CPI da Covid deverá encontrar abundância de evidências
18 abril 2021 às 00h00
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Especialistas ouvidos debatem legalidade, causas, consequências e possíveis resultados da CPI da Pandemia e afirmam que inquérito pode dar em tudo, inclusive nada
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia foi criada oficialmente na terça-feira, 13. Com o objetivo inicial de investigar ações e omissões do governo federal durante a crise de oxigênio no Amazonas, o foco da CPI foi ampliado após esforço do Planalto para englobar possíveis irregularidades em contratos e serviços feitos por estados e municípios em todo o Brasil durante toda a pandemia.
À parte da discussão jurídica sobre a constitucionalidade de um inquérito no senado federal que investiga atuação de governadores e a discussão política sobre a composição e relatoria da CPI, cabem as perguntas: quais pontos podem ser investigados? Já somos capazes de apontar possíveis omissões e responsabilidades do governo federal durante a pandemia que matou 370 mil brasileiros? As investigações podem resultar em elementos para futuras investigações de instituições competentes, como Ministério Público Federal e Polícia Federal?
Primeiro, é necessário esclarecer que estes inquéritos têm poderes de investigação próprios das autoridades judiciais. Os membros da comissão podem convocar pessoas para depor, ouvir testemunhas, requisitar documentos e realizar outras diligências. Também podem quebrar o sigilo bancário, fiscal e até o sigilo telefônico de indiciados. Porém, os integrantes da CPI não podem mandar prender suspeitos ou abrir processo. Quando concluídos os trabalhos, é apresentado um relatório final e, se for o caso, as conclusões devem ser encaminhadas ao Ministério Público, para que o órgão promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.
Questão jurídica
O advogado, mestre em Direito e Relações Internacionais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) Cássio Faeddo explica como funciona a responsabilização de agentes públicos nas CPIs. Segundo ele, o principal sobre a CPI é que ela é uma materializadora de provas sem igual. Muitas investigações são inconclusivas ao final, seja por falta de provas, seja por nulidades criadas no âmbito das investigações, atos de procrastinação gerados no andamento das investigações, ou interferências políticas. Mas, mesmo que não haja o indiciamento dos responsáveis pelas centenas de milhares de mortes, as provas poderão ser apresentadas nos tribunais internacionais. “Ou seja, ou se pune no Brasil ou se pune via tribunais de direitos humanos”, afirma o advogado.
“Neste momento já há quase 400 mil mortos, e o Brasil caminha na direção de ser o país com o maior número de vitimados na pandemia. Ocorre que o presidente do senado, Senador Rodrigo Pacheco, recém eleito presidente do Senado, deixou de instalar comissão para investigar irregularidades na gestão de saúde referente à COVID-19, por uma questão exclusiva de conveniência e de temerário risco jurídico. Já havia 1/3 de assinaturas exigidos pela Constituição. Por isso, o Supremo Tribunal Constitucional brasileiro (STF), acionado por partidos políticos, determinou a instalação de CPI para apurar a gestão da pandemia”, afirma Cássio Faeddo.
Cássio Faeddo explica que as punições poderão ocorrer no âmbito civil de reparação indenizatória ou sanções criminais. As sentenças no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos não têm efeito criminal, mas de reparação de danos. Isso já ocorreu no caso do Carandiru, por exemplo – determinação de obrigações de reparação e outras medidas. Já no Tribunal Penal Internacional, as penas não são reparações civis, mas esta julgará criminalmente acusados por crimes de guerra, crimes contra a humanidade, crime de genocídio e crime de agressão.
“Ainda assim, é um tribunal complementar. Primeiro deve-se julgar os acusados na jurisdição interna, e somente em caso de omissão da justiça local, o acusado será conduzido ao TPI (artigos 1° e 5° do Estatuto de Roma). A pandemia é um tema novíssimo no ambiente internacional, como já havíamos mencionado em outras oportunidades, e certamente o fato de o Brasil estar próximo a liderar o ranking de mortos, nos conduzirá a caminhos ainda não trilhados no direito internacional público.”
No âmbito da responsabilização civil, será bem provável que inúmeras ações indenizatórias sejam propostas decorrentes das mortes causadas por má orientação da administração federal, omissão e atraso na vacinação (especialmente em 2020) e falta de equipamentos nos hospitais. Da mesma forma, se o Judiciário brasileiro for lento ou omisso, a CIDH – Corte Americana de Direitos Humanos será o caminho para reparação indenizatória, conforme explica o jurista.
“Nunca antes acompanhamos acontecimentos de magnitude jurídica tão impressionantes no ambiente interno que podem deflagrar a jurisdição internacional. Será um desafio para as instituições internas. Somente a cegueira dos dirigentes políticos pode justificar não enxergar o que está pela frente e como estes poderão ser responsabilizados. A CPI tem o potencial de se tornar um primeiro passo para a abertura de apuração de responsabilidades. O político que tiver algum juízo, não a interromperá ou colocará obstáculos a seus trabalhos. Porém, com ou sem CPI, a responsabilização poderá tardar, mas não falhará”, conclui Cássio Faeddo.
