Cultura do estupro: quem bebe cerveja e faz xixi sentado depois?
04 junho 2016 às 15h39

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A bifurcação dos caminhos de um menino alemão e um brasileiro em relação ao mundo feminino começa já com a forma com que é exposto a simples comerciais de bebida

Elder Dias
Thomas tem 8 anos e mora na cidade de Lage. Entra no banheiro para fazer xixi. Abaixa as calças e senta-se no vaso. A porta está aberta e o pai o flagra naquela cena. Surpreso, ele exclama:
— Garoto, até que enfim você aprendeu como tem de ser! Sua mãe deveria ter visto isso!
O menino responde com o sorriso alegre de quem realmente fez a coisa certa. Levanta-se, limpa o “pipiu” com o papel higiênico, ajeita-se e ganha um abraço de Marco.
Nem Thomas nem Marco são brasileiros. A cidade em que moram, também não. Lage tem 36 mil habitantes e fica no nordeste da Alemanha. Sim, os homens alemães aprendem desde cedo algo que os latinos, machões, jamais ensinariam a seus filhos: “mijar sentado”. E é aqui que começam grandes diferenças entre as culturas. Os germânicos têm uma preocupação prática — querem que a privada continue limpa para a próxima pessoa a usá-la e o jato de urina de um homem em pé é bem pouco favorável a isso. A cultura nacional tem outro viés: por prezar uma dada visão de masculinidade, vai preferir que se suje a louça sanitária com respingos fortes a economizar o trabalho doméstico, o qual naturalmente ficará a cargo da mãe. Nasce a bifurcação do caminho de um Thomas nascido na Alemanha e qualquer outro homônimo seu, mas brasileiro, o que será só um primeiro passo para desandá-los em indivíduos muito diferentes.
Durante sua vida toda, o Thomas alemão, por exemplo, jamais verá uma propaganda de cerveja que exponha mulheres como objetos sexuais – ainda que seu país seja conhecido como a terra da cerveja e tenha como maior tradição nacional a Oktoberfest, quase um culto à bebida. A não ser que venha ao Brasil, onde o desafio será o oposto: um comercial que fale das qualidades da própria bebida em vez dos atributos do corpo feminino.
E aqui começamos a falar, então, da tal “cultura do estupro” de um modo particular, que não se apega ao conceito estrito teorizado pelo feminismo. Dispondo de uma visão alargada, é na propaganda de uma Skol que nasce a cultura do estupro. Desnecessário procurar vídeos com cenas quase explícitas de sexo simulado (ou não) nos bailes funk: a origem de crimes como o que dezenas de homens cometeram contra a garota de 16 anos no Rio de Janeiro está muito mais próxima, e até internalizada, do que se pode imaginar.
Primeiramente é bom relembrar que estupro, mais do que um ato sexual, é uma demonstração de poder. Assim como o machismo é um tipo de poder. E ele não se tornou presente a partir dos “pancadões” do morro. A violência contra o querer da mulher foi erguida de forma constitutiva em nossa sociedade durante séculos e se encontra exposta até mesmo em letras simplórias da tradicional música caipira. Em “Boiadeiro de Palavra”, Tião Carreiro e Pardinho cantam: “Esses cabelos compridos/ São minha maior riqueza/ Se um dia você cortar/ ‘Nóis separa’ na certeza/ Um mês depois de casado/ O cabelo ela cortou/ Boiadeiro de palavra/ Nessa hora confirmou/ No salão que a esposa foi/ Com ela ele voltou/ Mandou sentar na cadeira/ E desse jeito falou/ ‘Passe a navalha no resto/ Do cabelo que sobrou’/ (…) Boiadeiro caprichoso/ Caprichou mais na pirraça/ Fez a morena careca/ Dar uma volta na praça”.
Não aceitar a escolha da mulher pode começar na roupa que ela vestir e acabar por não se conformar com uma separação, mesmo que esta venha depois de agressões continuadas. Quantos casos de assassinatos de mulheres ainda teremos com esse roteiro?

O machismo aflorado é o início do estupro, como o primeiro gole é o começo do porre. E voltamos à mesa do bar: o simples ato de “beber cerveja” passa recibo da visão machista dos publicitários tupiniquins. Faça o teste: vá ao Google Imagens e digite “propaganda cerveja alemanha”; depois faça o mesmo trocando “alemanha” por “brasil”. Da tela, vão desaparecer copos e canecas — e aparecer corpos e canelas.
Nessa mesma pesquisa, verá que na primeira página das imagens nacionais aparece um anúncio intitulado “É pelo corpo que se reconhece a verdadeira negra”. É da marca Devassa, apresentando sua cerveja escura. Uma aula de como fazer a coisa errada, uma verdadeira ode gráfica à cultura do estupro. Querem que você beba cerveja: uma cerveja “Devassa negra”, “encorpada”, “estilo dark ale”, “cremosa” e “com aroma de malte torrado”. Quase comestível. Quase?
Ao contrário do menino alemão, o garoto nacional é adestrado desde sempre para se diferenciar de uma menina. Para ter ideia disso, basta imaginar como funcionaria a cabeça de do pai brasileiro padrão ao pegar um filho de 8 anos sentando-se para apenas urinar. Se mulheres fazem “assim”, homens “não podem” fazer. E vice-versa: dão-se ao rapaz direitos que não são concedidos à garota. A primeira e precoce transa de um adolescente é vista com benevolência e até orgulho pelo pai; já se a experiência ocorre com a filha, ainda nos dias de hoje isso pode ser caso de deserção ou até morte. Se for “ele”, é mérito; se for “ela”, é culpa.
Por essas e outras é que, muito mais do que as mulheres, quem deveria se ater à cultura do estupro e alertar sobre ela seriam os próprios homens. E a forma de tornar isso eficiente são por medidas polêmicas e de longo prazo. Entre elas, mudanças na legislação que desfavoreçam a apologia à exploração do corpo feminino; endurecimento das penas de crimes contra a mulher; e a formatação de uma educação não machista para as próximas gerações. Dos três itens, o mais difícil é, sem dúvida, o último. Por exemplo, leis mudam, como o aumento do rigor da pena para estupro coletivo, aprovado no Senado semana passada. Mas, assim como o racismo, o machismo é algo que corre nas veias de todo um povo. Ou você já ensinou seu garotinho a se sentar no vaso para o xixi?