Crise na cobertura de vacinas traz de volta doenças erradicadas no passado
13 setembro 2020 às 00h01
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População atingida pelas campanhas de vacinação tem diminuído e efeitos desse fenômeno já começam a ser sentidos
Em setembro de 2016, o Brasil foi agraciado com o certificado de eliminação do sarampo no território nacional. O reconhecimento, concedido pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) em um evento realizado em Washington, Estados Unidos, marcou um cenário de extinção da doença que, até o início da década de 1980, época em que começou um programa maciço de imunização, era responsável por cerca de 2,6 milhões de mortes por ano no mundo, mais de 100 mil somente nas Américas.
Contudo, a comemoração do feito durou pouco. Ao longo de 2018, após o registro de um surto com origem na Venezuela, mais de 10.300 casos de sarampo foram confirmados no Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde, distribuídos nos estados de Roraima, Amazonas, Pará, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Pernambuco, Sergipe, Bahia, São Paulo, Rondônia e também no Distrito Federal.
A doença continuou abrindo caminho no país. Até março de 2019, quase 50 casos de sarampo já haviam sido confirmados e, no mesmo mês, devido à transmissão sustentada do vírus causador da enfermidade, o Brasil amargou com a perda da certificação obtida pela OPAS. Na ocasião, o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, afirmou que prepararia um pacote de ações para reverter a queda das taxas de vacinação. Todavia, tal pacote parece não ter surtido efeito.
Agora, em 2020, o país sofre mais um golpe que deixa tanto o governo quanto a população na corda bamba da saúde pública. De acordo com dados de 2019 do Programa Nacional de Imunizações (PNI) analisados pelo jornal Folha de São Paulo, o Brasil, pela primeira vez em 20 anos, não atingiu a meta para nenhuma das principais vacinas indicadas para crianças de até um ano, como tuberculose, rotavírus, sarampo, difteria, tétano, coqueluche e poliomielite. Esse declínio histórico da cobertura de vacinação assusta especialistas da área de saúde, que temem a volta de doenças que, até então, eram consideradas erradicadas, que é o caso do sarampo.
Para o médico infectologista Marcelo Daher, o surto registrado da doença no Brasil é um reflexo direto da queda contínua das taxas de vacinação. “Esse número de casos aumentado que a gente viu não é por conta de Venezuela ou outro país que, por acaso, tenha vindo alguém pra cá. Esse número de casos aconteceu porque a cobertura vacinal estava baixa”, afirma.
De acordo com Daher, quando há queda na cobertura vacinal, a doença não reaparece de imediato. Porém, na primeira oportunidade de reentrada no país, caso encontre um cenário escasso de imunizações o vírus começa a se proliferar e acaba saindo de controle. “É mais ou menos como a gente está vendo com a covid”, exemplifica.
“A doença que tem vacina, ou a doença que a transmissão é um pouco mais difícil, dá tempo de fazer vacinação de bloqueio e controlá-la. Mas outras doenças como paralisia infantil, coqueluche, caxumba, que já tivemos alguns surtos, até mobilizar todo mundo pra fazer campanha de vacinação acontece uma disseminação da doença de maneira intensa”, esclarece o médico.
Reaparecimento de doenças erradicadas
Se por um lado os dados sobre a cobertura vacinal e o reaparecimento de doenças outrora erradicadas alarmam, por outro, os métodos de contabilização também merecem atenção. É o que defende Marcelo Daher, que considera que o aumento do registro de enfermidades antes tidas como controladas pode ter origem na mudança do sistema de notificação, o que poderia ter causado um delay entre a data de ocorrência e a data de informação dessas.
O médico explica que profissionais e autoridades da saúde realizavam as notificações de doenças manualmente, mas que, agora, o registro é lançado em plataformas online. A migração de dados e metodologia, segundo Daher, pode não estar ocorrendo de forma simultânea, o que justificaria o aumento anormal do número de casos de infectados. “Muitos Estados e municípios ainda estão lançando os dados de anos anteriores no sistema. Então, pode ser ainda que isso seja um reflexo. Isso é uma possibilidade”, avalia.
Mesmo admitindo a baixa cobertura vacinal, Daher também não descarta a hipótese de equívoco na análise de dados, uma vez que, conforme o infectologista, um movimento antivacina não tem expressão sólida no Brasil como em países europeus. “A gente ainda não vê no país, de maneira muito importante, pelo menos com vacina infantil, esse movimento antivacina tão crescente como acontece na Europa. Quando a gente observa no geral, o Brasil tem feito as vacinas de uma forma natural […]. Estamos falando de vacina para menor de um ano, e menor de um ano os pais levam para vacinar”, conclui.
Já o médico infectologista Daniel Strozzi associa a queda na cobertura vacinal ao “medo da população de ir até serviços de saúde”. De acordo com Strozzi, que é proprietário de uma clínica de vacina, é notado um certo receio por parte de alguns de “expor” os filhos ao sistema de imunização.
Além desse fator, conforme o infectologista, a extinção do modelo de vacinação em que os profissionais de saúde aplicavam na criança todas as vacinas pendentes quando essas compareciam no posto de saúde também pode ter contribuído para a redução da cobertura vacinal.
“Antigamente tinha a campanha do Zé Gotinha. No início, tinha que levar o filho para onde havia a vacinação contra a pólio e tinha que levar o cartão de vacina […]. Chegando lá, dava para avaliar o cartão de vacina e a gente já aplicava as que estavam faltando. Era uma forma também de ampliar o quadro vacinal. Hoje, isso está abolido”, relata.
