Covaxin: a história da vacina que parece ter “ido” sem nunca ter vindo
26 junho 2021 às 19h34
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Até semanas atrás, pensava-se que o crime a ser apurado pela CPI na gestão do governo seria apenas relativo ao negacionismo da doença e das medidas sanitárias
Uma declaração-anedota que foi ouvida por aqui e por ali, meses atrás, quando ainda mal se falava em instalar uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) para apurar o péssimo desempenho de Jair Bolsonaro (sem partido) e sua trupe no combate à pandemia no País: “É incrível a capacidade que tem esse governo de se esconder atrás do manto de que não faz corrupção para justificar por que não comprou vacina com antecedência.”
Por isso é muito irônico que, depois de toda a saga para negar aos brasileiros uma campanha ágil de vacinação contra a Covid-19 – o que seria possível e bem previsível com a estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS) e como vem se mostrando por meio da intensificação da aplicação das doses nas últimas semanas –, o governo federal se veja enredado em seu maior escândalo de corrupção exatamente pela compra de um imunizante.
Até semanas atrás, pensava-se que o crime a ser apurado pela CPI na gestão do governo seria relacionado ao negacionismo da doença e ao desprezo das medidas sanitárias. Apesar de estarem claras a negligência e a omissão em uma circunstância de pandemia, Bolsonaro conseguia encaixar, especialmente para seus seguidores e para um público sem opinião formada, que tinha convicções apenas ideológicas, ainda que equivocadas.
Chamar de “genocida” alguém que acredita estar fazendo o certo ao defender remédios ineficazes, ao duvidar de vacinas produzidas em curto prazo e ao reiterar que “a fome mata mais do que o vírus” parecia apenas coisa de tiozão do churrasco. Era somente a imagem mediana do brasileiro mal-informado, cheio de certezas não apuradas, mas bem-intencionado, diriam alguns.
“Negocionismo”
Tudo isso, no entanto, começa a ruir quando o que se pensava ser coisa de negacionista possa na verdade tomar parte em um “negocionismo” – neologismo usado na semana passada pelo jornalista Reinaldo Azevedo, o mesmo que inventou o termo “petralha” para se referir a ocupantes do Planalto em governos de um passado recente.
Pelo depoimento prestado na sexta-feira, 25, pelos irmãos Luis Ricardo Fernandes Miranda, servidor concursado do Ministério da Saúde, e Luis Cláudio Fernandes Miranda, deputado federal (DEM-DF), o que fica entendido é que o governo federal não tinha uma reticência generalizada com vacinas.
Vamos entender o caso Covaxin, a vacina indiana ainda não aprovada pela Anvisa (e nem pelo governo do país de origem) e pela qual o governo estava pagando muito mais do que pela insistente Pfizer. Mas, nossa história começa ainda no governo de Michel Temer, mais precisamente em 15 de fevereiro de 2018, quando o então ministro da Saúde, Ricardo Barros, nomeou a servidora Regina Célia Silva Oliveira, na função comissionada de assistente técnica da Secretaria de Vigilância em Saúde.
Com a pandemia em curso, Bolsonaro se perde na condução do combate à Covid-19, vem a prisão de seu amigo Fabrício Queiroz e, para sobreviver no cargo, quem se entrega é o próprio presidente, ao Centrão. No rastro das negociações, o deputado Barros vira o líder do governo na Câmara.
Veio a corrida por vacinas, com empresas disputando um mercado de 7 bilhões de potenciais consumidores. Só o Brasil soma mais de 200 milhões deles. O governo federal passou a ser naturalmente assediado por indústrias farmacêuticas do setor de imunizantes. Uma delas foi a Pfizer, que chegou a colocar seu produto, a Comirnaty, à disposição para negociação, com uma insistência que chegou a 81 e-mails.
