Desde que assumiu a presidência, Jair Bolsonaro (PL) passou a questionar confiabilidade das urnas eletrônicas. As declarações que tentam colocar em xeque o sistema eleitoral brasileiro se intensificaram e, com a aproximação das eleições, elas têm ganhado mais espaço na mídia e, consequentemente, nas conversas cotidianas dos eleitores.

O primeiro grande embate bolsonarista contra a urna eletrônica foi a PEC do Voto Impresso (Proposta de Emenda à Constituição 135/19). Na Câmara Federal foram 229 votos favoráveis, 218 contrários e 1 abstenção. Como não atingiu o mínimo de 308 votos favoráveis, o texto será arquivado. A proposta rejeitada, de autoria da deputada Bia Kicis (PSL-DF), determinava a impressão de “cédulas físicas conferíveis pelo eleitor” independentemente do meio empregado para o registro dos votos em eleições, plebiscitos e referendos.

Após essa derrota, o presidente e seus apoiadores passaram a mirar o TSE com suas críticas ao sistema eleitoral. A mídia nacional e internacional, além dos analistas políticos, apontam que as declarações bolsonaristas contra a confiabilidade das urnas é uma forma de preparara o terreno para contestar o resultado das eleições, caso ele não seja o vencedor do pleito. 

O Congresso também acredita que o presidente poderá questionar os resultados. Uma pesquisa feita pelo  Congresso em Foco Análise, com 64 dos principais líderes políticos de Brasília apontou que  54,69% dos deputados e senadores entrevistados consideram altamente provável que Bolsonaro irá incitar no Brasil um movimento semelhante ao que fez Donald Trump nos Estados Unidos, ou seja, a contestação do resultado.

Nas campanhas eleitorais brasileiras é comum  que candidatos e partidos políticos proponham ações judiciais sobre os mais diversos casos, na grande maioria são relacionados à propaganda irregular, programa eleitoral, sobre propagação de fake news e afins. Contudo, nem sempre elas podem mudar o rumo ou o resultado da eleição.

Dyogo Crosara, advogado eleitoral | Foto: arquivo

O presidente Bolsonaro encontra na lei eleitoral brasileira formas de contestar os resultados. Entretanto, advogados eleitorais apontam que as previsões legais não permitem questionamentos sem indícios e provas de fraude. O advogado eleitoral Dyogo Crosara aponta que a legislação eleitoral de 1965 já prevê a contestação de resultado das eleições. Segundo ele, o questionamento sobre a apuração de votos é feita diretamente na sessão de votação. 

“A apuração dos votos é feita na sessão eleitoral, que é onde se imite o boletim da urna, e ele traz o resultado. Caso se constate qualquer irregularidade o pedido de impugnação precisa ser feito na própria sessão eleitoral. Essa é uma medida que está sobe pena de preclusão, ou seja, tem que ser feito no prazo legal. O prazo é até o encerramento da votação”, explica Dyogo Crosara.

Caso haja suspeita de alguma irregularidade ou fraude no processo eleitoral, partidos ou candidatos podem pedir a auditoria. Isso já aconteceu. Em 2014, após perder as eleições para Dilma Rousseff (PT), o concorrente, Aécio Neves e seu partido, o PSDB, levou ao TSE um pedido de auditoria especial. A justiça aceitou, mas o resultado nunca foi concluído, pois o partido alegou não ser possível auditar o processo por completo. O caso não chegou a se tornar uma ação judicial. 

Júlio Meirelles, advogado eleitoral | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

“ É possível levar ao TSE um pedido de auditoria, que em alguns casos  são deferidos naquela Corte. Trata-se de um procedimento administrativo e não tem como função precípua o questionamento da eleição ou poder de alterar seu resultado”, explica o advogado eleitoral, Júlio Meirelles. A auditoria de votos deve ser custeada em sua integridade pelo solicitante. 

Sobre a totalização de votos, que é feito na sede do TSE,  em Brasília, também pode haver questionamentos, previstos em lei. Os pedidos de verificação extraordinária após as eleições exigem como requisito a apresentação de fatos, indícios e circunstâncias que os justifiquem, caso contrário podem ser negados.

Alexandre Azevedo | Foto: TRE

O professor de Direito Eleitoral, Alexandre Azevedo, aponta que, embora haja previsão legal de contestação, não há um caso concreto já movido na justiça eleitoral. “Se constatar que houve fraude, a situação precisa ser avaliada. Pode ser  determina a anulação de votos da sessão onde teve irregularidades. Tem que se avaliar se a fraude tem potencial para mudar o resultado da eleição. Mas isso é tratado como hipótese. Como nunca ocorreu, não se tem um caso para examinar. Mesmo assim a justiça eleitoral tem suas regras para aplicar em cada tipo de caso”, argumenta.

Outro instrumento apontado por juristas que podem servir para a contestação de resultados das eleições é a chamada Ação de Impugnação de Mandato Eletivo, conhecida no meio jurídico como Aime. A legislação permite que seja usada para questionar o resultado caso haja o indício de fraude. A ação pode ser movida até 15 dias depois da diplomação dos candidatos vencedores no pleito. Mas, como nas outras regras possibilidades de contestação, essa exige apresentação de provas robustas. 

“Para questionamentos judiciais sob a alegação de fraude pode-se utilizar, em tese, a ação de impugnação de mandato eletivo, instrumento que requer um mínimo de prova da caracterização da fraude, não bastando meras alegações ou relatos testemunhais de supostas falhas nas urnas”, explica Júlio Meirelles.

