Como a proposta do novo Plano Diretor pode afetar os goianienses
27 junho 2021 às 00h00
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Exclusivo para o Jornal Opção, um guia crítico sobre os principais pontos das diretrizes para o futuro da capital que serão votados na Câmara
Gerson Neto
Especial para o Jornal Opção
A partir do século 20, impulsionadas pelo processo de modernização da vida dos brasileiros e pela industrialização, as cidades foram gradualmente recebendo um fluxo migratório que foi se tornando cada vez mais intensivo e que, de certa forma, ainda não terminou. Com o crescimento da população urbana, muitas cidades passaram por um processo de reurbanização – a exemplo de Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador – e outras novas foram construídas, como foi o caso de Goiânia, Brasília e Belo Horizonte. Foi assim que o planejamento urbano se estabeleceu como uma necessidade da vida moderna nas cidades, para organizar o assentamento de uma população crescente no território de forma racional.
O crescimento das cidades e a valorização de seus terrenos urbanos estabelecem consigo os conflitos por território. Primeiramente, o conflito entre meio ambiente e as obras da cidade. Logo em seguida, os conflitos entre ricos e pobres, automóveis, transporte coletivo, ciclistas e pedestres, agitação comercial e calmaria residencial, grandes empreendimentos e seus vizinhos impactados por eles.
O Plano Diretor é a ferramenta que normatiza a organização do espaço nas cidades, estabelecendo diretrizes de um grande acordo social entre os vários atores políticos da cidade: moradores, mercado imobiliário, empresários, movimentos de luta por habitação, entidades sociais, motoristas, ciclistas, pedestres e outros, que sob a orientação de técnicos, urbanistas e planejadores urbanos, buscam “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem estar de seus habitantes”, de acordo com o Artigo 182 da Constituição Federal.
O Plano Diretor deve ser revisto a cada dez anos, conforme determina o Estatuto da Cidade, a Lei Federal 10.257/2001, que regulamenta o planejamento urbano. Goiânia já está mais de quatro anos atrasada na revisão de seu plano, que foi publicado em maio de 2007. A partir de 2017, a Prefeitura iniciou o processo de construção do diagnóstico, com estudos sobre a cidade para construir sua proposta em forma de projeto de Lei.
“Para a construção de um processo realmente participativo, é necessário longo esforço para a grupos reduzidos as bases do planejamento urbano e como ele interfere em seus bairros”
Durante o processo de construção da proposta, a Prefeitura não conseguiu executar bem uma das exigências legais estabelecidas pelo Estatuto das Cidades. Foram realizadas algumas audiências públicas, mas elas foram insuficientes para uma cidade grande como Goiânia. Dentro das audiências realizadas, as opiniões expressas pelos cidadãos não foram acolhidas no texto de lei, mostrando que, em quase todos esses casos, essas audiências públicas foram realizadas apenas para atender a exigência legal, burocraticamente.
Para a construção de um processo realmente participativo, é necessário um esforço longo de explicar pedagogicamente, para grupos reduzidos, as bases do planejamento urbano e como ele interfere em seus bairros. Explicar com honestidade as propostas que estão sendo discutidas para que as pessoas possam opinar com propriedade, liberdade e independência.
Em julho de 2019, a Prefeitura enviou para a Câmara seu projeto de lei revisando o Plano Diretor, que passou a ser chamado de PL 23/2019. A primeira parte do texto de lei enumera uma série de programas e políticas públicas de planejamento para várias pastas da estrutura municipal. Vemos aqui o amadurecimento da estrutura administrativa e a consolidação de políticas públicas importantes, que, apesar de não serem essenciais ao Plano Diretor, mostram um bom acúmulo de políticas públicas e a complexidade de uma estrutura administrativa com bom nível técnico.
A partir de seu artigo 77, o PL 23 passa a tratar do processo de planejamento. No Plano Diretor há quatro temas essenciais que ordenam a ocupação do solo urbano. São eles: perímetro urbano, densidade populacional, zoneamento territorial e meio ambiente.
