Chespirito, o homem que descobriu como fazer um continente inteiro sorrir
29 novembro 2014 às 10h11
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A morte do criador de Chaves e Chapolin Colorado faz refletir sobre uma nova forma de universalizar e (talvez) eternizar uma obra: a TV como plataforma da arte
Elder Dias
Piadas e mortes são boas companheiras umas das outras, não raramente. Parece algo inconcebível e até escandaloso, mas depois de um choque inicial, as primeiras geralmente costumam fazer companhia às últimas — os arredores dos velórios são prova disso. A frase pronta “seria cômico se não fosse trágico” tem, então, seu pé na verdade.
Quando, no fim da tarde da sexta-feira, 28, a morte do mexicano Roberto Gómez Bolaños foi anunciada, pensaram que era outra piada envolvendo Chespirito. O ícone da comédia latino-americana já tinha sido alvo de inúmeros alarmes falsos da mesma notícia, mas desta vez não era mais uma pegadinha: havia procedência. O ator, roteirista e diretor morreu em sua casa, na turística Cancún, onde ultimamente ficava na cama praticamente 24 horas por dia, em um estado de saúde já decadente. Era casado com Florinda Meza, a Dona Florinda, mãe de Kiko — interpretado por Carlos Villagrán e do qual havia sido namorada antes de atar relacionamento com Bolaños.
Chespirito criou um mundo inteiro dentro de um cortiço. A famosa vila do seriado comportava sentimentos universais que seus personagens despejavam em quem assistia a cada capítulo. Era um discurso fácil, leve, por vezes erroneamente confundido com raso. Se fosse assim, não duraria 40 anos. A profundidade do personagem que morava dentro do barril envolvia algo do inconsciente dos habitantes de uma América Latina sofrida. Em poucos anos, a turma da vila se afamava em toda a terra que falava espanhol do México abaixo.
No Brasil, entretanto, a fama só veio um pouco mais tarde. E o sucesso de Chaves por aqui talvez tenha ocorrido com uma ajuda do acaso. É que muitos dos trocadilhos do seriado funcionam basicamente por questões linguísticas — daí o grande sucesso no mundo hispânico. Nos países de outras línguas menos aparentadas com o espanhol, a produção da Televisa não pegou de forma tão contundente.
No Brasil, o que certamente selou o êxito do programa foi o fato de ter caído nas mãos de Silvio Santos e de seu SBT e não de qualquer outra emissora. Se, por exemplo, a Rede Globo tivesse negociado os direitos de “Chaves” e “Chapolin”, seu destino seria quase que certamente exibições nas manhãs de meio de semana ou de sábado. E por um curto espaço de tempo. Na rede do apresentador, as criações de Chespirito reinam já por mais de três décadas. Os episódios vagam sem horário fixo e repetidos à exaustão, mas nem por isso deixam de ter um público cativo.
Curioso é que, mesmo na emissora de Silvio, houve muita resistência a inicial ao programa, que em princípio não foi aprovado pelos diretores — e nem pelo próprio dono. A produção só foi adquirida por estar em meio a um pacotão da Televisa, juntamente com vários outros itens, e por ser de baixo custo. Mesmo assim, ficou na geladeira por algum tempo.
O sucesso latente, porém, não demorou a desabrochar. Afinal, também no Brasil batem corações latino-americanos. E geração após geração, espectadores foram fidelizados pela atração, a ponto de seus personagens terem virados memes nas redes sociais e estampas de camisetas cult — principalmente Seu Madruga, encarnado por Ramón Valdés (falecido em 1988, vítima de câncer).
Pela figura simbólica que representava, a morte de Chespirito parou o México. Nos sites dos principais jornais mexicanos, inclusive os de esportes, a capa era a mesma: Bolaños e seus personagens, Chaves e seus vizinhos, Chapolin e seus adversários. A rede Televisa, uma espécie de Globo mexicana e do qual ele era praticamente um estandarte, dedicou-lhe toda a programação a partir do momento de sua morte — à semelhança do que ocorre também no Brasil com personalidades de extrema repercussão. O presidente do México, Enrique Peña Nieto, postou em sua conta no Twitter, imediatamente após saber da morte do criador de Chaves: “Lamento profundamente o falecimento de dom Roberto Gómez Bolaños, o Chespirito. Minhas condolências a sua família. O México perdeu um ícone, cujo trabalho transcendeu gerações e fronteiras.”
Não há exagero em fazer uma ponte entre Charles Chaplin e Chespirito — alcunha equivalente a “pequeno Shakespeare”, dada pelo cineasta Agustín P. Delgado, em referência a sua pequena estatura (1,60 metro) e em alusão também ao enorme talento. Assim como Chico Anysio deve ser reverenciado no Brasil como um grande criador de memoráveis personagens (mais de 160), Bolaños representa algo nesses moldes — em maior escala, pelo alcance que conseguiu obter — para o mundo hispânico.
