Dia do Livro: entre letrados e leitores, mercado literário resiste em Goiás

29 outubro 2023 às 00h01

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Neste domingo, 29 de outubro, é comemora do Dia Nacional do Livro. Para o presidente da União Brasileira dos Escritores (UBE) Seção Goiás e eleito para a cadeira 31 da Academia Goiana de Letras (AGL), Ademir Luiz, temos sim o que comemorar porque, segundo ele, nunca se publicou tanto e com tanta qualidade gráfica quanto agora no país. “Estão surgindo diversos clubes do livro pelo Brasil, o interesse por cursos de escrita criativa é crescente, multiplicam-se edições de luxo de livros clássicos, há diversos eventos literários acontecendo. Há vários indicativos de que ainda existe muito interesse pelo objeto livro, tanto pela produção quanto pela leitura”, comentou.
Para o presidente do Conselho Estadual de Cultura, Carlos Willian Leite, há sim motivos para comemorar, principalmente pela ascensão da literatura feminina. “O cenário literário do país, anteriormente dominado por autores masculinos e carente de renovação, vem sendo transformado e enriquecido por uma nova geração de escritoras”, destacou. Segundo ele, os trabalhos de alta qualidade preenchem um espaço que estava vazio e têm ganhado, inclusive, reconhecimento internacional. “Um fenômeno similar ao vivido pelas escritoras argentinas na década anterior”, completou.
Apesar do cenário parecer otimista, Ademir pondera que, ao mesmo tempo, o escritor irlandês Oscar Wilde continua certo quando disse que “nosso tempo lê demais para ser letrado”. “E ele estava falando do século XIX. Parece que por mais que o livro ainda seja um suporte cultural importante, ele segue sendo de nicho”, completou. O presidente da UBE em Goiás explica esse fenômeno pelo aumento populacional. “Temos leitores, mas considerando o número total da população, é muito pequeno”, justificou.
Mas Carlos Willian analisa ainda que apesar das dificuldades, como o fechamento de livrarias o aumento da concorrência “frente às novas formas de entretenimento”, a prática da leitura se mantém em alta no país. “A facilidade em adquirir livros na atualidade compensa a perda das livrarias físicas, reforçando que o essencial não são os locais de venda, muitos dos quais se converteram em espaços de convivência, mas sim o acesso aos próprios livros”, avaliou.

