A morte do arcebispo emérito de Goiânia, aos 90 anos, tira de cena um protagonista do ideal de igreja como comunidade

Dom Antônio Ribeiro: uma vida na simplicidade | Foto: Arquidiocese

Elder Dias

Foi uma coincidência interessante: às vésperas da entrada no tempo estabelecido pela Igreja Católica como de maior recolhimento no ano litúrgico – os 40 dias da Quaresma –, quem se recolheu foi Dom Antônio Ribeiro de Oliveira. Vítima de um infarto, o arcebispo emérito de Goiânia, morreu terça-feira, aos 90 anos, durante uma visita que fazia a amigos em uma residência no Setor Goiânia 2.

A Quarta-Feira de Cinzas na Catedral Metropolitana, onde ele celebrou suas últimas missas – inclusive no domingo, dois dias antes de sua morte –, foi atípica. Diante do altar não estavam apenas os fiéis devotos para marcar o início da quarentena de penitência, jejum e oração; estava lá o corpo do homem que talvez fosse a última liderança remanescente de um período em que a Igreja tinha outra atmosfera.

Dom Antônio se tornou arcebispo de Goiânia em 1985, mas já conhecia os rumos que deveria seguir desde 1957, quando se tornou o chefe da paróquia sediada naquela mesma Catedral. Por 18 anos ele conviveu com o trabalho de Dom Fernando Gomes dos Santos, considerado um dos esteios de resistência à ditadura em Goiás e um dos maiores defensores dos pobres e excluídos dentro da Igreja, ao lado de nomes como Dom Hélder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Tomás Balduíno e Dom Pedro Casaldáliga, este o único que ainda está vivo.

Filho de família de católicos fervorosos, Antônio nasceu na cidade de Orizona em 1926, a 140 quilômetros de Goiânia. Ainda com cerca de 10 anos, ingressou em um seminário preparatório, na cidade de Silvânia, também da Região da Estrada de Ferro. Com apenas 22 anos, foi ordenado padre em Mariana (MG). Foi pároco em sua terra natal por dois anos, de 1955 a 1957, quando veio para a capital. Quatro anos depois se tornava bispo auxiliar de Dom Fernando – sua ordenação episcopal foi em 29 de outubro de 1961. Tornou-se o segundo bispo diocesano de Ipameri, em 1975, de onde retornaria, enfim, para o comando da Igreja de Goiânia.

De todos os que testemunham sobre Dom Antônio, uma fala é comum: homem simples, de uma atenção ao interlocutor e uma sensibilidade imensa com os mais desfavorecidos pela vida. Um religioso de fé “prática”, que a mostrava com seus atos e seu jeito de pastorear seu rebanho.

Eis uma outra característica particular do arcebispo: sua humanidade. Muitas vezes se despia da autoridade de pastor e se igualava às ovelhas, como se fosse mais uma delas. Participava de festas, não se incomodava de haver bebidas à mesa, jogava truco. No velório de Antô­nio, o jornalista Luiz Henrique Parahyba lamentava por, mais do que um bispo, ter perdido um amigo de pescaria e conversas animadas por uma “caninha”. O servidor público federal e ex-seminarista Renato Afonso desabafou: “Seu gesto de pai acolhedor, de amigo, de pai, ficarão para sempre comigo, passe o tempo que passar. Ele será sempre meu bispo, pois me ensinou a ser Igreja na Arquidiocese de Goiânia.”

Ao ser ordenado, cada bispo escolhe um lema. Não à toa, obviamente, o de Dom Antônio era “ut unum sint” – em latim, o equivalente a “que sejam um”. A valorização da comunidade foi algo que não passou despercebido de seu tempo de 17 anos à frente da Arquidiocese de Goiânia: ele deu continuidade ao legado de seu antecessor e inspirador, Dom Fernando, e acentuou a participação dos leigos, com as assembleias arquidiocesanas.

Em 2002, veio a “aposentadoria compulsória”. Com 75 aos, os bispos católicos devem renunciar ao cargo. Dom Antônio passou o bastão da Igreja de Goiânia a Dom Washington Cruz, de vida totalmente devotada e grande espiritualidade, mas que implantaria um ritmo diferente à Arquidiocese. Como toda mudança de liderança, houve na base os conflitos de aceitação dos novos tempos, mas Antônio seguiu à risca seu papel como arcebispo emérito: discreto, responsável, obediente e, quando necessário, prestativo.

Na comemoração de seus 90 anos de vida, no ano passado, Dom Antônio declarou: “Nâo posso ajoelhar de fato. Então, vim com a alma ajoelhada para agradecer ao Pai Eterno esses anos de vida”, disse, após cerimonia no Santuário Basílica do Divino Pai Eterno, em Trindade. Não poderia negar: foram nove décadas muito bem vividas.

Do sentido comunitário à religião do Deus “self-service”

Dom Antônio talvez fosse um pouco mais sisudo, talvez mais tímido, mas seu jeito tinha muito do que se vê no papa Francisco: a humildade, a simplicidade e a atenção ao pobre, características presentes em ambos. O resumo disso pode ser um avançado sentido de empatia, que, no cristianismo ganha um termo particular: compaixão. Compadecer-se, se aproximar das emoções e angústias do próximo, porém, é algo cada vez mais raro, mesmo entre os católicos.

É que se vive um tempo de religião egocêntrica, em que se cria um “Deus self-service”, que existe para satisfazer necessidades pessoais. As missas mais lotadas não são as que celebram um Deus místico e elevado – como se dá, por exemplo, entre os passionistas, a congregação de Dom Washington –, mas as que fornecem “curas”, “libertações” e outras panaceias para o dia a dia: a “graça” de um emprego, o “milagre” de uma conquista material (um novo carro, um aumento salarial), o “livramento” das drogas etc.

Sem fazer juízo de valor sobre as diversas espiritualidades, é possível prever que, se fosse houvesse votação popular para papa no Brasil, talvez uma figura como o padre Marcelo Rossi ganharia com facilidade. Fiéis lotam suas celebrações em busca de se livrar de doenças, dependências, desempregos. É a religião do “vinde a mim”, cada vez menos a do “pão nosso”, o que se expressa de modo evidente nas canções religiosas – basta comparar as letras de um compositor dos anos 70 e 80, como Padre Zezinho, às das estrelas da música católica atualmente. O uso da primeira pessoa do singular e da voz imperativa passou a ser de uma constância questionável. Novos tempos, não necessariamente tempos mais cristãos, na acepção do termo. (Elder Dias)