Culto ao futebol impede Aécio de tomar de Dilma o palanque da Copa
12 julho 2014 às 10h18
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À revelia do vexame diante da Alemanha, a realização da Copa no Brasil poderia ser o maior cabo eleitoral da oposição — desde que a elite intelectual do País não se ajoelhasse diante do altar do futebol
José Maria e Silva
Brasileira para a Alemanha por 7 a 1, a Copa-Rombo de 2014 poderia ser o maior cabo eleitoral da oposição nas eleições de outubro. É certo que a possível influência da Copa no pleito divide opiniões. Enquanto para o cidadão comum, como se pode perceber nas conversas informais, essa influência é incontestável, os especialistas tendem a divergir quanto ao grau de influência de uma vitória ou derrota da Seleção no humor do eleitorado. Como argumento para dizer que o resultado da Copa não influencia as eleições, apontam o fato de que, em muitas situações nas quais o Brasil foi derrotado nos gramados, o candidato do governo não se abalou nas urnas e acabou sendo eleito assim mesmo.
Mas a Copa do Mundo de 2014 é diferente. Ela foi disputada no Brasil e seus efeitos na vida nacional vão muito além do que ocorreu nos gramados durante um mês. Desde que o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou sua realização no Brasil em 2007, a Copa se tornou um evento muito mais político do que futebolístico, sobretudo porque o Estado brasileiro estava profundamente envolvido em sua realização. Portanto, o sucesso ou o fracasso do evento fatalmente tem reflexos nas urnas. Disso não poderia haver dúvida, e todos os jornalistas, sociólogos e cientistas políticos, se pensassem menos com o coração, haveriam de concordar que o resultado do pleito de outubro, especialmente para a eleição de presidente da República, está indissoluvelmente ligado à Copa – não exatamente pelo sucesso ou insucesso da Seleção nos gramados, mas pela eficiência ou ineficiência do governo fora deles.
Entretanto, por incrível que pareça, a maioria dos analistas que tratam do assunto na imprensa tende a achar que a Copa do Mundo não terá influência alguma nas eleições. Até articulistas liberais e conservadores – que se opõem declaradamente ao governo petista – professam essa opinião equivocada, que, sem dúvida, só beneficia a candidatura de Dilma Rousseff, mesmo se o Brasil, em vez de ter sido derrotado fragorosamente pela Alemanha, viesse a ser hexacampeão. É claro que Dilma, Lula e os demais petistas, ainda que transformassem o Maracanã num grande palanque eleitoral, no caso do sucesso do Brasil, jamais iriam admitir qualquer relação entre futebol e política, pois, se o fizessem, estariam desmascarando o uso eleitoreiro que fazem da Copa e o tiro sairia pela culatra.
Prova disso é que, quando a Seleção se classificou para as semifinais e Dilma cresceu quatro pontos porcentuais na pesquisa Datafolha, aparecendo com 38% das intenções de voto, os petistas, inclusive a candidata, começaram a explorar eleitoralmente a Copa nas redes sociais – mas faziam de conta que agiam assim não por cálculo político, mas com a espontaneidade do coração de torcedor. Ora, eleição comporta uma lógica binária – o que é bom para o governo é ruim para a oposição. Se o governo, qualquer que fosse o resultado da Copa, jamais admitiria o seu uso político, isso significa que, para a oposição, se dá o contrário – é seu papel mostrar aquilo que o governo esconde e insistir sempre que o evento está sendo usado eleitoralmente. E não é só isso: ao invés de ficar separando Copa e eleição, devia era responsabilizar o governo por tudo aquilo que deu errado fora dos gramados. E foram muitas coisas.