Respeito ao meio ambiente precisa ser prioridade
A primeira leitura que deve ser feita na cidade é sobre o meio ambiente. A cidade se assenta sobre um meio físico que a antecede e deve respeitar suas características para manter os fluxos hidrológicos, geológicos e ecológicos característicos desse território. O desrespeito a esse ambiente original impõe à cidade uma série de problemas ambientais, como alagamentos, infestação por doenças, deslizamentos de terra, erosões, extinção de nascentes e cursos d’água, entre outros.
É por isso que perto de rios e nascentes é preciso ter áreas de proteção, parques e unidades de conservação. Quando esses territórios são ocupados por moradias, devem ser chácaras ou lotes grandes, o que quer dizer ter baixa densidade populacional e ocupadas por poucas áreas impermeabilizadas com concreto ou asfalto. Também deve-se respeitar o fluxo das águas subterrâneas, proibindo a construção de prédios perto de nascentes, pelo risco de obstruí-las, como temos visto acontecer em alguns parques de Goiânia.
O PL 23 estabelece dois tipos de áreas de proteção ambiental: as Áreas de Restrição Ambiental Urbana (ARAU) e as Áreas de Ocupação Sustentável (AOS). Nas primeiras, predominam as áreas de preservação permanente (APPs), que são as faixas de 50 metros a partir das margens dos rios e córregos e de 100 metros a partir das margens dos rios Meia Ponte, Anicuns e João Leite e de nascentes ou olhos d’água perenes. Muitas dessas nascentes não estão nos mapas da prefeitura, esse é um problema que precisa ser corrigido antes da aprovação do Plano Diretor porque sua presença altera o uso do solo nas suas regiões de influência, como por exemplo, no Setor Jaó. O PL 23 regulamenta outras definições, como as encostas dos morros, represas e lagos.
As AOS são as faixas de 100 metros a partir das APPs, onde deve haver um controle de densidade criando uma região de transição até as áreas de maior adensamento. Um ponto muito ruim do PL 23 é que, atendendo a um debate feito em 2007 e um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) firmado com o Ministério Público, a meu ver de forma equivocada, ele considera como direito adquirido pelos imóveis as regras de adensamento estabelecidas em loteamentos feitos antes da vigência do Plano Diretor de 2007, desobrigando a observação das regras das AOS.
No Plano Diretor de 2007, essas áreas se chamavam Unidades de Uso Sustentável. Podemos considerar o direito de construir segundo os planos diretores anteriores nesses terrenos como direito adquirido, mas apenas para imóveis construídos legalmente antes da vigência do atual Plano Diretor. Isso não quer dizer que, para novas edificações ou reformas realizadas a partir deste Plano Diretor as regras tenham que ficar congeladas, ou mais estranho, que apliquemos as regras alienígenas do Adensamento Básico atual sem nenhum critério a não ser o de não seguir a limitação atual de respeito ao meio ambiente.
Por fim, observando os anexos do PL 23, fica evidente uma urgente necessidade de revisão dos mapas ambientais, principalmente na observação de nascentes dispersas pela cidade e dos cursos d’água já drenados que apesar de não constarem nos mapas existem, escondidos sob o concreto da cidade. Esses vales continuam compondo a rede de drenagem e provocam alagamentos todos os anos. Um grande exemplo é o Córrego Buritis que emerge de sua prisão nas grandes chuvas na Avenida 87, na Avenida Anhanguera, na Avenida Oeste. Por isso, eles precisam estar mapeados e ter suas áreas de restrição ambiental respeitadas.
Proposta de aumento na área urbana gera alerta
A segunda característica principal do planejamento urbano é o perímetro urbano, que é constituído por uma linha imaginária que delimita a área urbana em reação às áreas rurais. O PL 23 mantém o mesmo perímetro do Plano Diretor anterior de 2007, apenas corrigindo alguns pequenos erros cometidos nos limites anteriores que, por exemplo, deixaram fragmentos de alguns bairros fora do perímetro urbano. Isso refletiu no aumento de cerca de 6% no perímetro.
