A falta que um bom rótulo faz na vida de quem tem alergia alimentar
24 maio 2014 às 11h31
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Campanha cobra do governo informações mais claras em produtos industrializados sobre a presença de substâncias que podem até mesmo matar caso ingeridas por pessoas vulneráveis
Elder Dias
Advogada, mestre e doutora em Direito Constitucional e… padeira. A última função não é algo que Maria Cecília Cury Chaddad faça como tradição de família, ou mesmo um hobby predileto. É uma necessidade, embora não financeira. Rafael, seu filho caçula, sofre de alergia alimentar múltipla. Como milhares de crianças pelo Brasil, ele está sujeito a ser afetado com sintomas de sérias consequências caso venha a ingerir substâncias tóxicas para si, mas que à maioria das pessoas seriam totalmente inofensivas — pelo contrário, para estas são parte natural da nutrição, como leite, ovos e soja.
Pois leite, ovos e soja estão entre os oito itens reconhecidos por causarem reações alérgicas com mais frequência — os demais são trigo, amendoim, peixes, crustáceos (como o camarão) e oleaginosas em geral. O drama por que passam as famílias de crianças alérgicas é mais complexo do que parece. Não basta simplesmente retirar os alimentos “do mal”: é preciso investigar se eles não acabam fazendo parte, como ingredientes, de outros produtos tidos à primeira vista como insuspeitos. O leite, por exemplo, está inserido em boa parte dos alimentos que compõem o café da manhã: pães, biscoitos, bolos, cremes, requeijão, achocolatados, além do próprio leite. A soja é ainda mais onipresente: pães, queijos (como o conhecido tofu, de origem japonesa), leite, salgadinhos, shakes, patês, cremes e muitos mais podem conter algum subproduto do grão, como a proteína lecitina.
Pelo que informou este segundo parágrafo e voltando ao primeiro, já se entende um pouco mais claramente por que Cecília Cury teve de se incumbir de um novo ofício. É que é mais seguro, com certeza, produzir a própria alimentação do filho alérgico. Mas ainda não é suficiente: na reação alérgica, uma mínima dose da substância indutora pode causar consequências por vezes imprevisíveis ao organismo de quem lhe seja vulnerável. Portanto, não é questão de quantidade, mas de presença. Um exemplo banal: uma criança alérgica à proteína do leite. Em uma festa, o garoto pega uma fatia de presunto na mesa de frios. Até aí parece estar tudo “ok”. Só que não. Ocorre que na mesma mesa também está presente, logo ao lado, uma bandeja cortada com pedaços de mussarela. Nada impede que o queijo em algum momento (no corte com a mesma faca, no transporte até a mesa ou na manipulação do bufê) tenha tido algum contato com aquela fatia de presunto.
Esta é a questão: bastam traços do agente alergênico, mesmo que invisíveis a olho nu, para provocar efeitos danosos. A situação por vezes é dramática e causa graves constrangimentos. No mês passado, a garota Maria Júlia Ferreira dos Santos, de 4 anos, foi impedida de ser matriculada em uma escola municipal de Catalão, no sudeste do Estado, por sofrer de uma forma grave de alergia alimentar múltipla. A mãe de Júlia conseguiu, depois, a matrícula em escola particular. Não sem antes ficar evidente o despreparo do poder público para lidar com a situação extraordinária que se apresentava.
E ainda não é o fim. Se há um despreparo contingencial, por assim dizer, há outro, institucional: a rotulagem dos produtos à venda nos supermercados é um grande dificultador da vida das mães e pais. E aí volta ao centro a figura da “padeira” Cecília Cury. Ela é uma das líderes do movimento Põe no Rótulo, que quer o básico e óbvio: que as embalagens dos produtos industrializados no Brasil e à disposição nas gôndolas facilitem sua vida em vez de impor mais barreiras.
