Conheça os marchands goianos, profissionais que cuidam de obras, artistas e colecionadores
17 março 2024 às 00h01
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Como se sabe, no Brasil e no mundo, o sucesso de um pintor ou escultor se deve, em larga medida, ao próprio talento, é claro, mas também àqueles que impulsionaram e impulsionam suas carreiras – mostrando e vendendo seus quadros e esculturas. São os marchands.
A tradução da palavra vinda do francês é “mercador”. Curiosamente, se trata da mesma origem etimológica de “marcher”, que significa caminhar. Antigamente, o trabalho de boa parte dos comerciantes também consistia em caminhar com as mercadorias: assim foi com os tropeiros, mascates e caixeiros-viajantes que fizeram parte do cotidiano das cidades goianas por séculos.
Até hoje, grande parte do trabalho de um marchand está vinculado a esse conceito, já que ele faz a obra “caminhar” do proprietário – artista, galeria ou proprietário – até o comprador. O marchand atual ampliou seu campo de atuação, deixou de ser apenas um olheiro que serve como ponte para a comunicação.
Hoje, um profissional de renome precisa ser altamente sofisticado, enquanto também passou a desempenhar funções de curadoria e consultoria, inclusive junto a galerias que querem se firmar melhor no mercado.
O artista, que tem quadros para vender, recorre ao marchand, que realiza a venda. Após esse processo, o marchand tira sua porcentagem do valor pelo seu trabalho e paga o artista. Geralmente, mas nem sempre, funciona no modelo de consignação, no qual o artista deixa uns três ou quatro quadros com o marchand; se ele vender, repassa uma porcentagem ao artista; se não vender, devolve a obra para o autor.
É possível até mesmo que um marchand ajude um artista a alavancar a própria carreira, mas para isso é preciso empenho para demonstrar o potencial do artista antes de começar a busca por visibilidade e comércio. Só é possível impor essa valorização no mercado quando o estilo, temática e valor do artista estão consolidados; muitas vezes, antes de uma galeria ou cliente comprar a ideia da obra, quem faz isso é o marchand.
O marchand é “apenas” aquele que vende quadros dos artistas? Muitas vezes, é mais do que isso. Ele, quando bom, divulga a obra do artista e, inclusive, a explica para o público comprador, que, no geral, é leigo. Esse profissional ajuda a criar um mercado para a obra de arte. Por isso, o Jornal Opção convidou três especialistas que atuam na área para entender melhor o contexto da profissão e do mercado de arte em Goiânia: Miguel Jorge, Px Silveira e Yuri Baiocchi.
Profissionais que atuam em suas próprias casas sempre existiram, inclusive na França, que nomeou os marchands. Entretanto, atualmente, a venda pode acontecer até mesmo por vias digitais, de modo que não é um pré-requisito a existência de acervo em casa. Ele não atua em lugares específicos. Diferentemente do galerista, não necessita obrigatoriamente de um espaço físico. A figura do marchand e do galerista não eram tão bem distinguidas no passado quanto são hoje, principalmente em Goiás.
Ainda assim, para Px Silveira, que já atuou como marchand e hoje é biógrafo, produtor cultural e curador residente do Instituto Biapó, “o presencial nunca vai deixar de ser o mais importante em se falando de arte. A arte se dissemina pelo ambiente no qual está inserida. Quadros precisam de paredes. É o seu habitat”, afirma Silveira.
Yuri Baiocchi é bacharelando em Antropologia, colecionador de arte, marchand, membro do conselho curador e da diretoria executiva da Fecigo, co-fundador do Ar’quicongo, pesquisador e colaborador do caderno de cultura do jornal Opção. Ele explica que o setor comercial é representado por artistas independentes, escritórios de arte, agentes, marchands e galerias.
Miguel Jorge integra os quadros de críticos de arte da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e da Associação Internacional de Críticos de Arte (Aica), ocupa a cadeira de número 8 na Academia Goiana de Letras e possui textos sobre artes visuais que estão inseridos no livro “Da Caverna ao Museu: Dicionário das Artes Plásticas em Goiás”, de Amaury Menezes.
Os três especialistas concordam que esse mercado artístico está aquecido e acreditam que as pessoas estão voltando a se interessar mais pelas artes. “Até porque sabemos que é uma coisa que não se desvaloriza, ao contrário, se valoriza cada vez mais”, afirmou Miguel Jorge.
