A reunião da cúpula dos presidentes do Mercosul, realizada no Rio de Janeiro, quando Luiz Inácio Lula da Silva (PT) repassou a presidência temporária do bloco ao colega paraguaio Santiago Peña, começou terminou com a oficialização de mais um país-membro: além de Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai e Venezuela, agora integra o grupo também a Bolívia.

É preciso, no entanto, colocar um asterisco aqui: a Venezuela se encontra suspensa do Mercosul desde 2017, por não obedecer ao preceito de democracia e direitos humanos que rege o contrato multilateral. Algo semelhante havia ocorrido com o Paraguai em 2012, o que reforça que se guiar pelo Estado democrático de Direito é um preceito salutar ao grupo.

A formação do Mercado Comum do Sul – o nome hoje praticamente desconhecido que gerou a sigla – tem sua origem na crônica rivalidade entre brasileiros e argentinos. No fim da década de 70, quando ambos os países enfrentavam regimes ditatoriais, houve a troca da beligerância pela cooperação em assuntos os mais diversos. Talvez a cooperação mais memorável daquele período seja a construção da megausina hidrelétrica de Itaipu, tendo nisso também a participação do Paraguai.

Com a saída dos militares e a redemocratização de um lado e de outro, avançaram os tratados bilaterais em vários temas, como a energia nuclear, por exemplo. O que levou, naturalmente, a uma relação de comércio cada vez mais estreita, com a adoção gradual de um programa de integração econômica, em princípio com uma área de livre comércio e, depois, um mercado comum entre ambos. Ainda que no âmbito privado, a Autolatina, que uniu as montadoras Ford e Volkswagen em suas unidades brasileira e argentina, pode ser considerado um símbolo de cooperação desse período.

Presidentes dos quatro países fundadores do Mercosul, no dia da assinatura do Tratado de Assunção | Foto: Reprodução

Em julho de 1990, os presidentes Fernando Collor e Carlos Menem assinaram a Ata de Buenos Aires, que visava a total integração alfandegária entre os dois países. Apenas dois meses depois, Paraguai e Uruguai também ficaram interessados naquele processo de integração regional, o que levou à ideia de um acordo mais abrangente. Em março de 1991, foi assinado o Tratado de Assunção, com as devidas assinaturas: o quarteto ali constituía o Mercosul.

A partir de então, os quatro signatários se comprometiam a desenvolver entre si a livre circulação de bens e serviços, uma coordenação de políticas econômicas e a adoção de uma tarifa externa comum. Em 1994, o Protocolo de Ouro Preto deu personalidade jurídica ao bloco, colocando-o sob a salvaguarda do Direito Internacional. Em 2012, a Venezuela entrou como o quinto Estado-parte.

Já um balzaquiano, o Mercosul vem perseguindo uma conquista importante desde sua “adolescência”: faz mais de 20 anos que os sul-americanos tentam fechar um acordo com a União Europeia, mas as idas e vindas, com protecionismos de parte a parte – como em toda relação comercial, diga-se –, levaram a um estado de coisas que mesmo um político tido como exímio negociador como Lula não consegue “fechar negócio”. Na cúpula da semana passada, o brasileiro lamentou bastante, em seu discurso final, não ter conseguido fechar o acordo com os europeus.

A longa novela, mas que nada foge do script do que se espera de algo tão complexo, é o que se poderia chamar de “desafio externo” do Mercosul. No momento, porém, mais importante ainda é assegurar a coesão interna do bloco, que enfrenta dois “alertas amarelos” e um “laranja”, por assim dizer.

Passando pela cor mais branda, o primeiro sinal de advertência diz respeito a uma negociação do Uruguai com a China à margem dos desejos dos demais integrantes do grupo. O bilateralismo indevido já ocorre há alguns meses e na reunião o presidente uruguaio, Luis Lacalle Pou, fez questão de fazer pressão para que os demais integrantes deixem seu país “ir na frente” para fechar com os chineses. “Temos a vontade de fortalecer o Mercosul, mas não a contradição de fortalecer o Mercosul e não negociar com a China. Precisamos que nos digam: ‘Não há problema que o Uruguai avance primeiro e depois todos avancemos’. Todos têm a ganhar. É disso que se trata”, enfatizou Lacalle Pou.

