Da forma como está sendo feito, BRT é mesmo um trambolho de concreto
04 março 2017 às 10h25
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É inegável que o corredor exclusivo para o transporte público é essencial para Goiânia. Porém, se não ligar as regiões Norte e Sul, como está no projeto original, é provável que a obra já nasça obsoleta
Marcos Nunes Carreiro
Em 2015, estive em Lima. A cidade é, como toda metrópole, plural: vai da paisagem árida das montanhas à arborizada do litoral; da realidade pobre de Las Dunas à rica de Miraflores. Fui a trabalho, então não pude me aprofundar na vida citadina limenha, mas tive condições de perceber algumas coisas muito interessantes nos quatro dias em que lá estive. Uma delas, e a única relevante para esta matéria, foi a que vi a caminho do Instituto “Raúl Porras Barrenechea”.
Gosto de andar a pé em cidades que não conheço por um motivo simples: é impossível conhecer uma cidade andando de carro — além de ser mais caro. Assim, a certa altura da Avenida Alfredo Benavides, me deparei com a Via Expressa Passeo de la República. Trata-se de uma trincheira de seis pistas que funciona como corredor de trânsito rápido e também abriga o BRT Metropolitano de Lima.
É uma obra muito bonita e útil. As estações de embarque ficam em baixo, na trincheira, e o usuário que estiver na altura da cidade, e precisar descer para pegar os ônibus, conta com estações que o levam abaixo. Quando vi, pensei que fosse um metrô e só depois percebi ser uma linha de ônibus articulados. Parei para ver a construção, pois naquele ano a Prefeitura de Goiânia começava a construir o seu BRT Norte-Sul. Seria um sonho ter uma obra daquele porte em minha cidade.
Não demorei porque tinha hora marcada e o trajeto não era nada curto, mas depois fui buscar mais informações sobre a linha peruana. São nove quilômetros de via rebaixada, aproveitando a topografia do local, e mais 14 de via exclusiva totalizando 23,5 quilômetros de eixo, que passa por 12 dos 43 distritos de Lima, dos quais o mais famoso talvez seja Miraflores, vastamente retratado na obra de Mario Vargas Llosa e que tem, inclusive, um circuito cultural baseado na obra do escritor — Miraflores, aliás, é lindo. Vale a visita.
Apresentar minha visão sobre o eixo limenho neste texto não é arrogância, como pode pensar o leitor, mas vem da necessidade de mostrar a importância da obra em uma metrópole. Locomover-se em Lima, que tem uma população superior a 8 milhões de habitantes, seria inviável sem um serviço do tipo. Basta dizer que o BRT de Lima já transportou aproximadamente 200 milhões de usuários desde que foi inaugurado, em 2006.
Sei que comparar aquela cidade a Goiânia, que tenta fazer seu segundo BRT, pode parecer pedante, mas não é. Lima tem mais de 8 milhões de habitantes, porém, guarda uma história de 482 anos; a Grande Goiânia ainda não chegou ao primeiro centenário e já passou dos 2,5 milhões de pessoas. Proporcionalmente à idade, o crescimento populacional da capital goiana é maior e tem problemas de mobilidade bastante semelhantes aos da capital peruana.
O trânsito de Lima, como o de Goiânia, é caótico em muitos pontos e ainda conta com motoristas tão “educados” quanto — quando estive na cidade, os governos distritais encapavam uma campanha: “Menos ruido, más respeto”. Isso porque os peruanos adoram uma buzina. Em Cuzco, por exemplo, é impossível caminhar 100 metros sem ouvir duas ou três buzinadas. Na capital, talvez alguém consiga alcançar a marca de 300 metros, não mais que isso.
Em uma cidade com um trânsito assim, um BRT é vital. Goiânia está neste hall e ainda conta com alguns privilégios: criar um BRT aqui é tecnicamente mais fácil e barato, pois a cidade, ao contrário da capital peruana, é plana. O Peru é um país montanhoso e quase todas as cidades precisaram se adaptar a isso. Tanto que a parte de terreno rebaixado do BRT limenho teve que contar com uma grande obra de adequação territorial, pois fica em uma espécie de vale existente entre as partes leste e oeste da cidade, que foi construída sobre uma cadeia montanhosa.
Dessa forma, comparar Lima a Goiânia tem um único motivo: falar da necessidade de vias de transporte público rápido e exclusivo em grandes cidades. Metrópoles não sobrevivem sem elas e os gestores goianienses entenderam isso, embora ainda tenham dificuldade de executar as obras — vide o BRT Norte-Sul, que está atrasado e tem ido em direção contrária à que deveria, visto que, ao invés de aliviar a mobilidade da cidade, a tem prejudicado.
A obra está parada desde outubro de 2016 por falta de recursos da Prefeitura. Orçada em R$ 242,4 milhões, o BRT é financiado por recursos do governo federal, mas depende de uma contrapartida do governo municipal. Segundo informações da Prefeitura de Goiânia, a obra parou devido a uma dívida de R$15 milhões da gestão passada. Tanto é que apenas 30% dos 21,9 quilômetros de extensão da obra estão concluídos.