Qualquer um que já tenha feito compras e se atentado para o fato sabe: há etapas extremamente ingratas ao buscar saber a composição dos produtos, seja qual for a finalidade a que se propõe o curioso. A primeira dificuldade será encontrar as informações, geralmente relegadas a uma área minúscula para não “estragar” o visual da embalagem. Podem tanto vir em forma de um discretíssimo quadro como também em linhas que convidam ao uso de lupa. Com um pouco mais de má sorte, você talvez encontre os necessários dados alimentícios atrás da dobra do pacote.
Via-crúcis
Cumprida essa parte, a via-crúcis tem seguimento, e o passo subsequente dela é interpretar o que está descrito ali. E o leitor então se depara, na parte do “contém”, com expressões como “caseinato de sódio” ou “soro albuminado”. A mãe que colocar o produto no carrinho de compras terá sorte se o filho não for sensível a leite (caseinato) ou a ovo (albumina).
Conforme lembra Cecília Cury, a rotulagem destacada de alérgenos é regra em países desenvolvidos como EUA, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Japão, além da União Europeia e do Chile. Entretanto, a América do Sul, no geral, não despertou para a importância de tornar a informação mais acessível.
Movida pelo caso familiar, a advogada fez o doutorado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) tendo a rotulagem dos alimentos como tema de sua tese. Viu que o problema passa, em grande parte, por uma questão de (má) comunicação, tanto gráfica como institucional. Além de madrugar para fazer o pão de Rafael, ela passou a ser assídua usuária dos números 0800 do serviço de atendimento ao consumidor (SAC) das indústrias, para tirar dúvidas sobre ingredientes dos alimentos e o processo de fabricação. Acabou por se surpreender negativamente: “Há muita falta de conhecimento sobre o que pode acontecer com o manuseio do equipamento para produção de diferentes produtos. Nesse caso (de uso comum para alimentos diversos), o ideal seria dizer na embalagem que pode haver traços de alguma substância alérgena.”
O que a campanha Põe no Rótulo propõe é isto: informação clara e visível. Que leite seja leite, e não “caseinato”; que ovo seja ovo, e não “albumina”. E que essa informação venha precedida da palavra “alérgicos” em destaque, de forma bastante visível. Com esse intuito, a mobilização ganhou mídia — especialmente as redes sociais — e foi apoiada por dezenas de celebridades, como os cantores Daniel, Chico César e Paula Toller, os atores Mateus Solano, Reynaldo Gianecchini e Marcos Palmeira, os esportistas Zico, Lucas e Edu Dracena, o cartunista Ziraldo e a humorista Mônica Iozzi.
Um longo caminho para vencer a alergia. E que poderia ser mais curto
Júlio César foi um garoto muito esperado. A professora universitária Valdirene Oliveira e o supervisor de vendas César Nascimento faziam há tempos um tratamento para conseguir o primogênito. No início de 2009, a boa notícia: Valdirene estava grávida. Com as devidas precauções, Júlio nasceu em setembro daquele ano. E o menino ensinaria muito mais a seus pais do que qualquer outro filho.
Dizem, com razão, que as lições mais proveitosas da vida são geralmente as mais dolorosas. Júlio César tem alergia alimentar múltipla e isso tem sido um desafio para o casal. Mas também motivo de envolvimento e aprendizado. Os sintomas apareceram ainda cedo, desde os 6 meses de idade, quando o garoto era ainda apenas amamentado por Valdirene. Mas um primeiro diagnóstico, ainda parcial, se deu somente com pouco mais de 1 ano. Só após completar o segundo aniversário é que veio o parecer definitivo do distúrbio. “O diagnóstico dele foi tardio. Ele já era sintomático, mas os médicos que o assistiam na época não conseguiram diagnosticar”, resume a mãe.
Olhando para trás, Valdirene percebe o drama da desinformação. Nesses termos, ela é uma privilegiada: muitas mães e pais estão bem longe de obter o conhecimento necessário para poder encaminhar a situação de seu filho. “Hoje vejo quantos riscos corrermos. E se ele desenvolvesse uma reação mais severa diante de tanta exposição? Todo alérgico corre esse perigo”, reflete a professora, doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Goiás (UFG).