Outro alerta amarelo diz respeito à Argentina e como a coisa ficara por lá a partir deste domingo, 10, quando o ultraliberal Javier Milei assume o poder após ter detonado o multilateralismo – a reunião no Rio marcou também a despedida de Alberto Fernández e de sua turma política da mesa de negociações. A cor sinalizadora só não é mais forte porque parece cada vez mais claro que o antes libertário está menos histriônico e mais dominado pelo ex-presidente Mauricio Macri, o que dá um pouco mais estabilidade. Tudo ainda a conferir.

No entanto, o ponto que tomou conta da reunião da semana passada e que fez piscar a luz laranja foi a dor de cabeça causada pelo membro que está cumprindo suspensão: a ameaça de invasão da Guiana pelas forças venezuelanas, após a óbvia aprovação do referendo do presidente Nicolás Maduro sobre a área do Essequibo, disputada desde o começo do século 19 e que corresponde a quase 70% do território do país vizinho.

A possibilidade de uma eventual guerra no continente desestabilizaria toda a região e atingiria principalmente a pessoa de Lula, bastante identificado com Maduro, a quem procura tirar do isolamento desde que voltou à Presidência. Por isso, de forma sagaz, o brasileiro buscou um posicionamento conjunto em forma de nota, emitida no encerramento do encontro. Todos os países do Mercosul manifestaram “profunda preocupação” com o aumento das tensões entre as duas nações e rechaçaram a possibilidade de um conflito armado.

Mas por que o bloco se deixaria envolver em uma situação não diretamente ligada à economia, como o caso de uma guerra? Porque ele precisa pretender ser mais do que um mero canal de negociações comerciais. É o que explica o economista e professor Jeferson de Castro Vieira, docente titular da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). “O sonho de um bloco como o Mercosul é chegar ao nível de atuação de uma União Europeia”, resume.

Para tanto, é preciso avançar por etapas: primeiro, tornar o terreno competitivo entre os países-membros, com mecanismos como a redução de tarifas. “Depois disso, é necessário proceder a integração de várias áreas, com uma consolidação de políticas em geral, que vão bem além do comércio”, continua Jeferson. O último passo é a adesão a uma moeda única, o que, no caso da UE, já foi alcançado desde o início do século, com o euro.

Em outras palavras, é preciso buscar integrar os países-membros do Mercosul em áreas como a saúde, a educação, os modais, a segurança pública. “É algo que vai além de questões aduaneiras e em que a Europa já avançou bastante, enquanto aqui damos os primeiros passos, como na unificação das placas dos veículos”, exemplifica o professor.

Economista Jeferson de Castro Vieira, professor titular da PUC-GO: “É preciso que o Mercosul avance para temas além da economia” | Foto: Leoiran / Jornal Opção

Sobre as questões internas do bloco, Jeferson as chama de “curto-circuitos” e as considera normais para o atual estágio. “Esses curtos-circuitos são mais conjunturais do que estruturais”, prevê. Para ele, o importante é que os países centrem o foco em colaborações cada vez maiores, principalmente no que diz respeito a questões que envolvam educação, ciência e tecnologia. “Isso é essencial.”

O economista não leva muito a sério a ameaça de Milei de deixar o Mercosul. “A situação da Argentina é muito difícil. Tem um problema sério de reservas internacionais, precisa de divisas e, dentro do bloco, ela se fortalece um pouco mais”, frisa. De fato, o tamanho das economias mostra que a Argentina precisa muito mais do Mercosul (leia-se “mercado brasileiro”) do que o contrário. Em outras palavras, estar no bloco é melhor para todos, mas sair dele seria pior para os “hermanos”.