Questão econômica
De acordo com o economista Igor Macedo de Lucena, a CPI da situação da Covid-19 é delicada de tratar, pois há duas visões políticas. “A primeira busca identificar falhas do governo federal que é onde a CPI tem autoridade jurisdicional e, a outra, envolve analisar supostos desvios de recursos federais em estados e municípios, dados que a CPI não tem poder de investigação sob estados e municípios, mas se os recursos são federais, poderia se ou não investigar?”, questiona.
De acordo com ele, vai haver um conflito de competências e pode terminar no STF. “Um fato importante é que CPIs têm um período determinado de análise, quando se coloca com um escopo tão grande como realizado pelo presidente Rodrigo Pacheco, você investiga tudo e não investiga nada, e a probabilidade da CPI não dar em nenhum resultado prático é muito grande”, complementa.
Para Igor, do ponto de vista econômico, isso não terá muita relevância, mas atrapalha quando o assunto é reorganização em orçamento público, necessidade de concentrar esforços do Governo Federal na aprovação de um possível estado de calamidade, aumento do auxílio emergencial, por exemplo. “Cria uma instabilidade do ponto de vista político e econômico, porque quando uma CPI é aberta, pode gerar crises que tornam mais difíceis o investimento, mercado financeiro mais volátil e tira o foco da recuperação econômica”, diz.
“No G20, o Brasil é o único que está regredindo economicamente por conta de uma má gestão da pandemia e falta de coordenação política geral. Essa CPI só vai atrapalhar, agora o Governo Federal tem que focar esforços nas medidas de ajustes e apoio a empresas e pessoas e, principalmente, mostrar uma capacidade de estabilidade política. Isso tudo é ao contrário do que a CPI vai proporcionar. Na minha opinião, essa CPI é inócua e vem em um momento muito ruim para todos”, revela.
Questão humanitária
Levanta-se diversas possíveis evidências de que o governo do presidente Jair Bolsonaro não apenas se omitiu das ações de combate à Covid-19, mas ativamente agiu para espalhar o vírus no Brasil. Talvez apostando em uma ideia de imunidade de rebanho – como aquela defendida inúmeras vezes pelo ex-ministro da Cidadania e deputado federal Osmar Terra (MDB/RS) – ou talvez subestimando a letalidade do vírus, o governo federal é acusado de negligenciar vacinas e tentar sabotar o uso de máscaras e isolamento social.
Na manhã desta quinta-feira, 15, os Médicos Sem Fronteiras (MSF) classificaram a situação no Brasil como uma “catástrofe humanitária”. A caracterização é decorrente da não existência de ações eficientes de saúde pública com o objetivo de prevenir e combater a Covid-19 no país, mesmo tendo-se passado mais de 12 meses do início da pandemia. “A falta de vontade política para responder de forma adequada à pandemia está matando milhares de brasileiros. As autoridades brasileiras precisam reconhecer a gravidade da crise e implementar um sistema coordenado para impedir mais mortes evitáveis”, apela o MSF.
“Além de garantir que oxigênio, sedativos e equipamentos de proteção individual (EPI) cheguem aonde são necessários, é preciso que, nas comunidades, as pessoas usem máscaras, façam distanciamento social, sigam medidas rígidas de higiene e restrinjam todos os deslocamentos não essenciais”, diz Meinie Nicolai, diretora-geral dos MSF. O comunicado relata que, em hospitais ao redor do Brasil, há falta de oxigênio e de sedativos necessários para intubar pacientes graves.
“A falta de vontade política para responder de forma adequada à pandemia está matando milhares de brasileiros”, afirma o documento publicado no dia 15. “Os Médicos Sem Fronteiras fazem um apelo urgente às autoridades brasileiras para que reconheçam a gravidade da crise e implementem um sistema coordenado para impedir mais mortes evitáveis.” Além disso, a organização ressaltou o papel da “avassaladora quantidade” de desinformação no agravamento da pandemia no Brasil, como a promoção da hidroxicloroquina e ivermectina como tratamento e prevenção para a Covid-19.
A CPI buscará levantar evidências de que “direitos fundamentais básicos à vida e à saúde foram violados pelo governo federal”, como escreveu o senador Randolfe Rodrigues (REDE-AP) no requerimento para criar o inquérito, . “Ocupando o segundo lugar mundial em número de mortos pela covid-19, o Brasil tem dado péssimo exemplo quanto ao controle da pandemia”, alega o documento, com a justificativa de que o Executivo Federal “não seguiu orientações científicas de autoridades mundiais”, como a OMS (Organização Mundial da Saúde).