Bolsonaro primeiramente recusou sistematicamente a compra antecipada de vacinas, que só seriam adquiridas “com a aprovação da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária]”, mesmo sendo de gigantes mundialmente reconhecidas no ramo. Mais do que isso disse que “não iria atrás de nenhuma empresa para adquirir vacina”. “Elas que venham atrás.” A Pfizer, nem assim. Já a Coronavac, da chinesa Sinovac, é defenestrada, principalmente por ser uma realização do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), pela parceria por meio do Instituto Butantan.
Mas a ciência se impõe. Na batalha política particular com Bolsonaro, o governo paulista consegue a aprovação da Coronavac, em 17 de janeiro. No mesmo dia, Doria faz ser vacinada a enfermeira Mônica Calazans. É o que basta para o governo correr atrás de uma vacina concorrente para mostrar serviço: como a produção da vacina Oxford/AstraZeneca em território brasileiro, pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ainda demoraria algumas semanas até chegar ao braço do cidadão, a União importa 6 milhões de doses diretamente da Índia.
Do mesmo país oriental, ressalte-se, já havia a notícia de que, em 8 de janeiro, o presidente tinha feito chegar ao primeiro-ministro Narendra Modi uma carta em que anunciava que a Covaxin havia sido selecionada pelo Programa Nacional de Imunização. Dias antes, mais precisamente em 3 de janeiro, Ricardo Barros havia feito uma emenda à Medida Provisória 1.026/2021, que visava facilitar a importação de vacinas.
Por causa da urgência, a MP flexibilizava a análise dos imunizantes pela Anvisa. Dessa forma, o imunizante “candidato” poderia ser aprovado mesmo sem ter tido estudo em fase 3 no Brasil, desde que houvesse registro prévio emitido por determinadas autoridades sanitárias, que eram: a FDA [Food and Drug Administration], dos Estados Unidos; a EMA [European Medicines Agency], da União Europeia; a PMDA [Pharmaceuticals and Medical Devices Agency], do Japão; a NMPA [National Medical Products Administration], da China; e a Medicines and Healthcare Products Regulatory Agency [MHRA], do Reino Unido.
Emenda “dirigida”?
Pela emenda, Barros consegue incluir a agência sanitária da Índia, a Central Drugs Standard Control Organization (CDSCO), o que passa a permitir a compra da vacina Covaxin, produzida pela empresa Bharat Biotech. Dez dias após a carta de Bolsonaro a Modi – e um dia após a primeira vacina aplicada no Brasil –, o Ministério da Saúde entra em contato com Francisco Maximiano, presidente da Precisa Medicamentos, para iniciar tratativas comerciais.
Já em 3 de fevereiro, chega à Precisa a solicitação da minuta de contrato de compra e venda. Oito dias depois, a farmacêutica brasileira indaga a quantidade de doses de Covaxin necessárias. O ofício é respondido no mesmo dia pela pasta, informando o total de 20 milhões de doses. Uma agilidade de passar muita inveja à Pfizer, não?
Ainda em fevereiro, o Ministério da Saúde discute em reunião técnica os termos do contrário e faz a publicação da dispensa de licitação, Uma semana depois, é anunciada a assinatura do contrato para compra dos milhões de doses da Covaxin, num total de R$ 1,614 bilhão, um valor muito superior, em relação ao número de doses, ao despendido para as demais até então e para algo com eficácia até então duvidosa mesmo na Índia, além de recusada pelos países mais desenvolvidos – um dos motivos que o governo usava, por exemplo, para desqualificar a Coronavac.
O que tornava tudo mais estranho – para dizer uma palavra mais leve – é o fato de ser a Covaxin a primeira vacina intermediada por uma empresa: a Precisa Medicamentos é a representante dos indianos no Brasil. Por coincidência mais obscura ainda, o mesmo Ricardo Barros é réu, com a Global Gestão em Saúde, em uma ação de improbidade administrativa de dezembro de 2018. A Global é parceira comercial da Precisa.