Acordo do bloco com União Europeia gera controvérsias

Não é apenas do outro lado do Atlântico que se veem queixas sobre uma conclusão do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia. Se o presidente da França, Emmanuel Macron, foi bastante taxativo ao negar que assinaria algum contrato nos atuais termos, analistas brasileiros veem dificuldades para a produção nacional ganhar alguma coisa realmente efetiva com um martelo batido do jeito em que a coisa está.

Em artigo publicado na semana passada, o economista Paulo Nogueira Batista Júnior, que foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, ligado ao Brics, além de diretor-executivo no Fundo Monetário Internacional (FMI) pelo Brasil, se mostrou aliviado com a falta de avanço nas. “Espero que elas [negociações] sejam realmente abandonadas e saiam de pauta”, escreveu.

“Os europeus sempre foram – e continuam – muito resistentes a aceitar uma negociação minimamente equilibrada e insistem, além disso, em cláusulas intrusivas que cerceiam as políticas de desenvolvimento. Nem mesmo o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), nem mesmo o governo [Michel] Temer (MDB), ambos de inclinação liberal e entreguista, conseguiram concluir essa negociação. Foi preciso a presença de [Jair] Bolsonaro e [Mauricio] Macri [ex-presidente da Argentina, de 2015 a 2019] para que ocorresse a rendição total e se fechasse, em 2019, um acordo escandalosamente desigual”, disse.

Lula e Emmanuel Macron: mandatários de Brasil e França defendendo seus interesses | Foto: Ricardo Stuckert / PR

Do ponto de vista de Macron, porém, é possível entender a intransigência: sua situação política não é das mais confortáveis e, muito antes dele, a França sempre prezou pela proteção de seus agricultores e pecuaristas. Outra questão – a propósito, inferida nas declarações de Lula sobre a controvérsia – é que europeus sempre (ou ainda) olham para a América do Sul com olhos de colonizadores.

À parte a questão histórico-cultural, Jeferson de Castro também vê dificuldades para o fechamento do acordo também pela diferença de estágios em que se encontram os lados. “Países com proximidade territorial costumam buscar formar blocos para aumentar a competitividade, como é o caso do Nafta [tratado que reúne Canadá, Estados Unidos e México], um tratado já de muito tempo. Por outro lado, há blocos que não prosperam muito também”.

O professor considera que o período pós-pandemia também causou uma espécie de surto nas relações comerciais que ele chama de “desglobalização”. “É a ideia de não ficar dependendo das cadeias globais, depois de países terem apostado por muito tempo – e investido bastante dinheiro nisso”, explica.

Brasileiros (e goianos) de olho na Venezuela

Com o desenvolvimento de novas tecnologias para o cultivo de monoculturas em vários biomas, o avanço da fronteira agrícola no Brasil é impressionante. Com a excelente adaptação da soja a biomas como o do Cerrado e até mesmo o da Amazônia, graças a pesquisas de universidades e empresas estatais, especialmente a Embrapa, as últimas décadas criaram lavouras da oleaginosa em regiões antes inimagináveis para o plantio, como Acre, Rondônia e a região do Matopiba [nominada pela união das siglas de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia], “que hoje já é chamada de Matopibapá, por envolver também um pedaço do Pará”, lembra Jeferson de Castro Vieira.

O avanço é tão impressionante que já deixa investidores do agronegócio de olho nas possibilidades de trabalhar o solo em outros países. O professor diz que a expansão do Mercosul também se dá por esse interesse. “O conflito que pode ou não ocorrer entre Venezuela e Guiana chama a atenção porque o agro está de olho em investir fora do Brasil onde a produção fique mais em conta, como são as terras venezuelanas, mais baratas”, explica o docente, revelando que não são apenas sulistas interessados em explorar o solo dos vizinhos. “Há muitos goianos do agro de vários municípios que estão nessa condição de ampliar seus investimentos.”