Porém, na Câmara, um grupo de vereadores fez uma emenda reduzindo de forma radical as áreas rurais previstas no PL 23, aumentando a área urbana da cidade em 27,37%. Essa proposta é absurda, uma vez que perto de um terço da cidade já se constitui de vazios urbanos que estão sendo especulados e ficam vazios esperando que seus preços subam. Com essa proposta de emenda, os vazios urbanos dentro do perímetro somariam mais de 50% do território da cidade. A expansão urbana é um instrumento de planejamento do qual se lança mão quando há expectativa de crescimento populacional que justifique a abertura de novos loteamentos.
Além de Goiânia já ter muitos terrenos vazios, a expectativa de crescimento é baixa, segundo dados do IBGE. Esses dados são prejudicados pela não realização do Censo em 2020, mas as projeções estatísticas indicam que a taxa de crescimento populacional de Goiânia diminuirá ano a ano. Em 2010, no último Censo, a taxa era de 2,25% ao ano e a estimativa é de que cairá a 0,88% em 2040. A expectativa de população para a Goiânia de 2040 é de 1.829.665 habitantes, segundo o estudo de demanda feito pela Rede Metropolitana de Transporte Coletivo de Goiânia (RMTC) em 2013.
A análise é antiga, mas não está defasada, já que não fizemos a contagem censitária em 2020. Considerando que a população estimada para 2020 em Goiânia pelo IBGE é de 1.536.097 habitantes, esse crescimento de 293.568 habitantes não seria suficiente sequer para ocupar os vazios urbanos já existentes, muito menos para justificar áreas de expansão urbana. Isso quer dizer que já temos áreas urbanas em Goiânia que nunca serão ocupadas.
O diagnóstico que podemos fazer é de que a cidade de Goiânia já tem lotes vazios demais e que é preciso ocupá-los, pois eles encarecem os custos de infraestrutura da cidade, inviabilizando sua manutenção e condenando seu futuro.
Mapas em anexos da proposta causam alerta
A terceira característica que o Plano Diretor define é o zoneamento urbano. O zoneamento é um desenho que os planejadores fazem sobre o mapa da cidade, indicando quais regiões serão estratégicas para as várias atividades econômicas – quais serão as ruas de comércio, onde poderão ser colocadas indústrias de algo grau de incomodidade, quais os locais para as construções destinadas a grandes eventos, onde será permitido maior adensamento, com a construção de edifícios altos, quais as regiões que precisam ser protegidas por causa da sua natureza ambiental etc.
Esse planejamento é feito com base na infraestrutura da cidade, capacidade das redes de esgotos, abastecimento de água potável, energia elétrica e outros e também com base no Plano de Mobilidade Urbana.
O princípio geral de ocupação da cidade, segundo o PL 23, é a “otimização do uso e ocupação do solo ao longo dos Eixos de Desenvolvimento estruturados no transporte público coletivo” (Art. 21, II). O objetivo é que grande parte da população futura tenha sua residência próxima às linhas de transporte coletivo mais intensivas, a partir da estrutura do transporte coletivo da cidade.
O PL 23 chega a fazer uma lista dessas avenidas no seu artigo 116, listando 12 corredores. O Anexo XIV – Modelo Espacial do PL 23 traz um mapa dos Eixos de Desenvolvimento e nele aparecem duas características estranhas. Muitas ruas que constam no mapa como eixos de desenvolvimento não estão listadas no artigo 116 da lei. Outra característica é o fato de os corredores saírem das ruas que lhes dão nome e parecer ganhar vida, serpenteando pela cidade.
Nos Anexos da proposta estão delimitadas muitas áreas das quais o texto não fala, o que reforça a sensação de estranhamento, já que fazem parte da lei e serão votados pela Câmara. Mas como um vereador pede o destaque de uma linha no mapa para votação em separado?
O problema é que, nessa andança trôpega, bairros e regiões onde não há um transporte coletivo robusto são transformados em áreas adensáveis e muitas ruas estreitas viram eixos de desenvolvimento, contrariando a premissa de planejamento proposta no Plano. Esse é um dos pontos mais delicados da proposta enviada pela Prefeitura à Câmara e também de difícil percepção, a menos que se mergulhe nos mais íntimos detalhes da proposta e seus mapas.