O ponto de vista do advogado é compartilhado com seu colega de profissão Dyogo Crosara. “É possível que se faça uma Aime em um caso de erro na votação. Há previsão legal. Mas, como em todos outros caminhos, este exige que se tenha provas. É preciso ser procedência. Desde 1978 não temos nenhum caso procedência de qualquer impugnação por erro no processo de votação. A partir de 1998, com o  processo da urna eletrônica, não houve sequer o questionando”, pontua.

Alexandre Azevedo também avalia que é necessário ter indícios sólidos para se mover uma ação como a Aime.“Essa ação é no caso de corrupção ou fraude. Para entrar com ela é preciso ter indícios de prova ou começo de prova. Não se pode entrar com essa ação apenas com alegações de fraude. Tem que provar, ou seja, não se consegue contestar o resultado de uma eleição apenas com argumentos de ‘vozes da minha cabeça’. É necessário bem mais do que isso” diz.

 A legislação eleitoral brasileira previu isso ao estabelecer no artigo 66 da Lei nº 9.504/1997, a Lei das Eleições, que “partidos e coligações poderão fiscalizar todas as fases do processo de votação e apuração das eleições e o processamento eletrônico da totalização dos resultados”. Com a Reforma Eleitoral de 2021, as federações partidárias também foram habilitadas a realizar essa fiscalização e auditoria.

E não é só isso. A lei também permite que partidos políticos contratem empresas privadas de auditoria de sistemas, que podem receber os programas de computador utilizados pelo TSE e, em tempo real, os mesmos dados alimentadores do sistema oficial de apuração e totalização dos votos.

Entidades fiscalizadoras

Para as Eleições Gerais de 2022, a relação de entidades com legitimidade para fiscalizar não ficou limitada aos partidos, coligações e federações. De fato, a Resolução TSE nº 23.673/2021, que dispõe sobre os procedimentos de inspeção e auditoria do sistema eletrônico de votação, ampliou o rol dessas chamadas entidades fiscalizadoras, incluindo outras 15.

São igualmente considerados entidades fiscalizadoras das eleições diversos órgãos do Estado, como o Ministério Público, o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal (STF), a Controladoria-Geral da União (CGU), o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), o Tribunal de Contas da União (TCU), a Polícia Federal e as Forças Armadas.

Também estão incluídas nessa lista algumas entidades de classe, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Sociedade Brasileira de Computação (SBC), o Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea) e a Confederação Nacional da Indústria (CNI), junto com os demais integrantes do chamado “sistema S”, que engloba o Sesi e o Senai.

Desde que credenciados junto ao TSE, departamentos de Tecnologia da Informação de universidades podem ser entidades fiscalizadoras, além de entidades privadas brasileiras sem fins lucrativos, com notória atuação em fiscalização e transparência da gestão pública. Nesse último grupo, podem ser incluídas as diversas entidades privadas da sociedade civil que promovem a cidadania e a democracia.

Etapas de auditoria

O artigo 5º da Resolução TSE nº 23.673/2021 dispõe minuciosamente sobre os momentos em que a fiscalização eleitoral acontece e os mecanismos por meio dos quais ela se realiza. Assim, por exemplo, as entidades fiscalizadoras podem acompanhar o desenvolvimento dos programas eleitorais, com acesso garantido aos códigos-fonte do sistema eletrônico de votação um ano antes das eleições.

Elas também podem acompanhar a assinatura e a lacração dos sistemas eleitorais, verificar a integridade e participar de cada uma das mais de dez etapas de auditoria realizadas antes, durante e depois da votação, como o Teste de Integridade e os Testes de Autenticidade das urnas eletrônicas, entre outros.

Apuração x totalização

Antes de serem totalizados, os votos, primeiramente, precisam ser apurados. E isso ocorre na própria seção eleitoral, logo quando se encerra a votação, às 17h do dia da eleição. Nesse momento, o presidente da seção eleitoral encerra a coleta de votos e, em seguida, a urna eletrônica imprime o Boletim de Urna (BU).

O BU é um extrato dos votos que foram depositados para cada candidato e cada legenda, sem fazer nenhuma correspondência entre o eleitor e o voto. Ele também informa qual seção eleitoral o emitiu, qual urna e ainda o número de eleitores que compareceram e votaram.

São impressas cinco vias do BU, que são assinadas pelo presidente da seção eleitoral e por representantes ou fiscais dos partidos políticos presentes. As cinco vias têm destino certo: a primeira é afixada na porta da respectiva seção, para dar publicidade ao resultado; três são juntadas à ata da seção e encaminhadas ao respectivo cartório eleitoral; e a última via é entregue aos representantes ou fiscais dos partidos – caso seja necessário, é possível imprimir mais vias do BU.

O resultado da eleição surge a partir totalização dos votos, ou seja, a soma de cada BU, processo que também ocorre sem interferência humana, no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em Brasília. Para que os votos saiam da urna eletrônica e cheguem ao TSE, antes entra em cena a mídia de memória – uma espécie de disquete ou pen drive – que cada urna eletrônica possui.

Essas mídias eletrônicas registram de modo codificado todos os dados da votação. Como a urna não é ligada à internet e não possui nenhum sistema de transmissão de dados, é preciso retirar essa mídia de memória e levá-la a um local da zona eleitoral onde ela é aberta, tem a sua autenticidade verificada e, então, seus dados são transmitidos ao respectivo Tribunal Regional Eleitoral (TRE), que os retransmite ao TSE.

Esses dados só conseguem ser lidos nos equipamentos da Justiça Eleitoral que possuem as chaves para as diversas camadas de segurança, integrantes do sistema eletrônico de votação. Assim, depois de ser verificada na zona eleitoral, a autenticidade dos votos da urna eletrônica é checada mais uma vez no TSE, antes de serem incluídos na totalização.