De fato, a sua observação pode ser verificada ao longo da história, pois não faltam exemplos de artistas que eram quase anônimos durante suas carreiras e se tornaram grandes sucessos no fim da vida, ou mesmo após a morte. A mesma história se repetiu com inúmeros ícones, desde figuras internacionais, como Vincent van Gogh, Leonardo da Vinci, e Pablo Picasso até nomes nacionais, como Heitor Villa-Lobos, Carmen Miranda e Adoniran Barbosa – e mesmo entre os goianos, como Octo Marques.
Vai muito além da especulação saber que bons artistas serão reconhecidos com o passar do tempo, requer conhecimento teórico e técnico. Portanto, conforme as carreiras desses artistas passam a ser mais valorizadas, o mesmo ocorre com suas obras.
“Os artistas que mais vendem são aqueles que já tem um conceito firmado nas artes plásticas de Goiás. Posso afirmar que o artista mais procurado pelo mercado é o Siron Franco, um artista consagrado, moderno, atual e contemporâneo. Mas os compradores também buscam bastante por pinturas mais ingênuas e simples”, relata Miguel Jorge.
Os valores das obras podem variar muito, e de acordo com os especialistas, depende do posicionamento daquele artista no mercado de arte naquele determinado momento, da oferta e procura, e outros fatores como a superfície, se é uma tela, um papel, um pedaço maciço de madeira, ou até mesmo da técnica utilizada, se tem uma autoria autenticada, conhecimento sobre a procedência da obra, ou suas especificidades. Obviamente, como todos os setores, também sofre com o impacto da economia do país e sofreu dificuldades no período da pandemia.
“Quanto ao fato de uma obra ser barata ou cara, isto é extremamente relativo, uma vez que decorre da relação de quem está comprando e do que está sendo vendido. Não há Siron a preço módico, como também não há liquidação de coberturas na avenida Vieira Souto. Mesmo assim, quem estuda e entende do ramo ainda consegue boas oportunidades”, reflete Yuri Baiocchi.
Ele ainda compartilha que, na sua visão, o mercado teve uma entrada maciça de colecionadores jovens. “Pode ser o que está resultando nessa preferência por obras mais acessíveis e alinhadas a pautas sociais. Isso também acirra a disputa entre grandes e pequenas galerias”, explica Baiocchi.
Com o advento da modernidade, com a internet e a globalização, muitos artistas se tornaram autônomos, inclusive no processo de venda de suas obras. Ainda assim, as galerias não perdem força, como um espaço que valida artistas, expõe produções e conecta pessoas.
No Estado de Goiás, entre os especialistas entrevistados, três galerias se destacam como recomendação: Galeria Época, Galeria Potrich e Galeria Cerrado. A Galeria Cerrado, por exemplo, representa Siron Franco e apresenta suas obras ao público. Px Silveira fala, inclusive, que existem outras galerias, mas algumas estão com certa “crise de identidade”.
Mesmo com a internet, a figura do marchand não deixou de ser necessária. Sobretudo para trazer mais segurança na intermediação. Um profissional que entenda de arte e do mercado somente tem a contribuir com qualquer projeto artístico que seja. Como em todos os casos, a internet oferece vantagens e perigos. Há facilidade de acesso a leilões de arte, páginas pessoais de artistas e sites de galerias. Claro que, como em todo negócio, há os que são mais confiáveis do que outros.
“Tenho percebido que produtores culturais são mais bem remunerados do que os tradicionais marchands, uma vez que editais públicos de cultura têm servido não apenas para investir em artistas – novos e antigos – como também para impulsionar projetos que ampliem o alcance de sua arte, abrindo inclusive a interlocução com galerias. Por sua vez, estas investem nos artistas à medida que detêm a exclusividade de venda das suas obras, como já acontece com a produção de Marcelo Solá, Dalton Paula e Siron Franco – para citar alguns exemplos”, conta Baiocchi.
História goiana e referências consolidadas
Nos anos 80, o cenário artístico de Goiânia era pulsante, com cinemas e teatros abertos e com filas que se estendiam pelas calçadas. Sim, porque os cinemas não ficavam em shoppings, como hoje, eles eram lojas independentes espalhadas pela cidade. E o fomento às artes também poderia ser encontrado no Centro Municipal de Cultura, localizado no Bosque dos Buritis.