Strozzi afirma que doenças que já estiveram no patamar de erradicadas, agora, estão voltando a aparecer nos registros, o que preocupa as autoridades públicas. “O próprio sarampo já está voltando. Já há muitos casos de sarampo. Tanto é que a Secretaria Municipal de Saúde está fazendo campanhas em locais específicos para tentar aumentar essa cobertura [vacinal]”, expõe.
Nenhuma vacina é 100%, diz infectologista
Em meados do ano passado, o músico goiano Chrisley Hernan, de 22 anos, hoje residente em São Paulo, contraiu sarampo. Chrisley conta que ficou de cama com o corpo coberto de manchas, febre, ínguas e incômodo na garganta. Os sintomas duraram cerca de 10 dias.
O músico viaja muito a trabalho. À época, Chrisley havia ido a Belém, no Pará, Rio de Janeiro e havia sido circulado no próprio estado de São Paulo. Porém, o rapaz não sabe diz onde pode ter se contaminado. “Quando eu fui no postinho e saiu o resultado que era sarampo, eles precisavam fazer vários tipo relatório ali pra entender os lugares que eu tinha ido, frequentado e tudo mais, para poder fazer uma campanha de vacinação”, recorda.
Chrisley relata que o tratamento se deu à base de muita hidratação e remédios para tirar a dor, como dipirona. Na mesma época em que teve sarampo, Chrisley também teve uma virose que afetou sua garganta. A médica analisou os sintomas e receitou outro medicamento para cortar a febre. Mas o que mais chamou a atenção foi o fato de o músico ter se contaminado mesmo tendo sido, segundo ele, vacinado contra sarampo por três vezes, em diferentes épocas da vida. Ma ser vacinado contra uma doença e, mesmo assim, contraí-la é possível. A ciência explica.
Conforme o infectologista Daniel Strozzi, nenhuma vacina é 100% eficaz e, por isso, quando se fala em doenças de alta transmissibilidade, é preciso realizar a vacinação do maior número de pessoas para atingir a chamada “vacinação de rebanho”. “Quanto mais gente imune, a doença trava”, diz. Entretanto, segundo Strozzi, pode haver circunstâncias em que, no corpo humano, a substância aplicada para imunização perde totalmente o efeito.
O médico esclarece que a vacina contra sarampo tem um vírus atenuado. Caso a pessoa tenha tido febre ou uma outra infecção viral alta pelo período de 15 dias e, nesse intervalo, for vacinada contra sarampo, o corpo produz uma substância que anula o efeito da imunização.
“Mas ele [Chrisley] teve três doses de vacina. É meio complicado nas três vezes ele ter tido esse problema, porém, existe essa possibilidade. Vacina de vírus vivo só pode ser tomada a partir de 15 dias depois de ter tomado uma vacina contra vírus, ou de ter tido um episódio de febre”, alerta Strozzi.
De acordo com o infectologista, com as devidas orientações sendo seguidas, a vacina é o caminho certo para a prevenção de doenças e arremata: “É o único meio que temos hoje”.
A cobertura vacinal em Goiás
Para a Secretaria de Saúde de Goiás (SES-GO), a queda nas coberturas vacinais ao longo dos anos é justificada por fatores como a circulação de notícias falsas sobre a vacinação no Brasil e a sensação de segurança provocada pelo sucesso da vacinação no país ao longo das últimas décadas, com a consequente erradicação de doenças, “contribuindo para que a população considere a vacinação desnecessária”.
A pasta também atribui à indisponibilidade de horários alternativos de funcionamento das salas de vacina no país e o não registro de todas as doses aplicadas no sistema de informação do Programa Nacional de Imunizações os números baixos da cobertura vacinal. “Além disso, em 2020 há ainda a atual situação da pandemia causada pelo coronavírus, que gera medo e insegurança da população em procurar as salas de vacina”, diz a Secretaria.
Quanto ao cenário em Goiás, a SES informou que, entre as ações desenvolvidas para alcançar as coberturas vacinais preconizadas pelo Ministério da Saúde, estão a manutenção da distribuição dos imunobiológicos de rotina e de campanha; parceria com municípios em ações de vacinação fora das salas de vacina; avaliação quadrimestral das coberturas vacinais; capacitações dos profissionais de saúde envolvidos nas atividades de imunização e emissão de Nota Técnica para os estabelecimentos de saúde com as normas de segurança para vacinação em momentos de pandemia.
Conforme a pasta, “a multivacinação é a próxima campanha nacional que tem como estratégia, em um único momento, ofertar à população-alvo várias vacinas, facilitando assim a ida dos pais ou responsáveis ao serviço de saúde para atualização da caderneta das crianças e dos adolescentes, garantindo assim a proteção contra diversas doenças imunopreveníveis, melhorando também as coberturas vacinais no país”.
“A meta, com a próxima campanha, é atualizar a caderneta de vacinação das crianças e adolescentes menores de 15 anos de idade, conforme situação vacinal encontrada de acordo com o Calendário Nacional de Vacinação. Para a execução dessa campanha estão sendo realizadas capacitações, além do planejamento de estratégias para vacinação dessa população. É importante ressaltar que as doses das vacinas estão disponíveis, ao longo de todo o ano, nos postos de saúde distribuídos nos 246 municípios goianos”, afirmou a Secretaria, por meio de nota.