Foi buscando informações com pessoas que passaram por casos semelhantes, acessando buscadores na internet e redes sociais que ela aprendeu a se ajudar a ajudar Júlio César. No caminho, encontrou a Associação de Portadores de Alergia Alimentar do Estado de Goiás (Apaago) e o núcleo inicial que criou a campanha Põe no Rótulo.
Médicos
Uma das principais descobertas de Valdirene foi a de que os médicos não têm facilidade para descobrir. “Muitos profissionais não sabem diagnosticar. Alergia, embora tenha protocolo, causa reações diferentes em cada pessoa. Muitos não dão importância para as variações”, relata. “Já ouvi médico falar ‘alergia a lactose’, o que não existe. Leigo pode até falar assim, mas médico não.”
Valdirene considera que o “divisor de águas” foi o encontro com a atual gastroenterologista de Júlio César, à qual ela chegou por meio do contato com as mães do grupo da Apaago. “No caso, você tem de acertar com dois médico: alergista e gastro. E um pediatra que não confunda sua cabeça”, conta.
Hoje a situação de Júlio melhora a cada dia. Ele já venceu muitas alergias. Cada conquista é muito celebrada. “Hoje ele já pode comer muita coisa que antes não podia. A alergia dele provavelmente era apenas ao leite de vaca, mas, como demorou a ser descoberta, acabou por se estender a outros alimentos. É como se o sistema imunológico ficasse tão ameaçado que começa a atacar até quem não é inimigo.”
No início do tratamento, a dieta era bastante restritiva — chamada “dieta branca”, apenas com arroz e frango em toda e qualquer refeição, até ele se estabilizar e recuperar o intestino. Júlio tomava uma fórmula de aminoácidos. “Às vezes dávamos um passo e recuávamos, pois ainda não era hora de testar certos alimentos.” Hoje, o casal comemora com o filho o retorno do trigo, do ovo e da soja à dieta. “E isso faz toda a diferença”, ressalta Valdirene.
Campanha faz Anvisa apressar rotulagem mais clara
A movimentação de pais e mães — destas principalmente, porque, em geral, são elas mais diretamente envolvidas com a alimentação das crianças — por uma política mais sensata de rotulagem dos produtos pelas indústrias está provocando resultados efetivos. A visibilidade da campanha Põe no Rótulo promoveu uma reunião com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que anunciou que vai discutir de fato a regulamentação da obrigatoriedade de declaração de alimentos alergênicos na rotulagem dos produtos. Em comunicado na quarta-feira, 21, a agência disse que “a iniciativa atende demandas da sociedade”. Esclarecendo que “a rotulagem de alimentos em geral é um tema discutido no âmbito do Mercosul”, mas, tendo em vista não haver previsão de término do tema em curto prazo, a diretoria da Anvisa deliberou por uma regulamentação unilateral.
A proposta do órgão do governo agradou ao movimento. A ideia da Anvisa consiste em colocar em destaque, na embalagem de cada produto, um quadro de bordas pretas, fundo branco e letras pretas. O texto se abriria com a palavra “Alérgicos” em destaque e, abaixo, conteria, em português claro, os avisos necessários a mães e pais sobre o produto, tais como “pode conter traços de leite” ou “contém proteína de ovo”. “É algo que, quando efetivado, vai trazer muitos benefícios e mudar a vida de muita gente para melhor”, avalia a advogada Maria Cecília Cury Chaddad, líder da campanha Põe no Rótulo.
No entender da Anvisa esse novo quadro, acrescentado às informações já existentes na rotulagem, vão permitir que os consumidores com alergia alimentar façam “escolhas conscientes” e evitem o consumo de alimentos que podem causar reações adversas. A agência promete abrir nas próximas semanas a consulta pública que colherá subsídios da sociedade para regulamentar o tema.