Copa gera prejuízos ao comércio
Como era previsível, em função dos feriados e do clima de carnaval, a Copa do Mundo derrubou, em todo o País, a venda de automóveis, de móveis, de imóveis, de roupas e de qualquer outro produto que não estivesse diretamente relacionado aos festejos sazonais do evento futebolístico. Até no Rio de Janeiro, a capital mundial do futebol, o faturamento das lojas, segundo o Clube de Diretores Lojistas da cidade, deve fechar com uma queda nas vendas entre 50% e 70% nesse período da Copa, ocasionando uma perda de quase R$ 2 bilhões. Já a Associação Brasileira de Lojistas de Shopping (Alshop) reconhece que as vendas de junho foram tão ruins que os lojistas tiveram que dar descontos de até 70% para fazer capital de giro. Ou seja, o Brasil torrou mais R$ 20 bilhões dos cofres públicos para fazer aquilo que qualquer quermesse de interior, sem nenhum investimento público, sabe fazer muito bem – aumentar a venda de cerveja e salgadinhos, o único segmento do comércio que, de fato, cresceu com a Copa.
As grandes obras de mobilidade urbana – trem-bala, metrô, aeroportos, avenidas, viadutos, corredores de ônibus –, que prometiam mudar radicalmente a face das cidades-sede da Copa não saíram do papel. Por incrível que pareça, nem os hotéis e as companhias áreas tiveram lucro com a Copa. Para se ter uma ideia do engodo que foi esse evento, faltando três semanas para seu início, a ocupação dos voos para a final no Rio era de apenas 30%. Enquanto isso, os voos para a festa de São João em Campina Grande, na Paraíba, já estavam com 70% das passagens vendidas. Em Manaus, os hotéis só alcançaram 85% de ocupação entre os dias 12 e 26 de junho durante os jogos da Copa na cidade. Na primeira semana de junho, a ocupação ficou em torno de 35% e, na última, caiu para 24%. Tanto lá quanto em Cuiabá, a perspectiva é que, com o fim da Copa, os hotéis se tornem elefantes brancos, com vagas sobrando o tempo todo.
Para atrair turistas durante apenas uma semana da Copa, o poder público investiu só na Arena Amazônia quase R$ 700 milhões de reais e ainda bancou a construção de dois centros de treinamento exigidos pela Fifa, um no valor de R$ 21 milhões e outro no valor de R$ 15 milhões, totalizando um gasto público de R$ 36 milhões. E o que é mais grave: a Fifa, que exigiu a construção dos equipamentos, não usou nenhum deles. Deveria devolver ao erário amazonense o montante gasto nas duas obras inúteis, mas, obviamente, não irá fazê-lo, pois a Lei Geral da Copa, aprovada no Congresso Nacional com as bênçãos de toda a elite brasileira, inclusive dos partidos de oposição, prevê que todos os prejuízos eventuais da Copa sejam bancados pelo Brasil, que é responsável por pagar o custo do seguro do evento – uma cifra que deve ser milionária.
Um estudo realizado às vésperas do início da Copa pelo Fórum de Operadores Hoteleiros do Brasil revelou a seguinte taxa de ocupação dos hotéis nas cidades-sede: Rio de Janeiro (88%), Recife (84%), Natal (84%), Cuiabá (83%), Brasília (79%), Fortaleza (77%), Manaus (77%), Porto Alegre (71%), Salvador (67%), Belo Horizonte (67%), Curitiba (56%), São Paulo (31%). Em média, a Copa do Mundo foi capaz de preencher apenas 55% das vagas dos hotéis. A capital paulista, que já tem um forte turismo de negócios o ano todo, foi a mais prejudicada. É possível que o dinheiro que os turistas deixaram nos hotéis de São Paulo não foi suficiente para pagar nem o gasto que o poder público teve para garantir a segurança na Vila Madalena – uma espécie de Sodoma e Gomorra a céu aberto em todos os dias da Copa, especialmente durante os jogos do Brasil.
Combustível eleitoral para a oposição
Esses dados econômicos sobre a Copa seriam um excelente combustível eleitoral para a oposição. E não estou dizendo isso devido ao vexame do Brasil diante da Alemanha. O meu artigo da semana passada, concluído cinco dias antes da derrota para os alemães e um dia antes da vitória sobre a Colômbia, teve como título: “Confusão entre País e Seleção esconde o inegável fracasso da Copa”. E, no subtítulo, enfatizei: “Do ponto de vista do planejamento estatal, que é o que interessa, a Copa no Brasil é um completo fracasso, mas resta saber quem vai gritar isso na cara do governo – até a oposição se esqueceu do Brasil e torce pela Seleção”. Ou seja, mesmo se o Brasil fosse hexa e a presidente Dilma Rousseff transformasse Neymar e Felipão em seus cabos eleitorais, como também faria qualquer outro político em seu lugar, a oposição ainda teria uma larga margem de manobra eleitoral com a Copa, bastando denunciar o rombo que ela representa para os cofres públicos.