Isso leva a crer que o planejamento econômico da cidade não está dado claramente no texto de lei, mas escondido nos mapas anexos. O Anexo XVII traz um mapa onde se delimitam as Áreas de Programas Especiais. São áreas com políticas especiais de uso do solo de interesse urbanístico, social, ambiental ou econômico. Ali estão delimitadas muitas áreas das quais o texto de lei não fala, o que reforça a sensação de estranhamento, já que os Anexos fazem parte da lei e serão votados pela Câmara Municipal. Mas como um vereador pede o destaque de uma linha no mapa para votação em separado?
Imposto progressivo ainda é “lei que não pega”
A quarta característica do planejamento urbano é o controle da densidade populacional, que quer dizer o número de pessoas que ocupam determinada área da cidade. Tecnicamente a densidade é definida pelo tamanho dos lotes, pela altura das construções e pelo número de pessoas que vão habitar ou frequentar aquele local. Nesse item está o ponto mais complicado da proposta apresentada pela Prefeitura de Goiânia porque dela depende a disputa pelo mercado da construção civil, que se dá de forma sub-reptícia, concedendo vantagens para os produtos das grandes construtoras sobre as outras opções de imóveis à venda no mercado, especialmente os imóveis usados e as casas construídas por centenas de pequenas construtoras.
O mercado imobiliário é limitado por condições estabelecidas pelas dinâmicas social e econômica. Quando uma família compra um imóvel para morar, ela o faz por necessidade de mais espaço, pela mudança em seu padrão de vida, pela busca de maior segurança, entre outros muitos fatores.
Seria estranho pensar que uma família pudesse manter mais do que apenas um imóvel como moradia: cada família só precisa de um domicílio. Evidentemente, existe outro tipo de comprador de imóveis, o que o faz para investir e explorar os proventos do aluguel. Ainda assim, o sucesso desse investimento depende da existência de um déficit habitacional para que hajam famílias interessadas em alugar esse imóvel; o fim acaba sendo o mesmo, o uso como residência de cada imóvel por uma única família. Portanto, a destinação dos imóveis – e podemos dizer do mercado imobiliário – não é determinada pelo investimento da incorporadora, construtora ou da imobiliária que vai comercializá-lo, mas por essa demanda socioeconômica.
Pois esse mercado limitado está em disputa. Entre as opções de compra ou aluguel, encontram-se apartamentos ou casas, novos ou usados. Disputando esse mercado estão grandes construtoras de prédios de apartamentos, pequenas e médias empresas de engenharia construtoras de casas, conjuntos de geminados, pequenos prédios comunitários e também um grande número de imóveis usados: apartamentos e casas por todos os bairros.
Quando uma regra urbanística privilegia um desses concorrentes, ela cria um desequilíbrio de mercado, um protecionismo econômico. Nesse caso, o poder público provoca uma concorrência desleal que gera uma crise na cidade e um desequilíbrio que se refletirá em caos urbano.
Goiânia vive esse desequilíbrio há muitos anos. Ele foi responsável pela superdensidade nos bairros Setor Bueno, Setor Oeste e Jardim Goiás, que hoje são marcados como áreas de desaceleração de densidade exatamente por essa ocupação excessiva no passado. Por outro lado, outros bairros mais antigos, onde predominam os imóveis usados, convivem com muitas unidades abandonadas. Isso acontece por variados motivos, mas um ambiente marcado pela baixa competitividade desses imóveis diante das facilidades e incentivos conquistados pelas grandes incorporadoras – por meio de fortes lobbies mantidos junto ao poder público – para seus grandes empreendimentos é determinante para esse abandono, ainda que essa verdade esteja invisível para os proprietários desses imóveis.
A elevação dos preços dos terrenos nos últimos 15 anos é em parte um dos grandes problemas que prejudicam o desenvolvimento da cidade com justiça social e o acesso universal ao lote urbano. É necessário que a Prefeitura aja para, com planejamento, instituir políticas públicas que reduzam o preço dos lotes.
Esse instrumento é o Imposto Progressivo no Tempo, previsto no Estatuto das Cidades, que obriga a destinação ou edificação do imóvel mediante notificação do proprietário para que construa na área. Caso não o faça, a alíquota do imposto sobe progressivamente e, após cinco anos, o imóvel poderá ser desapropriado com pagamento em títulos da dívida pública. Esse dispositivo está no Estatuto das Cidades e tem objetivo de possibilitar o controle da especulação. Ele também está regulamentado no Plano Diretor de Goiânia desde a lei 171/2007, mas as notificações nunca foram enviadas aos proprietários especuladores.