Quando perguntado se o goiano, em geral, tem o hábito da leitura, Ademir é taxativo: “Definitivamente, não. Mas isso não surpreende”. Mas o escritor reforça que esse é um fenômeno que ocorre em todo o país e não apenas em Goiás. “O estranho e lamentável é que a maior parte de nossos profissionais liberais, professores, jornalistas, médicos, advogados, arquitetos entre outros, leiam tão pouco e, geralmente, o que leem seja de baixa qualidade estética e cultural”, criticou.
O presidente do Conselho Estadual de Cultura reconhece que Goiás ainda não cultivou uma tradição literária robusta, o que reflete na falta do hábito da leitura, em geral, do povo goiano. E ele sugere que é preciso mudanças estruturais e iniciativas editoriais mais ambiciosas para promover uma “cultura de leitura mais rica”. “A falta de grandes editoras e a tendência a publicações locais restringidas confinam a literatura goiana. Projetos como a coleção Prosa e Verso, mesmo com boas intenções, acabam saturando o mercado com trabalhos de qualidade variável, desmotivando tanto leitores quanto pontos de revenda”, criticou.
Mercado editorial goiano: desafios e potencialidades
Atualmente, não existe o dado oficial – e fiel – de quantos escritores existem em Goiás. “Até porque é complexo determinar exatamente o que é ser um escritor. É só quem publicou livro de papel? Alguém que escreve na internet não é?”, destacou o presidente da UBE no Estado. Mesmo assim, há indicativos. A União Brasileira de Escritores Seção Goiás, por exemplo, tem hoje entre 300 e 400 associados. “Esse é um recorte pequeno do número total”, ponderou Ademir, que também preside a instituição.
Apontado pelos críticos como um dos principais expoentes da literatura goiana, o escritor Edival Lourenço recebeu, em 2012, o troféu Jaburu, pelo conjunto da obra, e o Prêmio Jabuti na categoria romance com a obra “Naqueles morros, depois da chuva”. Antes dele, só um outro autor goiano já tinha vencido a premiação, que é uma das mais importantes do país: Bernardo Élis, em 1968.
No entanto, o escritor, para sobreviver, sempre teve outros trabalhos. “Hoje ninguém consegue viver dignamente na escrita. Quem vive assim, não está fazendo isso certo, mas de uma forma comercial, que não tem valor literário”, lamentou. Por isso, uma atividade rentável paralela, na visão dele, é fundamental para autores. “Para poder tocar a vida, tem que pensar numa profissão que dê renda, sustento e forma de sobreviver”, relatou.
Ademir Luiz, da UBE e AGL, acredita que um dos problemas enfrentados pelo mercado literário goiano é a distribuição. “Mesmo para os interessados, há poucos sebos e livrarias que disponibilizam livros de autores goianos. Geralmente ficam em estantes escondidas em cantinhos. Não creio que, na maior parte das vezes, seja por má vontade dos comerciantes. Simplesmente não é um produto que gera muito interesse”, explicou.
E os motivos para que os autores goianos sejam “desprestigiados” mesmo em Goiás são os mais diversos, de acordo com Ademir. “O fato é que não existe lógica comercial para lhes dar destaque no espaço da loja. Sem interesse, sem espaço. Segue o círculo vicioso”, avaliou. E mesmo diante desse cenário, ele reconhece que surgiram boas editoras. “A Martelo, a Nega Lilu, a Mondru e a Chafariz estão fazendo produtos de qualidade jamais vista por aqui”, elogiou.
Para a gerente editorial Ione Valadares, da Cânone Editorial, nosso Estado vive os mesmos desafios que o mercado nacional. E, para ela, a crise tem a ver com fatores como a ascensão do livro digital, que tem tomado o lugar do livro impresso; a pandemia, que fez com que as pessoas aprendessem a comprar de grandes redes; e, principalmente pelo fato de o consumo per capta de livros no Brasil ser baixo.
Para se ter uma ideia, a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pró-livro em 2019 (a mais recente), existem cerca de 100 milhões de leitores no país. O número representa cerca de 52% da população. No entanto, o número representa uma queda de aproximadamente 4,6 milhões de leitores, entre 2015 e 2019. O estudo considera leitor toda pessoa que leu, inteiro ou em partes, pelo menos um livro nos últimos 3 meses antes de sua realização.
Para Ione, o que explica a falta de hábito de leitura do brasileiro é a desigualdade social. “Muita gente até gostaria de comprar livro, mas não tem condições”, afirmou. Mas ela também critica como a escola tem trabalhado a leitura com seus alunos, incentivando a leitura de forma que eles tomem gosto pelo hábito. “A gente falha na escola. Os professores muitas vezes também não são leitores”, pontuou.
A gerente editorial destacou ainda que Goiás é um Estado que tem bons escritores, bons críticos literários e também um conjunto de pessoas e instituições culturais sólidas. “O trabalho é bem feito, mas o Estado e Prefeituras não investem em compras públicas. Naquilo que poderia ser feito a favor do livro, que é via política pública, Goiás fica pra trás, comparado com outros Estados”, criticou.
Em tempos de tanta tecnologia, qual o futuro do livro impresso?
Para Ademir Luiz, da UBE e AGL, o livro ainda “dura bastante”. “Mas, pensando em longo prazo, a tendência será que os lançamentos sejam feitos em formato digital e os clássicos sigam sendo publicados em edições cada vez mais luxuosas para colecionadores”, previu. Em outras palavras, o livro, na visão do escritor, será um “objeto de fetiche”, o que valoriza livros publicados no passado.
Para a gerente editorial, Ione Valadares, o os livros digitais não são o grande problema. “A gente sabe que na Europa há uma certa resistência. Os percentuais de vendas de e-books não crescem como se esperava. No Brasil, tem algumas pessoas comprando, mas não afeta tão fortemente o mercado.
Mesmo assim, Ione reconhece que os livros vão perder cada vez mais espaço com o avanço da tecnologia. “Não dá pra gente ficar com saudosismo e achar que temos que salvar o livro impresso. Temos que tentar fazer o melhor para fazer com ele sobreviva por mais tempo possível”, afirmou. Até porque, na visão dela, o mundo virtual é muito dispersivo. “A gente tem que lutar pra ter políticas públicas para que a população tenha acesso a livros com mais facilidade”, completou.
Escritor premiado goiano nasceu em um lar de analfabetos