A maior parte da construção paralisada é na Região Norte da capital. Na altura do Jardim Balneário Meia Ponte, por exemplo, os transtornos se acumulam. Jairo Santos, morador da região, diz que o BRT “isolou um lado do outro do bairro, e os lojistas perderam estacionamento na rua a troco de nada. Eu passei a sair do bairro por outro caminho, mas os moradores improvisaram umas rampas e alguns transitam em cima da pista do BRT”. Na Região Sul, a obra mal começou.
O projeto do BRT prevê 21,8 quilômetros de linha exclusiva para o transporte público, ligando o Terminal Cruzeiro do Sul, na Região Sul, ao Terminal Recanto do Bosque, na Região Noroeste. Se concluído, o eixo deverá passar por 148 bairros e a expectativa inicial é de que atenderá aproximadamente 120 mil usuários por dia. É, sem dúvida, uma obra importante e deverá, se finalizada, corrigir um pouco do desequilíbrio que existe no transporte público não apenas da capital, mas da Região Metropolitana.
Os “se concluído” e “se finalizada” do parágrafo anterior têm um motivo: existe a possibilidade de o projeto não ser levado adiante em sua completude, pois há duas semanas o prefeito Iris Rezende (PMDB) disse ter a intenção de dividir o traçado do BRT para que a obra não passe pelo Centro da capital. A razão, segundo ele:
“Vamos violentar a Avenida Goiás sem justificativa? Por que violentar a Praça Cívica com esse trambolho de concreto? Para quê? Estragar o canteiro do Centro? Em minha opinião, teríamos que fazer dois BRTs: um da região Norte até a Rodoviária e o outro nos ligando a Aparecida”. A declaração foi dada durante a prestação de contas na Câmara Municipal de Goiânia, no dia 20 de fevereiro.
O jornal O Popular, que tem feito a cobertura (em muitos pontos até repetitiva) do desenrolar da obra, publicou, na sexta-feira, 3, a informação de que técnicos da Prefeitura tentam convencer Iris a mudar de ideia, pois as modificações podem atrasar ainda mais a entrega. O “x” da questão, algo óbvio, é que a Prefeitura não pode mudar a execução do projeto sem antes informar o financiador da obra: o governo federal.
O que o prefeito pretende, a priori, é interromper o eixo. Assim, se não passar pelo Centro, não existirá um BRT, mas BRTs: um ligará o Terminal Cruzeiro do Sul ao Terminal Isidória — que fica há aproximadamente 5 quilômetros do ponto central da cidade, que é a Praça Cívica — e o outro irá da Rodoviária de Goiânia ao Terminal Recanto do Bosque. Mas essa é a intenção do prefeito. Não significa que será executada.
As mudanças solicitadas por Iris ainda estão sendo estudadas pela Prefeitura de Goiânia e não há informações sobre o que pode — ou será — realizado. A reportagem entrou em contato com a Prefeitura para saber quais modificações podem realizadas no projeto, mas não obteve resposta até o fechamento. Há duas questões sem resposta a respeito disso: 1) O BRT, de fato, violentaria o Centro de Goiânia?; e 2) Se não ligar o Norte ao Sul, como era o objetivo inicial, seria necessário um BRT?
À primeira pergunta Adriano Reis, arquiteto e urbanista com mestrado em Engenharia do Meio Ambiente, responde que, embora o projeto não tenha sido divulgado de maneira detalhada, é possível perceber, pelo que tem sido feito nos outros trechos, que “o sistema de transporte, tal como foi concebido, pode ser deletério à paisagem urbana e histórica do Centro, pois as estações são grandes, elevadas e têm controle de acesso, isto é, são fechadas. São verdadeiros edifícios a serem construídos na Avenida Goiás e isso interferirá muito na paisagem”.
Ele diz que a última notícia que teve é de que os ônibus que estão sendo adquiridos teriam portas em ambos os lados, o que daria maior flexibilidade no posicionamento das estações. “Contudo, o impacto sobre a paisagem urbana seria menor se os ônibus tivessem piso baixo e portas dos dois lados, como foi feito em Brasília, pois as estações seriam baixas e os veículos poderiam, por exemplo, trafegar pelas Avenidas Araguaia e Tocantins, mantendo a conquista que tivemos do fechamento da Avenida Goiás para os veículos”.
Adriano se refere ao projeto “Domingo no Centro”, implantado pelo ex-prefeito Paulo Garcia (PT) na segunda metade de 2015. O projeto foi uma das iniciativas da gestão para atrair a população para o Centro de Goiânia, que tem se deteriorado muito nos últimos anos, pois só é “vivo” em dias úteis. Porém, como os ônibus do BRT serão elevados, eles demandarão estações apropriadas, o que impedirá sua circulação por outras vias e, por consequência, acabará com a interdição da Avenida Goiás aos domingos.
