Construída por missionário alemão, casa mais antiga de Goiânia completa 100 anos
08 novembro 2025 às 21h00

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Dona Aparecida tem 62 anos e, desde pequena, passa em frente à casa amarela todos os dias. “Eu moro na rua aqui do lado. Essa casa sempre foi antiga.” Questionada sobre o que sabe da casa, ela responde: “Nela morava um casal bem de idade. Ela foi construída por um alemão que se mudou para cá e se casou com uma brasileira. Acho que são os velhinhos que a gente via por aqui, mas eles morreram já faz tempo”.
Dona Aparecida diz que já entrou na casa: “Tem piso de madeira. São quatro cômodos. Tem dois quartos, sala, cozinha, banheiro, um quintal bom. E tá tudo antigo, continua conservado como era, como foi construído há 100 anos. A única coisa diferente que mudou foi a cor, mas eu acho que o piso continua o mesmo”.
A casa que a dona Aparecida tem tanto apreço fica no setor Campinas e em 2025 completa 100 anos. O leitor pode se perguntar: “como, se Goiânia tem apenas 92 anos?” Quando a casa foi erguida, em 1925, não havia Goiânia, mas já existia Campinas ou Campininha das Flores, um município fundado em 1810 e que nos anos 30 serviu como sede provisória do governo estadual para a construção de Goiânia. Campininha das Flores foi incorporada à nova capital de Goiás em 1933, tornando-se o primeiro bairro da cidade.

O imóvel, assim como o restante do bairro, ajudou a escrever a história da capital. A casa foi erguida na esquina da rua Senador Morais Filho (antiga rua Anápolis) com a Avenida Sergipe (antiga estrada para o Arraial do Barro Preto, hoje, Trindade). Por conta da localização, a casa amarela era ponto de parada dos fiéis durante os festejos do Divino Pai Eterno.
Em 1925, o alemão Karl Bartolomeu Steger construiu a casa porque iria se casar com a goiana Barbara da Silva Moraes. Não existem muitos documentos sobre a história de Karl em Goiânia, e também não se sabe por que ele resolveu se instalar às margens da estrada para o Arraial do Barro Preto (Trindade).
Sabe-se, entretanto, que o alemão chegou em Goiás, em 1922, à convite dos padres bávaros redentoristas que estavam em Campinas desde 1894, que ergueram um grande convento na área do atual Setor São José e sabe-se que, até 1940, ali se falava alemão. Nos anos vinte do século passado, a comunidade de Campininha contava com quatro padres e irmãos ou missionários. Historiadores acreditam que Karl Steger era um deles.
Hoje, do convento resta apenas a capelinha solitária na rua Padre Josef Wendel e a centenária casa amarela. Os edifícios são os as últimas testemunhas de uma história secular.

Karl e Bárbara se casaram na Igreja Matriz de Campinas. A celebração foi realizada pelos padres redentoristas. Logo depois, o casal mudou-se para a casa erguida pelo alemão onde moraram até o final da vida. Karl já era conhecido na vizinhança por ser um exímio sapateiro. Meses após o casamento,ele resolveu abrir, ali mesmo, em sua casa, a primeira sapataria de Goiânia. Um sucesso entre a população local.
Karl Steger prosperou. Há relatos de que o primeiro carro que chegou à Campinas foi dele. O alemão circulava de “automóvel” pela Campininha das Flores muito antes do prefeito da época, Licardino Ney, e antes mesmo do “carro dos padres”, veículo que pertencia à Igreja. Porém, algumas evidências indicam que Karl não era um homem de tantas posses: antigamente, quanto mais fosse abastado o dono da casa, maior era o beiral dos telhados, que se dividiam entre eira, beira e tribeira. No telhado da casa amarela, o beiral conta apenas com a eira.
A casa, modesta, feita de pau a pique, ainda guarda todas as características da arquitetura comum em residências rurais até o início do século passado. As telhas são originais, assim como as portas e as janelas. Toda estruturada casa é feita em madeira reforçada, desde as vigas de cobertura como os pilares e o baldrame ou alicerce.
O último morador da família Steger morou na casa mais antiga de Goiânia até o início dos anos 1990. Hoje, outra família habita o local. Uma senhora de 94 anos, que prefere não revelar o nome, conta que depois que a casa foi vendida, dois irmãos idosos passaram a morar ali. Eles são avessos à reportagem e o imóvel está sempre fechado. Eles aumentaram o muro e ainda colocaram uma cerca protetora por toda extensão.
No entanto, mesmo tendo renovado a pintura externa da casa amarela (originalmente era branca), não houve restauração interna. As vigas antigas de madeira continuam expostas e as paredes estão pichadas. Há mofo por toda base do imóvel e o beiral dá a impressão que vai desmoronar à qualquer momento.
A residência de Karl Steger narra a história de uma cidade que acabou virando o bairro de uma outra cidade. Após um século de existência, a casa é a única testemunha dessa saga que começou em 1925 e deu origem a uma das capitais mais modernas e pulsantes do país.

Mesmo diante de prédios cada vez mais modernos que, vorazmente, engolem a história da capital e arrasam casas e casarões icônicos por toda cidade, a residência do alemão sapateiro não é tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em Goiânia. Lutando bravamente contra a especulação imobiliária, casa também não está nos planos das secretarias de cultura do município ou estado.
A capital ainda não tem nem uma casa tombada pelo patrimônio histórico. “O centenário da modesta casa amarela talvez represente uma oportunidade para o poder público reconhecer a importância da preservação da memória da cidade”, diz o historiador e vice-presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG), Nilson Jaime.
“Eu acho que em geral, o poder público não toma essa iniciativa”, diz Nilson Jaime. “É preciso que alguma a sociedade civil, organizada em instituições culturais, se empenhem nisso e provoquem o poder público. Dificilmente os governos partem para o tombamento. Veja que na cidade de Goiás havia várias instituições como a Organização Vilaboense de Artes e Tradições (OVAT) e outras interessadas no tombamento da cidade, foi isso que mobilizou o poder público e tornou o município um patrimônio da humanidade”.
Nilson Jaime explica que, em geral, o tombamento dificulta a gestão do imóvel. “Se a casa é sua, você vende, mexe, derruba, reforma. Mas quando ela é tombada, é necessário uma autorização para fazer qualquer coisa. Então, em geral, os proprietários não se empenham para buscar o tombamento. As autoridades também, embora teoricamente reconheçam o valor histórico de determinados imóveis e bens, acabam adquirindo mais responsabilidades com o imóvel tombado.”
Nilson Jaime elenca outras casas cuja preservação é fundamental para manter história e cultura de Goiás, mas que não são tombadas:
- A sede do IHGG, um prédio de importância arquitetônica e histórica — construído em 1939, foi o primeiro primeiro imóvel do Setor Sul.
- A casa de Colemar Natal e Silva (1907 – 1996), reitor da Universidade Federal de Goiás, onde hoje funciona a Academia Goiana de Letras. Foi a primeira residência construída na nova capital.
- A casa na Avenida Araguaia com a Rua 13, que foi de Altamiro Ferreira Pacheco, um dos homens mais importantes para o Brasil por ter sido um dos principais responsáveis pela construção de Brasília. O Estado investiu R$ 500 mil em sua restauração através da Lei Goyazes, mas o edifício não é tombado.

