendeiros não são informados de que animais com sintomas neurológicos não devem ser manuseados por conta própria. É necessário o atendimento com um médico veterinário para não expor a família a riscos sanitários!”, ressalta Álvaro Ferreira Júnior.