Como Goiânia será prejudicada por desafetação de áreas públicas
10 maio 2014 às 11h06
COMPARTILHAR
O projeto do Executivo, que prevê a venda, permuta ou doação de 18 espaços municipais, deve ser votado na Câmara Municipal nesta semana; setores da sociedade são contra
Marcos Nunes Carreiro
Enviado pelo Executivo para a Câmara Municipal em dezembro do ano passado, o Projeto de Lei Complementar nº 50 (PL 50), prevê a desafetação de 18 áreas públicas. O projeto, como era de se esperar, causou polêmica. Após breve paralisação devido a um pedido de vistas do vereador Geovani Antônio (PSDB), o projeto deve voltar ao plenário para votação nesta semana.
É a segunda vez que a Prefeitura de Goiânia encaminha um projeto visando a desafetação de áreas públicas. A Lei Complementar nº 224, de 16 de janeiro de 2012 — que a partir da inclusão de novo inciso no artigo 112 da lei do Plano Diretor de Goiânia —, permitiu a venda de áreas propícias à construção de edifícios residenciais ou comerciais.
A questão foi alvo de ação civil pública, proposta pelo Ministério Público de Goiás (MP), que requereu judicialmente o bloqueio de 70 imóveis públicos desafetados. Por decisão liminar do Poder Judiciário, essa ação resultou, por exemplo, na suspensão da venda dos terrenos, localizados próximo ao Paço Municipal, Região Sul da capital. À época foi estabelecido um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para que as desafetações citadas não ocorressem da forma prevista anteriormente.
Assim, surgiu desse TAC, o PL 50 que tramita na Câmara. A polêmica está no fato de que, das 18 áreas com previsão de desafetação nesse novo projeto, a maior parte — 10 áreas — será destinada à venda. Ou seja, qualquer um poderá adquirir as áreas. Uma pequena fração será dada aos órgãos públicos — TCM, MPT e o próprio MP — e/ou permutas — caso da PUC-GO.
Outra questão trata dos usos primitivos das áreas. Como pode ser visto no quadro na próxima página, algumas áreas que serão vendidas estavam destinadas à instalação de equipamentos sociais. Por exemplo: os dois espaços no Portal do Sol eram para a construção de centros para desenvolvimento da criança, do adolescente e apoio ao idoso. As duas áreas no Residencial Humaitá eram para a construção de um posto de saúde e um Centro Municipal de Educação Infantil (Cmei).
O maior questionador do novo projeto do Executivo é o Instituto de Estudos Socioambientais (Iesa), da Universidade Federal de Goiás (UFG). O instituto produziu um relatório chamado “Impactos negativos da desafetação de áreas públicas no município de Goiânia”. Nesse relatório, são apontadas algumas questões. A primeira delas trata, segundo o Iesa, do objetivo das vendas.
O relatório afirma: “O pano de fundo para discussão do PL-50 passa pelo entendimento das demandas e prioridades de investimento do Governo Municipal de Goiânia. Esse ponto de partida implica em pensar o planejamento urbano em um horizonte temporal que ultrapasse o período de vigência dos mandatos para o Executivo e para o Legislativo municipal.” Nesse ponto, o documento utiliza dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que, em 2010, mostrou que Goiânia, em seus 630 bairros, havia 238.955 imóveis prediais particulares e 117.057 lotes particulares.
O total de imóveis prediais públicos, em 2010, era de 1.028, enquanto o de lotes públicos somava 10.360. O relatório afirma: “A distribuição dos lotes públicos no espaço intraurbano impressiona, uma vez que, segundo dados do Governo Municipal (Goiânia, 2012), não existiam lotes públicos em 189 bairros e em 63 bairros existia apenas 1 lote público. Já em outros 50 bairros existiam dois lotes públicos em cada bairro e em outros 46 bairros existiam apenas 3 lotes públicos cada bairro.”