Questões técnicas
Voltando ao estudo dos mecanismos do PL 23, uma consultoria contratada pela Câmara Municipal propôs a mudança radical dos parâmetros apresentados pela Prefeitura. Esse é o parâmetro que mais interessa ao mercado imobiliário, e gerou muita desconfiança por parte de toda a sociedade. O PL 23 institui seis tipos de unidades territoriais: as ARAUs e AOSs, das quais já falamos, as APACs – Área de Patrimônio Cultural, que compreendem os entornos dos imóveis tombados, as Áreas Adensáveis que estão em torno dos eixos de desenvolvimento a uma distância de 350 metros de cada lado das vias, as Áreas de Desaceleração de Densidade que são fragmentos onde a densidade já está grande demais prejudicando a infraestrutura da cidade e as Áreas de Adensamento Básico que inclui todos os outros lotes e que seguem uma regra geral.
A proposta feita pela Prefeitura, em 2017, era usar como parâmetro urbanístico principal a fração ideal, conceituada no artigo 126 do PL 23, como a proporção em relação à área do solo de cada unidade autônoma. Isso quer dizer que, quanto maior o terreno, mais unidades habitacionais, ou economias como diz o PL 23, ele poderá abrigar obedecendo uma fração definida pela lei de acordo com a Unidade Territorial.
Com isso, o Artigo 174 fica sendo o coração do Plano Diretor. Segundo ele, nas regiões de Áreas Adensáveis, o limite máximo seria de uma economia por fração de 15 m² do terreno quando os prédios forem de um ou dois dormitórios, podendo chegar a uma economia por fração de 10 m² quando usada a Transferência do Direito de Construir – TDC (um instrumento que pode aumentar o tamanho dos prédios). No caso de apartamentos com três ou mais dormitórios, essa fração ideal passaria a 20 m², podendo subir para 15 m² com o uso de TDC, sem limite de altura mínima fora dessas características. Isso quer dizer que, em um terreno de mil metros quadrados, como quando há o remembramento de apenas dois ou três lotes básicos dos bairros centrais de Goiânia, seria possível fazer subir um prédio de até 66 andares com um apartamento de mais de 3 quartos por andar. Obviamente, uma densidade elevadíssima.
Há um consenso entre urbanistas de que a densidade ideal de uma cidade estaria por volta de 250 a 500 habitantes por hectare. Fazendo uma conta simples, esses parâmetros propostos pela Prefeitura provocariam uma densidade de até 2.210 habitantes por hectare nessa áreas adensáveis.
A proposta do PL 23 para as Áreas de Desaceleração de Densidade, que, segundo o Anexo XIV, são três fragmentos dos Setores Bueno, Oeste e Jardim Goiás que já estão muito adensados, é de uma fração ideal de 30 m² de unidade imobiliária por economia. Isso resultaria em um incremento em densidade para essas áreas já exageradamente adensadas de 736 habitantes por hectare, o que obviamente não desacelera.
Nas áreas ambientais, a Prefeitura também propõe índices de fração ideal extremamente baixos de 180 m² tanto para ARAUs quanto para AOS. A fração ideal para o Adensamento Básico que compreende toda a cidade é de 90 metros quadrados, o que resultaria em uma densidade final, caso totalmente ocupada, no limite máximo de 245 habitantes por hectare, um número próximo do ideal para a média da cidade.
Na Câmara de Goiânia, foi apresentada uma emenda propondo mudar esse parâmetro urbanístico da fração ideal para o índice de aproveitamento, definido por um multiplicador aplicado à área do terreno que determina quanto de solo criado se pode edificar nos vários pavimentos a serem construídos. É preciso ressaltar que outro parâmetro urbanístico impede a construção de edificações nos recuos laterais, frontal e de fundo dos terrenos, ou seja, um multiplicador de duas vezes não quer dizer dois andares, mas três.
