E se fosse a água e não gasolina?
18 novembro 2017 às 11h08
COMPARTILHAR
O pânico instaurado na última semana diante de um eventual desabastecimento de combustíveis na Grande Goiânia precisa ser avaliado – e comparado – à luz da crise hídrica
Elder Dias
É manhã de quinta-feira. O mostrador do tanque de combustível entrou em alerta máximo: sumiu o último “gominho” do painel. O carro anda na reserva há quatro dias, e só está assim já porque durante esse tempo descansou na garagem no feriado e só fez metade do percurso nas viagens ao trabalho na segunda e na terça-feira – o serviço de bicicleta compartilhada foi bastante útil. Usar o menos possível é a forma de reagir contra o alto custo do etanol que o move.
Mas a pane seca é iminente. Hora de parar no posto e o atraso ao primeiro compromisso do dia já se torna inevitável. Não pela fila para reabastecer, que só tem dois automóveis à frente, mas pelo que mostra o aplicativo de fluxo de trânsito: três pontos de engarrafamento até o local da chegada. Atravessar a cidade em meia hora seria possível, mas não nesse cenário.
A semana foi de protestos em Goiânia pelo aumento abusivo no preço dos combustíveis nos postos depois de uma série de reajustes concedidos pelo governo federal. A Petrobrás começou no fim de junho uma nova política de revisão de preços. Com a justificativa de acompanhar as condições do mercado e enfrentar a concorrência de importadores, a empresa não mais espera um mês para ajustar seus preços: agora, para se adequar, avalia diariamente o quadro.
Por coincidência ou não, de 1º de julho a 10 de novembro o valor médio nacional do litro de gasolina subiu de R$ 3,51 para R$ 3,938 – um aumento de 12,1%; o litro do etanol, foi de R$ 2,451 para R$ 2,745 – 12% a mais. O óleo diesel ficou em média 10% mais caro. No mesmo período de quatro meses, a inflação não chegou nem perto de 1%.
Na capital goiana, a situação foi mais grave. A suspeita de cartel – para quem observa a dinâmica sincronizada dos preços é bem mais do que “suspeita” – dos postos de combustíveis já é algo estressante para os condutores de veículos. E o valor do combustível da capital ou lidera ou está entre os mais altos do País nos últimos tempos.
Dessa vez, então, o copo da paciência transbordou. As distribuidoras de combustível que ficam no polo de Senador Canedo, na Grande Goiânia, tiveram suas saídas bloqueadas por manifestantes – caminhoneiros, donos de vans, motoristas de Uber e outros. Houve um medo de desabastecimento. Foram dois dias de movimento e tensão, que levaram a mensagens apocalípticas e comparações com a série “Mad Max” na imprensa e em redes sociais.
Trilogia clássica produzida entre os anos 70 e 80, “Mad Max” ficou conhecido como o filme pós-apocalíptico em que gasolina valia ouro. Em 2015, o quarto filme da série teve a água como tesouro precioso. Combustível e recursos hídricos, motivos de guerras no deserto da Austrália.
Combustível e recursos hídricos, temas de dramas goianos nos últimos meses. Entretanto, colocadas na balança, a revolta com o aumento absurdo dos valores dos combustíveis e a tensão gerada em Goiânia e em todas as cidades de seu entorno por causa de um eventual desabastecimento nos postos mostraram claramente um cenário mais agudo do que a reação da mesma população diante do quadro preocupante dos recursos hídricos. Mesmo no pico da seca, não houve protestos em frente à Saneago ou qualquer destruição de maquinário agrícola ou industrial que fosse entendido como “culpado” da falta d’água.
Ou melhor, este ano ainda não houve. Não aqui. Em Correntina, no Oeste da Bahia, a pressão da crise hídrica sobre a população já se encontra em outro nível. O Rio Corrente – que corta a cidade e ajuda a lhe dar nome – e seus afluentes correm perigo por conta do avanço da expansão agrícola e do desmatamento de forma desregrada. A cada ano, centenas de milhares de hectares de vegetação original dão lugar a fazendas-empresas, geralmente tocadas por brasileiros vindos de outros Estados ou multinacionais. Os nativos se sentem como “índios brancos”, desalojados do próprio lugar por uma força muito maior. Em vez de armas de fogo de bandeirantes, o poder econômico do agronegócio.
O resultado disso foi uma ação de desespero bem semelhante à de tribos acuadas: semanas atrás, dezenas de pessoas invadiram as instalações de uma propriedade rural e destruíram o equipamento de irrigação que seria instalado. Foi uma espécie de “chega” à exploração abusiva da água por poucos em detrimentos de toda uma população.
O homem passou milênios e milênios sem precisar de petróleo. Mas nunca conseguiu viver sem água. O que difere as reações das pessoas, quanto a um risco ao suprimento de uma necessidade primária – a sede – e o perigo de ficar sem andar de carro?
Explicações mais profundas passam pelos terrenos da psicologia, da antropologia e da sociologia. Em uma percepção mais rápida, o fenômeno tem a ver com os critérios de prioridade e necessidade da própria população.
Podem ser observadas algumas semelhanças nas crises: o cidadão ataca o Estado tanto pela falta d’água quanto pelo aumento do preço da gasolina, ainda que as razões para as críticas sejam de origens diferentes. Há o sentimento de que o combustível está caro porque houve aumento na alíquota do ICMS – o que é só parte da verdade – enquanto outro sentimento afeta a crença na competência da Saneago, empresa estatal que não estaria dando conta de fornecer a estrutura necessária para o abastecimento da população.
Obviamente, protestos contra abusos econômicos não são só válidos como sinal de uma sociedade que sabe o que quer. Mas o que dizer da falta de cobrança de soluções a respeito da água e de tudo o que a cerca e protege – os demais recursos naturais, a vegetação nativa, o saneamento, a destinação do lixo?
Talvez um cidadão mais perspicaz possa compreender um cenário mais de longo prazo: assim como em “Mad Max”, a preocupação com a água vai aparecer depois da disputa pelo combustível. Apocalipses sem combustível parecem, em princípio, caóticos, mas superáveis; sem água, ainda não se tem como superar nenhum.