De acordo com artigo do doutor em Cultura Visual, Armando de Aguiar Guedes Coelho, intitulado “Casa Grande Galeria de Arte: A Engrenagem de um Mercado de Arte Emergente”, nas artes plásticas isso não foi diferente. Muitos marchands lucraram na busca por artistas e colecionadores locais. Ainda assim, em 1980 existiam menos de cinco galerias de arte na cidade de Goiânia. O artigo permite melhor contextualização para entender o cenário da arte na capital durante aquele período.
A primeira galeria de Goiânia foi criada pela pintora Maria Guilhermina, em 1963. Primeiro se chamou galeria Alba, depois se tornou a galeria Azul. Depois, em 1975, Washington Honorato Rodrigues criou a Arte Goiana Galeria. Igualmente marcantes no imaginário da geração goiana; a LBP Galeria foi fundada na avenida Goiás pelo jornalista pioneiro no colunismo social, Lourival Batista Pereira; e a Paulo Araújo Galeria funcionava dentro de uma grande livraria.
Sobre Paulo Araújo, Px Silveira disse que se tratava de um excelente comerciante, que tinha muito faro para as vendas. “Tanto é que dos livros se lançou por determinado tempo no mercado das artes visuais”, disse o especialista.
Por fim, completando a lista citada por Coelho, a Casa Grande Galeria, também fundada em 1975 por Célia Câmara. Nesse espaço eram realizadas exposições de nomes goianos e nacionais, por lá já passaram: Amaury Menezes, Cleber Gouveia, Siron Franco, DJ Oliveira, Walter Lewy, Cláudio Tozzi, Newton Resende, Ademir Martins e Marília Kranz.
Sobre a influência de Célia Câmara, Miguel Jorge explica que esse é um nome que não pode ser esquecido. “Ela abriu uma galeria e deixou à disposição dos artistas. Então os artistas deixavam os quadros na galeria para que ela mostrasse e comercializasse aquelas obras”, conta o escritor.
Yuri Baiocchi também fez questão de enfatizar que Célia Câmara era uma mulher que ia muito além do sobrenome e da família. “Ela é parte fundamental do processo histórico das artes visuais em Goiás, principalmente em sua consolidação, é urgente que se faça algo por sua memória”, disse. “Foi a maior mecenas que passou pelo Estado. Não a conheci por questões de data, meu nascimento é posterior ao seu falecimento. Entretanto, décadas depois ainda me deparo com seus rastros de tenacidade e reverência à arte produzida em Goiás”, comentou o jovem marchand.
Célia Câmara foi uma figura icônica no cenário cultural de Goiás, por ter dedicado grande parte de sua vida à promoção e apoio dos pintores e escultores goianos. E se tornou a marchand mais prestigiada da capital, com renome em todo o Brasil. Sua atuação abrangeu diversas frentes: desde a aquisição de obras por meio de compras até a organização de exposições e o incentivo contínuo aos artistas. Célia Câmara, inegavelmente, contribuiu para a afirmação da identidade artística goiana e para a valorização do patrimônio cultural da região.
“Célia Câmara popularizou as artes visuais em Goiás, com competência e potencialidade de comunicação. Tinha visão, tato e diretriz. Felizmente usou todas suas armas para o bem das artes”, compartilha Px Silveira.
Ele também recordou a fundadora da Galeria Época, ele descreveu “dona Edna” como uma pessoa fabulosa, inteligente e fina. Ele destaca que ela já teve o maior acervo da capital goiana. E durante muitos anos, a galeria foi responsável por inúmeras vendas de quadros.
Questionados a respeito da venda de obras goianas para outros estados, os especialistas falam sobre o início dessa iniciativa e seus reflexos hoje. Px Silveira conta que o escultor Veiga Valle iniciou esse movimento por fazer muitas obras sob encomendas para cidades fora de Goiás e por isso ele julga natural que o movimento continue.
Yuri Baiocchi complementa o raciocínio ao dizer que o mundo, no século XXI, está mais conectado do que nunca. “Ana Maria Pacheco e Lúcia Nogueira, por exemplo, têm grande e reconhecido mercado fora do país. Suas carreiras se desenvolveram na Inglaterra. Dalton Paula tem representação em Nova York (Alexander and Bonin) e Siron Franco exclusividade com a Almeida & Dale, uma das maiores da América Latina”, desenvolve Baiocchi.
Entre artistas que vendem para fora do estado de Goiás ou fora do país, Miguel Jorge afirma que o destaque continua com Siron Franco, mas hoje, Goiás tem mais nomes, como Omar Souto e Helena Vasconcelos. “Porque os compradores costumam procurar e pesquisar para saber qual é o artista plástico que está mais em evidência no momento para investir”, explica.