O argumento do Iesa é que os lotes vagos particulares somam uma área maior e, de certa forma, mais importante do ponto de vista do gasto público. “A maior parte [dos lotes particulares] está localizada em regiões com infraestrutura urbana e serviços públicos consolidados e passíveis, a depender da vontade do Governo Municipal, da aplicação dos instrumentos previstos no Estatuto das Cidades, a exemplo do IPTU progressivo”, aponta o documento.
Isso porque, segundo os técnicos do instituto, baseando-se nos dados de 2010, há uma estimativa de que, em 2013, Goiânia alcançou uma população de aproximadamente 1 milhão e 400 mil habitantes. Esse número aponta uma densidade de 1.776,74 habitantes por km². Uma densidade alta, que, contudo, não indica uma cidade compacta, visto que a cidade cresce para fora dos locais mais habitados.
Dessa forma, tem-se o seguinte ponto: novos setores geram demanda por novos equipamentos públicos, como praças, Cmeis, escolas, postos de saúde. E esses equipamentos precisam de áreas públicas para serem construídos.
Uma cidade na contramão de outras no mundo
Além do relatório, os professores do Instituto de Estudos Socioambientais (Iesa), publicaram no site Necrópole Goiânia — página criada pelo professor da UFG Tadeu Arrais com o intuito de discutir a questão da desafetação de áreas — um posicionamento oficial. O documento na íntegra:
“Posicionamento dos professores da área de planejamento urbano e regional do Iesa, da UFG, em relação ao Projeto de Lei Complementar 50, que desafeta áreas públicas municipais de Goiânia:
“No momento em que várias cidades do planeta lutam para afirmar a função social da propriedade, o Governo Municipal simplesmente abre mão de um dos principais insumos de ordenamento do espaço urbano que é, justamente, a possibilidade de manejar estoques de terras para interesses coletivos. A leitura da justificativa do Projeto de Lei número 50, causa desconforto.
“Escreve o Prefeito: ‘Ademais, a presente proposta trata da desafetação de áreas que se encontram subutilizadas, estando passíveis, em tese, de alienação e de adensamento. Importante salientar que algumas são áreas cujas destinações relacionam-se a órgãos da Administração Pública Municipal, os quais se manifestaram favoráveis às desafetações em apreço, haja vista que não há previsão de utilização pelos mesmos, não implicando em prejuízo para a população’.
“Três apontamentos, antes de uma análise mais detalhada do PL 50, são necessários. O primeiro é que as áreas não estão subutilizadas. Área pública, por definição, não é subutilizada. A disposição do prefeito para subutilizar áreas deveria ser mirada nos mais de 100.000 lotes vagos do perímetro urbano. O segundo apontamento refere-se ao adensamento. O adensamento não deve ser justificativa para venda e/ou permuta de áreas públicas, uma vez que aumentará as demandas por investimentos públicos nas áreas desafetadas. O terceiro apontamento guarda relação com a manifestação favorável dos órgãos do Executivo Municipal. Seria ingenuidade supor que o secretariado municipal manifestasse uma opinião divergente daquela decretada pelo Paço Municipal. “Em ofício enviado no dia 15/10/2013, sobre duas áreas com dimensão total de 10.849,84 m², no Setor Universitário (destinação primitiva para sede da SME) e no Residencial Humaitá (destinação primitiva para CMEI), consta a seguinte resposta da então secretaria Neyde Aparecida da Silva para o Gabinete do Prefeito: ‘… informamos que a SME não tem projetos definidos para as áreas em questão, de modo que não há interesse na utilização desses espaços por esta Pasta’ (p.234 de 306). Interessante que no PL 50, no artigo que trata da finalidade dos recursos, consta a construção da sede da SME no Parque Lozandes. Que melhor lugar para sediar a SME que o Setor Leste Universitário? Como não existe demanda, agora, ou no futuro, para construção de um CMEI na Região Norte de Goiânia?
Ressalvas sobre o PL 50
“A primeira ressalva resulta da relação entre a política urbana municipal e a política de desafetação de áreas públicas municipais. A vinculação entre as duas políticas, cujo foco da segunda resulta na possibilidade de financiamento da primeira, revela a incapacidade do Governo Municipal em pensar uma política urbana comprometida com o futuro. O atraso está em compreender que a venda de ativos públicos constitui um meio eficaz de financiamento da política urbana.