A principal referência literária do escritor Edival Lourenço é o escritor Machado de Assis. “Sempre brinco que é bom ter ele como referência porque ninguém contesta”, comentou. No entanto, ele acrescentou que os referenciais vão mudando ao longo da vida. Do início de sua carreira pra cá, o autor já bebeu muito da fonte de Guimarães Rosa e hoje se inspira no escritor estadunidense Cormac McCarthy.
Natural de Iporá, Edival teve um contato tardio com a leitura e a escrita. Filho de analfabetos, quando criança, estudar não era uma opção. “Nasci no campo e ninguém sabia ler”, lembrou. Na infância, um vendedor de Biotônico Fontoura passou pela região e enquanto aguardava a balsa para atravessar o Rio Caiapó, tirou da mala almanaques com histórias infantis adaptadas por Monteiro Lobato: “O lobo mal e os três porquinhos, A branca de neve, João e o pé de feijão. Essas histórias infantis que atravessam gerações.”, recordou.
Quando o pequeno Edival viu aquele homem passar os olhos naquele emaranhado de letras e daquilo tirar um sentido, ele se estremeceu todo e ficou emocionado por descobrir que aquilo era possível. Vendo a empolgação da criança, antes de ir embora, o estranho que ficou por apenas algumas horas na casa de seus pais deu a ele de presente alguns almanaques. “Andava com aquilo a tira colo. Fingia ler e contava histórias para os analfabetos. Surgiu até boato de que tomei biotônico e aprendi a ler num estalo”, contou.
Foi só depois que seu pai morreu, vítima da doença de Chagas, quando ele tinha por volta de 12 anos, que ele pode tornar realidade o sonho de estudar. Plantou com o primo uma safra de feijão à meia. Vendeu a sua parte e comprou seu enxoval de estudante, que é como se chamava na época os materiais escolares. “Meu único intuito era aprender a ler e contar histórias. Faço isso até hoje”, explicou.
Qual o maior escritor goiano de todos os tempos?
Quem seria o maior escritor goiano da História? Eleger apenas um é uma tarefa árdua e ingrata. Afinal, diversos autores, dos mais variados gêneros e estilos, têm sua qualidade literária inquestionável e tiveram e têm sua importância. Mesmo assim, vale destacar o que os especialistas ouvidos pelo Jornal Opção responderam.
O presidente da UBE seção Goiás, acredita que “é difícil tirar essa coroa de Bernardo Élis”, o quarto ocupante da cadeira 1 da Academia Brasileira de Letras (ABL). O autor goiano citado por Ademir já venceu diversos prêmios. Entre eles, o prêmio Jabuti, em 1966, pelo livro de contos “Veranico de janeiro”.
Já o escritor Edival Lourenço elegeu José J. Veiga como o maior escritor de prosa que Goiás já teve. “É só uma questão de gosto, porque existem grandes escritores. O que não existe é um grande mercado para ter influência em outras regiões”, lamentou. Para o autor, em Goiás, vivemos numa baixada: “a água que outros produzem desagua facilmente por aqui. Mas o que produzimos dificilmente sobe a ladeira”, comparou.
Indicações de leitura

Como apreciador de listas, Carlos Willian Leite, que também é editor da Revista Bula, elegeu os cinco maiores escritores goianos de todos os tempos. Seguem os nomes, na ordem listada por ele: Edival Lourenço, Antônio José de Moura, Yêda Schmaltz, Delermando Vieira e Valdivino Braz. E ao destacar um único livro cuja leitura seria essencial, o poeta escolheu “Sete Léguas de Paraíso”, de Antônio José de Moura.
Ao ser sugestionado a indicar um livro aos leitores do Jornal Opção, Edival fez questão de alertar: “A coisa mais perigosa que tem é um sujeito que lê um livro só”. Mesmo assim, depois de refletir, a Bíblia foi a leitura indicada, considerando-a um livro só. “Mas para fins literários, e não religiosos”, justificou. Afinal, a leitura dogmática é limitada e limitante. Já a indicação de Ademir foi “Tropas e Boiadas”, de Hugo de Carvalho Ramos.
Mas para fazer justiça à tradição de listas de Carlos William Leite, da Revista Bula, ele também fez indicações de obras representativas de diversos estilos e contextos, que “proporcionam aos leitores uma rica exploração da literatura tanto regional quanto nacional”.
Em Goiás, a leituras indicadas pelo editor da Revista Bula são: “Como Pássaros Suspensos no Jardim do Tempo”, de Delermando Vieira; “Anatomia do Gesto”, de Pio Vargas; “Naqueles Morros Depois da Chuva”, de Edival Lourenço; “Hirudo Medicinalis”, de Ademir Luiz; e “Serra do Cafezal”, de Maria Eloá de Souza Lima.
Ampliando as indicações para publicações nacionais, Carlos William Leite recomenda a leitura dos seguintes livros: “O Ventre”, de Carlos Heitor Cony; “Enervadas”, de Chrysanthème; “O Púcaro Búlgaro”, de Campos de Carvalho; e “Madona dos Páramos”, de Ricardo Guilherme Dicke.
Sebos resistem no Centro de Goiânia
O empresário Paulo Márcio de Camargo está no Centro de Goiânia há 37 anos vendendo livros. Paulo e irmão têm outros comércios na cidade, mas o carinho pela loja do Setor Central é especial. E na Avenida Goiás ele resiste, apesar das dificuldades: “a única coisa que sei fazer é trabalhar com livro”, destacou.
Um nicho que ajuda Paulo Márcio a se manter é o mercado de livros usados, que, segundo ele, é até mais forte do que o de livros novos. “As livrarias que ainda estão resistindo, são justamente os sebos. Porque acaba que tem um custo menor e como é mais barato, se torna competitivo com a internet. Aqui em Goiânia, em específico, esse mercado está até melhor que em outras capitais”, analisou.
Para o dono da livraria, o livro já foi um bom negócio, mas hoje não mais. “A gente sobrevive com dificuldade. Mas é o que eu amo fazer, apesar de financeiramente difícil”, afirmou o dono da livraria. “É difícil ganhar dinheiro com livro. É um pouco de idealismo”, completou a gerente editorial Ione.
Um dos fatores que explicam a baixa do setor em Goiás, segundo o dono da livraria, é que o goiano lê pouco. “Precisava ler mais. Em todas as viagens que faço, visito livrarias. No Sudeste e no Sul, o movimento das livrarias é muito maior do que aqui”, afirmou. Mesmo assim, ele acredita que temos sim o que comemorar neste Dia do Livro. “Afinal, o livro foi uma das maiores invenções da humanidade. E espero que nunca acabe”, finalizou.