Fragância de ser humano
O Carlitos de Chaplin era uma espécie de anti-herói, um palhaço que dispersava densidade dentro de um humor que resvalava a melancolia. Chaves e Chapolin seguiam, de certa forma, essa receita: “El Chavo del Ocho”, o garoto do barril era o retrato irônico de uma infância perdida, mas que não se rendia; e o herói trapalhão vestido de vermelho com antenas e uma marreta satirizava o modelo que os vizinhos norte-americanos sempre tentaram impor, como instrumentação acessória de ideologia, principalmente no auge da guerra fria. Em Chaves e Chapolin, bem como em todas as criações de Chespirito, não havia nada de messiânico: tudo exalava sempre a fragrância mais genuína do ser humano.
Por ser tão próxima da realidade, a vila de Chaves guarda um contraponto com o ideal que se busca na cinematografia: cenários perfeitos, limpos, assépticos. No universo do protagonista se desenvolvia o caos, a ponto de ele ter preferência por viver dentro de um barril e sobreviver de migalhas e ingênuas malandragens; tinha um amiguinho mimado (Kiko) com uma mãe que era viúva histérica (Dona Florinda) e que vivia um romance água-com-açúcar com um professor canastrão (Jirafales); no outro barraco, um eterno desempregado (Seu Madruga), também viúvo, que criava uma menina esperta e geniosa (Chiquinha) e arranjava todas as formas para burlar o pagamento do aluguel ao dono do cortiço (Senhor Barriga); a última casa era o espaço do imponderável, o mágico e o assustador, na pele da Srta. Clotilde, a Bruxa do 71.
Um mundo ao mesmo tempo fantástico e tangível, em que habitavam os absurdos, mas também as esperanças. Chespirito conseguiu traduzir, num set precário de um estúdio de TV, as emoções, ironias e dramas que envolvem toda pessoa.
Gerar comoção é questão de “timing”; imortalizar-se, questão de tempo
No México de Chespirito, há um culto para Santa Muerte, uma figura sagrada que, segundo estudiosos, deriva do sincretismo entre a religiosidade católica e crenças da era pré-colombiana. De modo geral, a morte e seus símbolos são encarados como algo mais presente e menos evitado na cultura do país — “Festa no Céu”, uma animação produzida por Guillermo del Toro, mostrou isso nas telas de cinema recentemente.
Em cada localidade, existem muitas celebridades cujas mortes causam alguma consternação. Mas são raras as que provocam uma tristeza gigantesca e coletiva. Assim como a vida, a morte também vira uma questão de “timing”. O Brasil da década de 80 tinha três personalidades que atingiriam de modo bastante agudo o sentimento nacional caso passassem por alguma fatalidade: Pelé, o “rei” do futebol; Roberto Carlos, também com status de “rei”, mas da música; e Renato Aragão, o líder dos “Trapalhões”.
E, dessa forma, cada tempo venera seus ícones. Quando a morte coincide com o auge, alcança-se o cúmulo da comoção. Maior exemplo não houve do que a tragédia com Ayrton Senna, em 1994, dando fim à única esperança de reconhecimento internacional que o País parecia ter — acentuada pelo fato de o piloto sempre fazer questão de levar consigo a bandeira brasileira. Dois anos depois, um desastre aéreo daria mostras de que o efêmero também se imortaliza: os garotos da banda Mamonas Assassinas morriam quando seu primeiro e único disco os tinha inserido em uma vida de superstars da noite para o dia. Talvez um ano mais tarde e a notícia consternaria, mas sem o mesmo apelo. Eis uma questão de “timing”.
A situação preocupante em que a saúde de Pelé foi colocada na semana passada pode servir de reflexão. Maior ídolo do esporte brasileiro e o compatriota mais lembrado em todo o planeta, ele teve uma repercussão de seu quadro de enfermidade muito maior no exterior. O próprio perfil oficial de Pelé no microblog Twitter demonstrou esse viés: na noite de quinta-feira, 27, quando a preocupação com o ex-jogador alcançava níveis consideráveis, nele foram publicadas quatro notas informativas — e positivas — sobre sua saúde. Todas em inglês. O caso seria bem diverso se o enfermo fosse Neymar, pelo momento que vive o craque brasileiro, como salvador único da Pátria de chuteiras.
Assim como Pelé, Chespirito já havia deixado seu ofício há algum tempo. Vivia do passado e, como o ídolo do futebol, era reverenciado por multidões. O que os une e os pode tornar clássicos? O talento, talvez seja essa a resposta. A obra de William Shakespeare sobrevive à morte física do autor séculos e séculos depois; o mesmo ocorre com tantos outros. O trabalho de quem criou a partir do século 20 ainda passará pela prova de fogo do tempo: não dá para ter ideia de como será, no século 25 — se a humanidade conseguir a façanha de subsistir até lá —, a visão que terão dos fenômenos contemporâneos: o futebol de Pelé, a pilotagem de Senna e os golpes de Mohamed Ali serão considerados uma arte e, se sim, uma arte inigualável? O humor de Chaplin terá ainda grande amplitude? Os Beatles representarão, para tantas gerações à frente, algo como o que Mozart, Bach e Beethoven significam nos tempos atuais? Chespirito será eternizado na pele de Chaves, o pivete do bem, e de Chapolin, o herói de meia-tigela? Só o longo passar dos anos poderá — e irá — responder. Se o “timing” tem o condão de ajudar alguém a ser incensado em determinado período, é o tempo que o faz pertencer ao patamar dos gênios imortais.