“A segunda ressalva resulta da amplitude PL 50, com foco em 18 áreas públicas municipais localizadas em distintos pontos da cidade. A dimensão das áreas pode variar de 35.999,86 m² (Portal do Sol) a 1.957,19 m² (Jardim Colorado Sul), somando um total de 208.421,3 mil m². Essa estratégia política deixa pouco espaço para discussão, uma vez que as estratégias pontuais, a exemplo da desafetação das áreas localizadas no Parque Lozandes e no Residencial Humaitá, são dissolvidas em uma discussão global que tem por objetivo angariar maior apoio político dos segmentos corporativos da cidade.
“A terceira ressalva resulta da compreensão da natureza de uma política urbana que torna imprescindível a preservação dos estoques de áreas públicas. É, no mínimo, irônico que se venda áreas públicas em uma cidade cuja expansão horizontal gera demandas cotidianas por investimentos públicos em equipamentos de consumo coletivo. O parágrafo 3 do Art.2, do PL 50, descreve, laconicamente, a destinação dos recursos. Entre as 12 destinações descritas são apontadas, por exemplo, a construção de um viaduto na Avenida PL-2 com a BR-153, no Park Lozandes, justamente a área que será adensada pela desafetação. A equação é simples: o Governo Municipal dotou de valor imobiliário aquela área com investimentos públicos. O mesmo Governo Municipal pretende vender as áreas. Em seguida, utilizando-se dos recursos da venda, o Governo Municipal dotará as mesmas áreas de amenidades ambientais e sistemas de mobilidade. A valorização imobiliária para os grupos corporativos será fiada com os recursos da coletividade.
“Enfim, para além dos interesses partidários e corporativos e do epíteto de Goiânia Sustentável, temos a obrigação histórica de reafirmar nosso compromisso com o futuro da cidade, o que significa, nesse momento, negar com veemência o Projeto de Lei Número 50.”
UFG aponta falta de estudos para amparar PL 50
O professor PhD Tadeu Alencar Arrais, que coordena a discussão do tema no Iesa, diz que o posicionamento do Instituto não é político, mas técnico. “O Iesa vê alguns problemas em relação a esse assunto. Primeiro, é uma questão de princípio, pois não se dispõe de patrimônios públicos para financiar políticas urbanas. Ou seja, o projeto tem como matriz desafogar os investimentos da prefeitura. Além disso, estão ignorando o Plano Diretor, pois há sérias questões de adensamento que não estão sendo levadas em consideração”.
Na fala do professor, é possível identificar dois pontos de argumentação-chave. O primeiro ponto está no fato de que o PL 50 transforma todas as áreas a serem desafetadas em Projetos Urbanos Diferenciados (PDU-I). Arrais explica a questão: “Eu tenho, por exemplo, dois lotes em uma esquina A e outro em uma esquina B. Esse lote A está preso nos parâmetros urbanísticos desse setor, que não me permite verticalizar. Então, esse lote tem um valor ‘X’, pois não posso criar solo. Agora, se esse lote tivesse a possibilidade de criar solo o valor seria outro. O que a prefeitura fez? Transformou todas as áreas em PDU-I. Ou seja, quem comprar essas áreas poderá fazer praticamente o que quiser com elas.”
Isso, na visão do professor, contraria uma discussão — que classifica como histórica — do Plano Diretor no que concerne ao adensamento de determinadas regiões. Além disso, segundo ele, também há as questões pontuais de cada região. “Cito, por exemplo, a área no Jardim Brisas do Cerrado, lugar em que há funcionando um campo de várzea. Esse campo foi construído pela população em uma área que é pública em um setor que não tem opções de lazer. E esse local deverá ser tirado dessa comunidade a fim de ser destinado, teoricamente, ao Macambira-Anicuns”, diz.