Outros nomes fortes de artistas goianos que vêm na memória dos especialistas são: Ana Maria Pacheco, Lúcia Nogueira, Mirian Inez da Silva, Antônio Poteiro, Marcelo Solá, Dalton Paula, Cléber Gouvêa, Iza Costa, DJ Oliveira, Amaury Menezes, Saída Cunha, Roos, Gustav Ritter, Nazareno Confaloni e Leonam Fleury. Entre os marchands, Yuri Baiocchi leva Marina Potrich, Maria Lúcia Félix Bufáiçal, Px Silveira, Eliane Miclos, Júlio Fratus e Marcos Caiado como exemplos positivos.
Com a modernização, novas artes, cores, formatos e estilos continuam a rodar pela cidade. Nas redes sociais, com pequenas exposições, vendas independentes, carisma e expressividade, já é possível conhecer também as novas gerações de artistas goianos, como os palhaços inusitados de Amir Maranhão Izaac.
As gerações de artistas mais jovens, muitas vezes estão mais inclinadas para as artes digitais ou design. E Goiás está bem representado nesse sentido, com as ilustrações fantasiosas de Lucas Martins, os cenários futuristas e coloridos de Gostovo e os quadrinhos jurássicos de Marcos Werner.
Além disso, o óleo sobre tela de Walter Pimentel participou, no ano passado, da mostra coletiva “Abrir Horizontes”. A exposição contou com curadoria tríplice assinada pelo artista Dalton Paula, pelo artista e curador independente Divino Sobral, e pelo professor de História da Arte e curador Paulo Duarte-Feitoza.
Afinal, quem compra arte?
Os especialistas concordam que só investe em arte quem tem um poder aquisitivo além do que é considerado necessário. Ainda assim, devido às obras terem valores monetários e emocionais variados para cada indivíduo, frequentemente, o valor afetivo se sobressai ao comercial. Então a aquisição de obras de arte não se atém fortemente a divisões sociais.
Questionados se existe alguma diferença entre homens e mulheres como compradores, Px Silveira afirmou que nota uma distinção pois as mulheres são mais expansivas e demonstram mais o que sentem em relação à arte. Yuri Baiocchi contextualizou que o perfil do colecionador de arte de Goiânia é tradicionalmente ligado à decoração, ainda que comece a mudar lentamente. Por esse mesmo motivo, o jovem acredita que arquitetos e decoradores são hoje os marchands da vez, pois são os que definem o senso estético modal que move o mercado.
O mercado de decoração, por sua vez, se encontra historicamente ligado às mulheres. Na visão de Baiocchi, hoje já não parece haver qualquer distância entre os gêneros no mercado consumidor de arte. “Assim, também por tradição, o nicho de compradores esteve mais associado ao público feminino. No Brasil, temos o exemplo de grandes coleções de mulheres que foram institucionalizadas em parte ou na totalidade – Ema Gordon Klabin, Eva Klabin, Olívia Guedes Penteado e outras. Em Goiás, podemos citar Célia Câmara, Violeta Bittar Carrara e Vânia Abrão”, destaca.
Além disso, a partir da comparação entre os relatos, fica nítido que na maioria dos casos, novos compradores não entendem amplamente do assunto. A maioria não tem o conhecimento teórico ou prático para avaliar uma obra, por isso costumam contar com a ajuda de marchands ou amigos que entendem mais do assunto. Px Silveira acredita que o comprador entende, sim, de arte; “ao menos do que lhe interessa e até onde lhe diz respeito”.
Nesse aspecto, Yuri Baiocchi destaca que “mesmo quem nunca recebeu essa ajuda profissional pode aprender, com muito mais tempo e depois de tropeços que lhe podem custar caro, mas tudo se aprende”. Assim como colecionadores de primeira geração, que poderiam não ter um conhecimento prévio, porém estudavam sobre arte e frequentavam exposições para compreender melhor o assunto, por exemplo. “É possível se orientar, no entanto ainda é muito válida uma referência profissional, principalmente para o mercado mais alto”, ressalta.
No fim da entrevista com Px Silveira, ele afirmou que o goianiense ama arte de qualquer época, técnica ou estilo. “Mesmo sem saber que ama a arte e mesmo sem querer saber mais sobre isso, se bem feita, a arte o libera de ser goianiense”.