A ação foi apresentada pela procuradora da República Luciana Loureiro, que entendeu ter o Ministério da Saúde entre 2016 e 2018 – período da gestão de Barros – descumprido decisões judiciais que determinavam o fornecimento de remédios a pacientes com doenças raras e retardado aquisição de itens, além de pagar antecipadamente R$ 19,9 milhões à Global, que mesmo assim não foi capaz de entregar o encomendado.
A empresa teria oferecido o menor preço, mas não tinha os produtos para entregar. A solução era chamar a segunda colocada, mas Barros teria insistido na Global e – guarde esse detalhe – pressionado servidores do Ministério da Saúde nesse sentido.
Voltando ao caso Covaxin, um contrato não é simplesmente assinado e ponto final. É preciso passar pela rotina burocrática. É algo que muitas vezes favorece a corrupção e “encarece” o custo final do produto quando vendido ao setor público. Parece que, nesse caso, o que houve foi o inverso. O contrato de compra da vacina chegou até Luis Ricardo, responsável pela liberação de importações de insumos no Ministério da Saúde. Ele verificou, entre outras irregularidades, uma clara fraude na nota fiscal (“invoice”, no jargão da área), onde aparecia o nome de outra empresa – não integrante do contrato –, a Madison Biotech, para a qual se previa, inclusive, pagamento adiantado de mais de R$ 220 milhões.
A desconfiança de coisa errada se torna indício de corrupção, então, quando se descobre que a Madison Biotech tem sede em Cingapura e, conforme apuração in loco do jornal O Globo, tem um escritório de contabilidade em seu endereço. Um típico caso de empresa de fachada offshore. Cingapura é uma cidade-Estado, considerada um paraíso fiscal.
Luis Ricardo conversou sobre o imbróglio com o irmão deputado e da base do governo. Em março, ambos tiveram uma reunião presencial com Jair Bolsonaro e o informaram da fraude. O mesmo parlamentar – a muito custo, diga-se – foi quem confirmou que o presidente lhe disse, na ocasião, que o rolo seria “coisa do Ricardo Barros” e que, se mexesse nisso, iria “dar merda”.
No encontro, Bolsonaro garantiu que acionaria a Polícia Federal, mas não há nenhuma indicação de que isso ocorreu. Pelo contrário, parece permanecer omisso e o contrato continua vigente, não tendo adotado nenhuma providência. No fim do mesmo mês, Luis Ricardo foi ouvido pelo Ministério Público Federal (MPF) e relatou ter sofrido pressão atípica de superiores para acelerar a importação da Covaxin.
Um plot twist na CPI
Avanço de mais de três meses na linha do tempo. A CPI do Senado está em meio a debates sobre as “terraplanices” do governo no combate à pandemia, com cientistas renomados internacionalmente tendo de “debater” com políticos que se baseiam em fake news enviadas pelo WhatsApp.
Chega à CPI a informação sobre o depoimento ao MPF e os senadores decidem convocar os Miranda. Concursado na União desde 2011, Luis Ricardo surge como o servidor público exemplar, que não se verga a “jeitinhos” na administração. Seu irmão deputado, ao contrário, é uma figura com um passado bem contestável e uma folha corrida extensa com a Justiça, seja a comum ou a eleitoral. Bolsonarista “raiz” até o mês passado – basta conferir suas postagens nas redes sociais –, abriu o jogo sobre a conversa com o presidente de meses atrás e revelou o nome de Ricardo Barros à comissão. Mais: em entrevista no dia seguinte, deu a entender que tem provas, caso Bolsonaro o tente desmentir.
A fala dos Miranda na sexta-feira, 25, como sentenciou a senadora Simone Tebet (MDB-MS), foi um divisor de águas na CPI da Pandemia. A partir de agora, sai da pauta a apuração do negacionismo, que poderia gerar certa dificuldade de compreensão sobre um eventual dolo das autoridades envolvidas, inclusive o presidente; entra em questão a busca para saber qual era a disposição pela aprovação da compra em tempo recorde – inclusive com a atuação direta do Planalto – de um produto mais caro do que a média e o qual o governo menosprezou por tanto tempo: a vacina no braço de brasileiras e brasileiros.