O arquiteto informa que questionou a CMTC sobre isso ainda em 2008, mas nunca obteve respostas. “O que sei é que a Amma não liberou a retirada de árvores na Avenida Goiás, como aconteceu na Avenida Goiás Norte, e o Iphan não liberou a construção de grandes estações entre a Praça Cívica e a Avenida Anhanguera, devido ao tombamento do traçado original e, principalmente, por causa do Grande Hotel”, explica.
Segundo Adriano, as estações previstas para o BRT são muito grandes e, se construídas no canteiro central da Avenida Goiás, demandariam a derrubada de árvores. “E se forem construídas na calçada, atrapalhariam o passeio público. Então, é bastante delicada essa situação e, por isso, existe temor. A Avenida Goiás tem condições de receber o BRT, desde que se tome cuidado com a inserção paisagística das estações e do corredor”, afirma.
Na verdade, a execução do projeto começou de maneira errada. Adriano diz isso: “Os tecidos urbanos mais delicados pelos quais o BRT deve passar deveriam ter sido levados em consideração e, a partir das características adequadas desses locais, é que o sistema seria projetado e não contrário, como foi feito”.
O arquiteto citou Brasília como exemplo de BRT com piso baixo e pouco impacto na paisagem urbana. O BRT de Uberlândia também é assim. Estive há pouco tempo na cidade e pude ver como foi feita a implantação. Um exemplo pode ser visto na foto acima que tirei da estação existente em frente ao Campus Santa Mônica da Universidade Federal de Uberlândia: piso baixo com faixa preferencial e controle de entrada. A estação é climatizada.
Isso seria possível em Goiânia? Não se sabe. A superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em Goiás, avaliou o trecho a ser construído no Centro. A avaliação é necessária, pois o traçado original de Goiânia é patrimônio histórico e não pode ser modificado sem autorização.
O Iphan se posicionou em nota à reportagem informando que tomou conhecimento do projeto do BRT de Goiânia ainda em 2012, tendo participado de algumas tratativas sobre o caso. Todavia, a última entrada de documentação para análise do Iphan aconteceu em 2015 e a resposta do instituto ocorreu em setembro do mesmo ano. Desde então, não houve nenhuma atualização do projeto junto ao Iphan, logo, o instituto não pode avaliar o andamento da obra ou mesmo o posicionamento da atual gestão municipal a respeito do assunto.
A nota diz: “Destacamos ainda que, em setembro de 2015, o Iphan emitiu parecer solicitando complementações do projeto, já que na versão que nos foi apresentada ainda não constava o projeto executivo e detalhamento referente ao acabamento, que são fundamentais devido à proximidade com bens tombados. Em nenhum momento o Iphan se opôs à implantação de serviços que melhorem a mobilidade urbana na capital goiana, mas sua preocupação esteve, e continua sendo, focada em diminuir o impacto dos mesmos sobre a área tombada, minimizando o impacto visual junto aos bens que constituem parte relevante do patrimônio cultural material de Goiânia, por meio de recomendações e do cuidado com a manutenção da ambiência da área tombada e seu entorno, assim como a complementação da vegetação e mesmo a compatibilização com outras propostas que vinham sendo implantadas – tais como a obra da Praça Cívica e os pontos de interface com o VLT”.
Agora, a segunda pergunta fica: Se não ligar o Norte ao Sul de Goiânia, como era o objetivo inicial, seria necessário um BRT? Iris diz que um BRT que liga o Norte ao Sul é desnecessário porque não há pessoas que querem ir da Região Noroeste para Aparecida de Goiânia. Ele não sabe disso. Na verdade, ninguém sabe, pois a última pesquisa origem-destino feita em Goiânia é do ano 2000. Isto é, há 17 anos que não se tem uma informação confiável sobre como as pessoas se locomovem na capital.
A Prefeitura de Goiânia contratou uma consultoria externa para realizar uma nova pesquisa, mas houve problemas jurídicos e há informações de que ela está parada. Porém, mesmo que estivesse sendo realizada, dados atualizados demorariam a ser divulgados, pois esta é uma pesquisa aprofundada e, portanto, demorada. Os pesquisadores vão às casas das pessoas para saber como elas se locomovem. É uma pesquisa de suma importância e que foi negligenciada por muitos anos.
Então, respondendo à pergunta, não sabemos se Goiânia precisa de dois BRTs que levem as pessoas apenas à região central da capital. A probabilidade de que essa obra, se feita desta maneira, se torne obsoleta rápido é grande. Aliás, mesmo que seja concluída na totalidade, a obra corre risco de já nascer obsoleta. Não digo que não é importante; é e muito, mas parece carecer de um projeto melhor. A verdade mesmo é que, em um ponto, Iris tem razão: da forma como está sendo feito, o BRT Norte-Sul é mesmo um trambolho de concreto.