“O presidente demitiu até mesmo dois Ministros da Saúde, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, pelo fato de não seguirem as suas crenças e quimeras na condução de políticas públicas de saúde”, diz o requerimento. Se a CPI for aprovada, por exemplo, senadores que integrarem o grupo poderão solicitar depoimentos de Mandetta e Teich, assim como do ex-ministro Eduardo Pazuello. O texto alega ainda que o governo “tentou impedir que os entes federados pudessem tomar medidas para diminuir o ritmo de propagação do vírus, como o isolamento social, o uso de máscaras e álcool em gel”.
O requerimento que busca a criação da CPI também embasa o pedido nos “obstáculos” que o governo federal teria estabelecido na aquisição de vacinas contra a covid-19. “Primeiro, procuraram desacreditar e retardar, por pura disputa ideológica e política, a vacina CoronaVac simplesmente porque ela foi desenvolvida por uma empresa chinesa em parceria com o Instituto Butantan”, diz o texto.
O chefe do Executivo de fato já desconfiou publicamente, mais de uma vez, da CoronaVac. Quando o ex-ministro Pazuello anunciou um acordo para a compra de 46 milhões de doses, por exemplo, o presidente chamou o imunizante de “vacina chinesa de João Doria” nas redes sociais e afirmou que o governo não compraria o imunizante.
“Depois, quando dezenas de países já tinham adquirido vacinas e preparado Planos de Vacinação, o Ministério da Saúde não havia nem assegurado um estoque adequado de agulhas e seringas, muito menos de vacinas”, acrescenta o requerimento da CPI. O documento também cita o fato do STF ter precisado intervir, com decisão judicial, para que o governo entregasse o Plano Nacional de Vacinação contra a covid, em dezembro do ano passado.
Mesmo após essa entrega, no entanto, ministros da Corte intimaram novamente o Ministério da Saúde para atualizar o cronograma, doses e fases previstas no Plano para a imunização contra a covid. “Com o recrudescimento da Covid-19 em dezembro de 2020 e janeiro de 2021, as omissões e ações erráticas do Governo Federal não podem mais passar incólumes ao devido controle do Poder Legislativo”, concluiu o requerimento.
Questão de sobrevivência
Além das medidas sanitárias e de saúde pública, a CPI da Covid também poderá se debruçar sobre mecanismos fornecidos pelo governo para que os cidadãos atravessem a crise econômica causada pela pandemia. Em 2020, foram pagas nove parcelas do Auxílio Emergencial, sendo as cinco primeiras de R$ 600 ou R$ 1.200 e as quatro últimas de R$ 300 ou R$ 600. No total, 67,9 milhões de brasileiros (um terço de toda população brasileira) receberam cerca de R$ 294 bilhões.
Em 2021, o benefício estará disponível apenas para quem já se cadastrou no ano passado, e os novos recebimentos terão novos critérios de elegibilidade: famílias compostas de apenas uma pessoa poderão receber parcelas de R$ 150; famílias com duas ou mais pessoas terão direito a R$ 250; e as famílias nas quais as mulheres são a única provedora terão acesso a parcelas de R$ 375.
Além da redução no valor, a inflação aumentou o custo de itens básicos. Segundo um estudo feito por pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas e publicado pela Agência Bori no dia 8 de abril, o pagamento do novo auxílio emergencial de R$ 150 que deverá retornar a partir da primeira semana de abril não conseguirá compensar as perdas de renda para cerca de 43% dos trabalhadores beneficiários.
Ainda que recebam parcelas de R$ 150 de auxílio emergencial, estima-se que as cerca 20 milhões de pessoas que compõem uma família de uma pessoa vão enfrentar perdas de renda, que não serão suficientes para compensar os desafios do momento de pandemia na maioria dos estados brasileiros. Os poucos estados que registram alguma compensação de renda estão situados majoritariamente no norte ou nordeste, como é o caso do Amazonas, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Roraima e Sergipe. Para os pesquisadores, esse dado reflete a desigualdade regional de renda existente no país.
Mesmo recebendo um valor intermediário de R$ 250, oferecido a mais de 16 milhões de famílias compostas de duas ou mais pessoas, os pesquisadores ressaltam que não haverá compensação em domicílios de todos os estados brasileiros. “Esse fato pode agravar ainda mais a situação destas famílias diante da intensidade da segunda onda e do surgimento de eventuais repiques da doença ao longo do ano”, detalha o pesquisador Lauro Gonzalez, autor do estudo.
“Diante das evidências de que o auxílio emergencial pago em 2020 contribuiu decisivamente para uma contração menor do PIB – queda de 4,1% diante de uma expectativa inicial de 9% – é preocupante imaginar um cenário combinando o recrudescimento da pandemia e uma proteção social inadequada”, alerta Gonzalez.