Reportagem da “Folha de S. Paulo”, publicada em 7 de julho, mostra que os responsáveis pelas obras dos estádios da Copa tiveram que pegar emprestados de bancos públicos R$ 4,3 bilhões, que, considerando os juros cobrados, chega a R$ 6,7 bilhões. Essa dívida deve se estender pela próxima década. Grande parte desse dinheiro foi para Estados como Amazonas e Mato Grosso construírem seus elefantes brancos. E, mesmo nos casos em que os empréstimos foram feitos em nome das empresas responsáveis pelas obras, eles serão quitados pelos governos estaduais. Ou seja, a fonte do empréstimo para construir os estádios é o governo federal, através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e a fonte dos recursos para pagar os empréstimos é o tesouro dos Estados e municípios que sediaram a Copa. A iniciativa privada se encarregou apenas de ficar com o lucro. E a oposição não pode falar nada – também ela brigou para ter cidade-sede nos Estados que governa.
Apesar disso, desde que a Copa teve início, a grande imprensa começou a fazer um equivocado “mea culpa”, afirmando que, ao contrário do que se imaginava, o evento é um “inegável sucesso” – expressão recorrente nos jornais. Um dos que fizeram uso dessa expressão foi o jornalista Lauro Jardim, da “Veja”, revista que a turma do PT acusa de ser ponta-de-lança do PIG, o “Partido da Mídia Golpista”. Em nota publicada em seu blog, no dia 2 de julho, Lauro Jardim escreveu que a nova pesquisa do Datafolha iria mostrar Dilma Rousseff com 38% das intenções de voto contra 20% de Aécio Neves e 9% de Eduardo Campos. E tirou as seguintes conclusões da pesquisa: “Em comparação com a sondagem anterior do Datafolha, publicada no dia 6 de junho, Dilma subiu quatro pontos percentuais, Aécio um ponto e Campos dois pontos percentuais. Se a comparação, porém, for com uma pesquisa mais recente, a do Ibope de duas semanas atrás, mais precisamente do dia 19, Dilma, Aécio e Campos caíram um ponto percentual cada. Neste caso, pode-se inferir que o sucesso inegável da Copa não ajudou Dilma em nada. Mais: não mexeu no quadro eleitoral, pelo menos ainda”.
Quando li aquela nota de Lauro Jardim, dois fatos me chamaram a atenção. Primeiro, o esforço dele para negar que Dilma havia crescido nas pesquisas, valendo-se de uma equivocada comparação de dados de institutos diferentes, Ibope e Datafolha, quando o certo seria considerar somente o crescimento de quatro pontos porcentuais entre as duas sondagens do Datafolha. Outro ponto que me chamou a atenção foi sua afirmação de que a Copa é um sucesso, algo que Reinaldo Azevedo e Rodrigo Constantino, dois outros blogueiros de “Veja”, também chegaram a dizer. Ora, se até excelentes blogueiros de “Veja” – que estão entre os maiores críticos do PT – repetem que a Copa é um “inegável sucesso”, como não esperar que Lula e Dilma transformem isso em dividendo eleitoral? O que os críticos do PT esperavam? Que gastando R$ 25 bilhões fosse possível não ter Copa, como diziam os vândalos das badernas de junho? É óbvio que haveria Copa, mesmo porque, bem antes de começar o certame, já se fazia ironia nas redes sociais: “O Gigante acordou – e está nas praças trocando figurinha”.
