O melhor caminho para reconstruir um País sempre será olhar para trás e reconstruir a história sem repetir os mesmos erros

Fernando Collor, político e dublê de atleta

Eu era um molecote adolescente que estudava de manhã e à tarde fazia as vezes de office-boy do pequeno escritório de contabilidade de meu pai. Carregando guias de pagamento, blocos de notas fiscais e livros de registro, rodava a cidade toda, sempre de ônibus. Nas viagens com a cabeça encostada no vidro ou pendurado no corrimão, a distração era a paisagem: prédios e praças, mansões e casebres, letreiros e pichações.

Pichações que não eram nenhuma novidade, mas naquele tempo as frases em spray costumavam ser frases legíveis e não códigos de tribos urbanas. Foi assim que, observando Goiânia da janela lateral, no meu ato de ir e vir, dentro do transurbão no Eixo Anhanguera, lá pelos lados do Setor Aeroporto me deparei com uma inscrição em tinta preta sobre um muro branco. Ou cinza, talvez, a precisão da cor não é o mais necessário. O chamativo era a mensagem.

“Collor 88”. O nome de um político de Alagoas, desconhecido do Brasil até pouco tempo antes, mas que ganhara notoriedade em alguns meses, após ter assumido o governo de seu Estado e promovido muito barulho com sua forma de administração. Ele passou a ser chamado de “caçador de marajás” – funcionários públicos com altos salários e muitas mordomias, o que, como as pichações dos muros, também não era nenhuma novidade. O governador era dublê de atleta, faixa-preta de caratê, esbanjando vitalidade pelos poros em páginas e monitores.
Evidentemente, havia uma boa dose de colaboração de meios de comunicação de alcance nacional – o que, mais tarde seria revelado por Augusto Nunes, um dos jornalistas de proa do País que ajudaram na ascensão do fenômeno alagoano. A revista “Veja” de 23 de março daquele ano traria uma capa que se tornaria clássica, com o jovem político em pose imponente à frente de um quadro em que um militar ergue uma espada. O título? “Collor de Mello – o caçador de marajás”.

Na pichação da Avenida Anhanguera, aquele número de dois dígitos à frente do sobrenome de Fernando Collor se referia ao ano em que seria a eleição. Seria, não fosse a manobra do então presidente José Sarney para ganhar mais um ano de mandato, o que foi concretizada pelos constituintes em junho. Um ano muda muita coisa. Em 1988, o Collor do spray, era, em minha visão – e provavelmente na do pichador, também –-, quase um subversivo, um revolucionário. Faltava história e maturidade cívica para entender o que de fato era aquele personagem recém-descoberto – fosse para mim, como adolescente, fosse para o povo brasileiro como um todo, que voltava a votar para presidente quase 30 anos após a eleição de Jânio Quadros, em 1960.

A famosa capa da “Veja” que iniciou o ciclo nacional de Collor

Para os que na época se interessaram em ir além de ler a revista “Veja” ou assistir ao Globo Repórter sobre o mesmo personagem, Collor não era mais nem tão herói nem tão revolucionário assim. Por trás da personalidade forte havia mais um filhote político das tradicionais oligarquias nordestinas. O discurso não se sustentava com a prática longe dos holofotes e dizeres da mídia.

O que teria feito de Collor o primeiro presidente eleito após quase três décadas? Muito se explica pelo quadro econômico. A inflação do ano anterior havia fechado o ano acima da casa dos 1.000%. Era mais ou menos assim: se em janeiro alguém esquecesse no colchão um dinheiro com que compraria uma TV nova, em dezembro não traria da padaria um pacote de café, um pão francês e um litro de leite com a mesma quantia.

A dureza dos tempos atuais é de outro modelo. Apesar do fantasma do desemprego ainda aterrorizar, a inflação dá sinais de queda e, ainda que nivelada por baixo, a economia parece ter se estabilizado. Os demônios de hoje são outros: a desconfiança total dos políticos, a sensação de onipresença da corrupção, a violência das ruas e o radicalismo dos discursos.
Se a vontade do povo se personificasse, provavelmente geraria um monstro gigantesco que devoraria Brasília e todas as sedes administrativas de governos e prefeituras País afora. Como efeito colateral da Operação Lava Jato, o personagem político foi satanizado. Cresce o número de descrentes e aumenta a fileira de adeptos de uma impensável e bizarra intervenção militar.
Qual a alternativa? Os últimos tempos, especialmente as últimas eleições, revelaram o ovo de Colombo: agora, para ter sucesso eleitoral, é preciso ser político negando-se como tal. Entre as figuras que lograram êxito com essa artimanha, a mais notável é a do empresário João Doria (PSDB), eleito prefeito de São Paulo.

João Doria, o gestor dublê de gari; ambos fugiram do padrão para conquistar o voto de um eleitor desnorteado

Doria faz política da forma mais tradicional: veste-se de operário, anda de cadeira de rodas, varre ruas, pinta muretas. A diferença é que se diz gestor, e não um político. Ao mesmo tempo, para ganhar popularidade, viaja por todo o País, bem longe da “empresa” que gere, também conhecida como a capital paulistana. Qual sua pretensão com isso, senão a de uma candidatura a presidente?

Sabendo da rejeição explícita que passou a ter, por boa parte da sociedade, pensamentos considerados progressistas – algumas pautas morais, desarmamento, liberalização das drogas etc. –, o prefeito tem radicalizado cada vez mais seu discurso, especialmente para atacar o PT e o ex-presidente Lula. Coincidente­mente, quase 30 anos depois o veterano líder sindical, após passar pelo ápice da política e agora enfrentar o banco dos réus, pode reencontrar na disputa, caso possa ser candidato novamente, senão um Collor, um simulacro equivalente.

E o que pensar de Jair Bolsonaro? Deste, não se pode dizer que seja um novo Collor, apesar de querer fugir também do estereótipo do político tradicional. Mas, assim como Doria e outros espécimes, ele chama para si a figura messiânica, daquele que virá para resolver tudo e a todos salvar da corrupção e da baderna com seu “prendo e arrebento”.

Em momentos de crise, pensar vira detalhe. Como diz uma frase colhida esses dias, para quem está se afogando jacaré vira tronco. Este é o problema: no desespero, para não morrer de um mal, opta-se por se matar com outro. O melhor caminho sempre será olhar para trás e reconstruir a história sem repetir os mesmos erros.