O outro ponto-chave é que, de acordo com o professor Tadeu Arrais, não há estudos que amparem o projeto. “É preciso ter estudos que digam por que estão vendendo áreas no Portal do Sol e não no Vera Cruz, por exemplo. Por que estão vendendo áreas no Jardim Goiás e não no Guanabara. Ou seja, não há estudos que expliquem os motivos. Pelo menos, não há projetos que tenham sido apresentados à população”, declara.
Essa questão, segundo Arrais, dificultou o próprio posicionamento do Iesa. “Tivemos que produzir um estudo a partir do nada, tendo como base somente as áreas desafetadas. E foi nesse momento que os problemas começaram a aparecer, pois as áreas desafetadas têm usos primitivos que são necessários às comunidades. Por exemplo: a sede da SME, no Setor Universitário. Por que essa área, que é muito bem localizada e de fácil acesso para todos os professores, será permutada com a PUC?”.
Em relação a esse assunto, a líder do prefeito na Câmara Municipal, vereadora Célia Valadão (PMDB), vê a questão da seguinte forma: “O PL nasceu de um TAC [Termo de Ajustamento de Conduta] entre a prefeitura e o Ministério Público, e que apresenta possibilidades viáveis para a administração. Então, não tenho nada a comentar sobre esses estudos.”
Quando questionada sobre os aspectos positivos do projeto, a peemedebista diz que a venda das áreas trará benefícios para a população, uma vez que os recursos já têm destino certo. “Acredito que o chefe do Poder Executivo tem a prerrogativa de priorizar isso que é apresentado e esta Casa entende isso da mesma forma”, afirma.
A priori, o prefeito Paulo Garcia não fala sobre o assunto. A assessoria de imprensa da prefeitura informou que, até que o projeto passe por votação na Câmara — o que deverá ocorrer nesta semana —, não se pronunciará a respeito, mas apontou o chefe de gabinete do prefeito, Iram Saraiva Junior, como quem poderia dar declarações sobre o tema. A reportagem procurou Saraiva Junior várias vezes, mas não foi atendida nem ele deu retorno.
O projeto se encaminha para ser aprovado na Câmara — visto que a prefeitura tem maioria na casa —, mas nem todos os vereadores estão a favor. A presidente da Comissão de Habitação da Casa, vereadora Tatiana Lemos (PC do B), que não se coloca nem na situação nem na oposição, afirma que o projeto é ilegal e também apresentou um relatório contra.
Segundo ela, a legislação é clara ao dizer que áreas destinadas à construção de equipamentos públicos, como Cmeis e Postos de Saúde, não podem ser desafetadas. A não ser que sejam para fins de habitação de interesse social, ou para obras de infraestrutura na própria área, como viadutos. “A prefeitura está passando por cima da lei. Fora isso, muitos dos bairros que estão perdendo essas áreas não têm outros locais para instalar esses equipamentos sociais. E temos que pensar Goiânia no futuro. Afinal, daqui a 100 anos, haverá Goiânia”, declara ela.
Ao falar de lei, a vereadora se refere à Lei Complementar nº 78, de 8 de junho de 1999, que estabelece normas para o uso da alienação de bens municipais. A lei em questão diz em Parágrafo Único de seu art. 1º: “Fica, a partir da vigência desta Lei Complementar, expressamente vedada, para quaisquer fins, a desafetação de áreas públicas destinadas às praças, escolas, postos de saúde, hospitais, creches, centros de convivência, exceto para implantação de projetos de infraestrutura e projetos de habitação de interesse social, cujo processo legislativo se realizará em caráter de urgência.” É certo que a lei apontada pela vereadora foi alterada pela Lei Complementar nº188, de 30 de março de 2009, que, porém, manteve a redação deste parágrafo.
Tatiana diz que, atualmente, já há bairros que precisam de equipamentos sociais, mas não têm áreas disponíveis para a construção. “É o caso do Madre Germana 2. Existe o recurso federal para a construção de um Cmei lá, mas não tem área para essa construção. E não estão atentando para isso. Ou seja, a prefeitura está parecendo um filho que pegou a herança do pai e a está gastando. Não podemos deixar que um problema de gestão prejudique o futuro da nossa cidade”, diz.