Em verdade, em verdade, eu vos digo: com R$ 25 bilhões para gastar, qualquer um vira Jesus Cristo, multiplica pães e ressuscita morto. É claro que Copa iria ter de qualquer jeito, a qualquer preço. E nos estádios e suas imediações, diante das câmaras da Rede Globo, ela estava fadada a ser perfeita. Nem que fosse ao custo de desalojar famílias, varrer das praças mendigos e drogados, botar a polícia e o Exército nas ruas e derrubar viadutos em cima de inocentes, como se viu nas cidades-sede. Mas a Copa está custando cinco vezes mais caro do que o previsto e, em lugar dos 100% de recursos privados em sua realização, prometidos pelo governo e pela CBF, o que se vê é justamente o contrário – o poder público bancou mais de 80% dos gastos faraônicos do evento, numa sangria de recursos públicos nunca antes vista neste País, que só serviu para encher as burras da Fifa, da Globo e das empreiteiras. Até flamenguistas, corinthianos, esmeraldinos, vilanovenses sabem disso e reclamam nas redes sociais.
O futebol já é estatizado no Brasil
Muitos articulistas da nova direita brasileira, tanto liberais quanto conservadores, esmeram-se em separar a Copa da eleição, afirmando que o “sucesso inegável” da Copa se deve ao povo, não ao governo. Mas, por acaso, o povo faria a Copa sozinho se Lula, autocraticamente, não a tivesse trazido para o Brasil? Reconhecer que a Copa é um sucesso protagonizado pelo povo está longe de ser uma forma eficiente de jogar o governo petista para escanteio – trata-se de levantar a bola na área para Lula cabecear para o gol, reelegendo Dilma. Com a vexaminosa derrota do Brasil para a Alemanha, o uso político da Copa por parte do governo sai muito enfraquecido. Mas só num primeiro momento. Depois que o povo se esquecer do 7 a 1 e voltar a cuidar de sua própria vida, o que passa a ter importância não é mais o futebol como espetáculo, mas a Copa como organização – e aí a oposição estará no mato sem cachorro, já que insistiu em dizer que a Copa foi um sucesso. Se Aécio criticar a Copa agora, depois da derrota para a Alemanha, parecerá oportunismo. Por não ter feito o dever de casa antes, provavelmente ele não conseguirá capitalizar o presente da Alemanha à oposição.
O PT está sempre voltando com a farinha enquanto a oposição ainda está plantando a mandioca. A oposição diz que a Copa foi um sucesso e, sem querer, aprova a decisão de Lula de trazê-la para o País, mas o governo sabe que ela foi um fracasso e já tem um novo mote para superar o vexame da Seleção – a intervenção do poder público no futebol. O comunista Aldo Rebelo, ministro do Esporte, declarou que o governo precisa interferir na gestão dos clubes. E Dilma Rousseff mostrou-se preocupada com a exportação de jogadores para a Europa. Repetindo o Estado Novo de Getúlio Vargas, o governo petista dá mostras de que pretende estatizar o futebol – despertando a indignada reação dos liberais. Ora, não há razão para espanto. Na prática, o futebol brasileiro já foi estatizado. Manda quem paga. E quem pagou mais de 80% dos custos da Copa? Se a nação não se indignou à altura do desperdício de mais de R$ 20 bilhões nesse evento, é sinal de que não vai – e moralmente nem pode – se incomodar com essa proposta de Aldo Rebelo.
E os gastos públicos com o futebol não se limitam a realização dessa famigerada Copa de 2014. Desde 1984, por exemplo, a Petrobrás investe anualmente no Flamengo R$ 15,7 milhões, além de patrocinar diversos outros clubes com quantias menores. Por sua vez, a Caixa Econômica Federal distribui R$ 100 milhões por ano para vários clubes de todo o País, entre eles, o Corinthians, com R$ 30 milhões, e o Flamengo, com R$ 25 milhões. Muitos desses patrocínios são apadrinhados por políticos aliados do governo, como foi o caso do milhãozinho de reais que o Asa de Arapiraca, em Alagoas, ganhou da Caixa, com as bênçãos do senador Fernando Collor (PTB-AL), antigo desafeto e hoje aliado de Lula. Como a maioria dos formadores de opinião, à esquerda e à direita, presta um culto idólatra ao futebol, ir contra essa injeção de dinheiro público nos clubes fica parecendo sacrilégio. Que ninguém se espante se até Aécio Neves aderir à proposta de Aldo Rebelo – diante do altar do futebol, todos os políticos são iguais.