Esse parâmetro traz equilíbrio para evitar prédios muito altos; por outro lado, não faz o controle do impacto das moradias sobre a infraestrutura como faz o critério da fração ideal. Por esse motivo, seria mais adequado a sobreposição dos dois critérios. Além destes outros parâmetros são colocados pelo PL 23, mas não detalharemos nesse texto.
Abertura para arranha-céus
As Unidades Territoriais definidas pelo PL 23 foram mantidas na proposta do índice de aproveitamento. Os índices propostos por esse novo Artigo 174 são de 1,5 vezes para uso habitacional e 2,0 vezes para uso institucional nas AOS e ARAU; entre 1,5 vezes e 3.0 vezes para as Áreas de Adensamento Básico, 5,0 vezes para as Áreas de Desaceleração de Densidade e 6,0 vezes para as Áreas Adensáveis. Precisamos lembrar que a proposta inclui uma série de dispositivos que possibilitam a subida de prédios enormes, pois não considera áreas comuns e garagens dos prédios na conta e acrescenta mais 100% das áreas destinadas a fruição pública ao potencial construtivo do imóvel. Esses e outros dispositivos tornam difícil prever que tipo de imóveis podem sair da proposta.
Além desses temas, o PL 23 trata de outros muito importantes, como as regras de implantação de novos loteamentos, os Projetos Diferenciados de Urbanização, os instrumentos de gestão que dispõem sobre o pagamento de outorgas, transferência do direito de construir, regulamenta as Operações Urbanas Consorciadas e institui o Imposto Progressivo no Tempo, todos instrumentos já previstos pelo Estatuto das Cidades e que são obrigações de regulamentação para os Planos Diretores das cidades. Muitos instrumentos, todos de grande impacto sobre o planejamento futuro da cidade, ficaram para ser definidos por lei específica, transformando esse Plano Diretor, que já está enfrentando muitas dificuldades para ser apreciado, em uma novela de anos. Instrumentos importantes ficarão sem regulamentação mesmo com sua aprovação.
Proposta, como está, ameaça qualidade de vida
O projeto de desenvolvimento apresentado no PL 23 para Goiânia privilegia os grandes empreendimentos e abandona o projeto de cidade de bairros aconchegantes, com casas isoladas construídas em lotes espaçosos onde há espaço para plantar árvores, fazer uma horta, brincar com as crianças, fazer confraternizações, onde as famílias se sentam nas calçadas no fim de tarde para conversar com os vizinhos.
Muitos moradores buscam a manutenção desses espaços de vida tranquila por lhes proporcionar mais qualidade de vida. Por isso, alguns bairros se mobilizaram fortemente para evitar os ataques da especulação imobiliária e das grandes construtoras, que buscam ganhar o máximo lucro no menor tempo possível com a comercialização de imóveis construídos com aproveitamento máximo dos terrenos. A cidade está em disputa e muitas pessoas não sabem e não percebem. A participação popular é uma exigência legal para o planejamento urbano, mas é também um obstáculo para o avanço das pretensões dos atores que buscam mercantilizar a cidade.
“Plano Diretor é um acordo orientador, mas a cidade é construída no dia a dia. Precisamos aumentar a participação popular na construção desse acordo”
O poder público precisa estar atento a essa realidade e compreendê-la. O Planejamento Urbano, não é estático, é uma prática. O Plano Diretor é um acordo orientador, mas a cidade é construída no dia a dia. Precisamos aumentar a participação popular na construção desse acordo e no acompanhamento do desenvolvimento da cidade para que a qualidade de vida do cidadão comum seja protegida e o interesse comum contemplado. Também é importante a reconstrução do órgão de planejamento da cidade, o Instituto de Planejamento Municipal (Iplan), desmontado em 1999, para que ele se torne um órgão pensante de políticas públicas e responda às transformações constantes e cotidianas da cidade.
Conhecer o Plano Diretor é essencial para fazer um debate qualificado e garantir o melhor acordo, com as escolhas certas, para que a cidade possa ser cada vez mais bela, justa, viva, sustentável, saudável e feliz.
Gerson Neto é comunicador e especialista em Planejamento Urbano e Ambiental.