Cientistas se preocupam com multiplicação de receitas, fórmulas e gurus que prometem curas milagrosas para o coronavírus

Pânico gerado pelo coronavírus revela má formação emocional, segundo filósofo | Foto: Reprodução / EBC

Com o coronavírus, alastrou-se o pânico; e nele, charlatães encontram um terreno fértil de clientes desesperados por curas e vacinas. Com falsos médicos vendendo remédios milagrosos e religiões que praticam o oposto do recomendado por organizações de saúde, o mercado das promessas parece ser o único que cresce na crise econômica precipitada pela pandemia. Entretanto, a origem da inclinação para ser enganado pode ser mais profunda do que a mera capacidade de convencimento de vigaristas. 

Cristiano Novaes de Rezende é professor da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Goiás (UFG) e atua na área da Teoria do Conhecimento. O filósofo enumera habilidades que as pessoas devem procurar reconhecer para discernir entre charlatães e especialistas legítimos: “Verifique se a pessoa tem formação universitária e se sua pesquisa está ligada a uma universidade. Neste momento, as universidades são o local onde o rigor científico revela sua importância social mais concreta. Especialmente as universidades públicas, pois as pesquisas destas estão livres do interesse financeiro”.

A ciência bem feita, entretanto, é lenta. Mesmo com todos os esforços voltados para o enfrentamento do novo coronavírus, tratamentos não se mostraram eficientes e uma vacina não é esperada em menos de alguns anos. Com a previsão do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, de que “em abril o sistema de saúde entrará em colapso”, escolher acreditar em uma solução alternativa torna-se uma tentação, e a escolha pelo caminho mais árduo, orientada pelo conhecimento, pode parecer uma opção ingrata. 

Filosofia da Ciência

Karl Popper, um dos principais filósofos da ciência, formulou o princípio da falseabilidade, pelo qual uma hipótese precisa ser passível de ser provada errada para ser científica | Foto: Reprodução / Wikimedia Commons

Muitos métodos de cura propagados como “medicina alternativa” são, na realidade, pseudociência. Isto é, se dizem baseados em fatos científicos, mas, na realidade, não resultam da investigação científica. A saber: para ser considerado científico, o conhecimento deve resultar de hipóteses testáveis, replicáveis e falseáveis. Uma vez que um cientista elabora a explicação para um fenômeno, seus pares testam-na em busca de evidências de que a hipótese está errada. Se a hipótese não resistir ao teste, diz-se que foi falseada. Se se mostrar à prova de falhas, torna-se mais forte.

O filósofo Cristiano Novaes de Rezende acrescentou ao conceito de ciência: “A ciência não se apoia exclusivamente nem mesmo no êxito dos resultados, pois uma teoria falsa pode ter bons resultados. Exemplo: o modelo astronômico de Ptolomeu (geocêntrico, em que tem a Terra se localiza no centro do sistema solar) era falso, mas conseguia prever corretamente a posição dos planetas. A diferença entre ciência e pseudociência, portanto, não está no fato de a ciência funcionar e a pseudociência não funcionar, já que a pseudociência pode funcionar por acidente. A diferença está na metodologia que explica como e porque aquela teoria funciona.”

Sobre Galileu Galilei e o conceito de ciência moderna, o filósofo escreveu o artigo “Notas Sobre os Instrumentos Científicos em Galileu”, em que traça um paralelo entre a concepção histórica de ciência e a qualidade do programa científico do governo atual. Sobre a razão de pessoas escolherem crer em soluções incertas – incapazes de dar satisfação a respeito do método pelo qual encontraram seus resultados –, Cristiano Novaes disse que tem a impressão de que a noção de critério está corrompida: 

“A palavra critério vem de Krités, que significa juiz, em grego, e a palavra krités vem de Krísis, que significa julgamento. Crise é julgamento. No julgamento, você suspende seu juízo e adota critérios para decidir. As pessoas seguem os hábitos e inclinação emocional e subjetiva ao invés de enfrentar a crise. A opção das pessoas por soluções pouco críticas revela a dificuldade emocional de lidar com uma situação de crise, de julgamento.”

Portanto, para Cristiano Novaes de Rezende, os problemas de saúde pública que emergem nesta crise do coronavírus também estão ligados a uma falta de pensamento crítico e de capacidade de chegar a uma conclusão a partir de critérios claros. O antídoto para este caos de soluções milagrosas estaria no estudo do conhecimento: “A filosofia é o conhecimento que estimula o pensamento crítico, capaz de responder pelos critérios usados no julgamento”.

Garrafadas milagrosas

Segundo o artigo 283 do Código Penal, anunciar cura por meio secreto ou infalível é crime praticado contra a saúde pública, com pena de detenção até um ano e multa. Um farmacêutico preso em flagrante no dia 18 de março, na zona rural de Álvares Machado (SP) é um representante dessa sorte de charlatão. Ele anunciava em vídeos nas redes sociais sua fórmula “anticoronavírus”, que blindava as pessoas contra a contaminação e fortalecia a imunidade. O produto, na realidade, era um frasco com 30, 60 ou 90 cápsulas de um complexo vitamínico vendido por até R$ 55.

A presidente do Conselho Regional de Farmácia do Estado de Goiás (CRF-GO), Lorena Baía, afirmou que a associação de farmacêuticos tem se preocupado com a proliferação de receitas caseiras e comercialização de curas milagrosas. “Além de charlatães que buscam lucro, também são nocivas receitas de chás milagrosos dispersados em redes sociais e até mesmo de álcool em gel. Não há garantia da eficiência desses produtos, que podem ser muito perigosos”. 

Conselho de farmacêuticos apela para que população não consuma remédios sem recomendação profissional | Foto: Reprodução

Lorena Baía também relata que fármacos com fosfato de oseltamivir, princípio ativo de antigripais, têm sido consumidos como remédios contra a Covid-19 sem indicação de efeito benéfico para esta doença. “Para pessoas infectadas com o novo coronavírus, em caso de dúvida do que se pode ou não usar, temos em toda farmácia um profissional farmacêutico que pode orientar o paciente”, recomenda Lorena Baía. 

Sobre o que pode ser feito a respeito de charlatães que vendem medicamentos milagrosos, Lorena Baía disse: “Existem vários tipos de crime em que estas pessoas podem incorrer, além do exercício ilegal da farmácia. Os crimes podem ser denunciados à Delegacia do Consumidor, ao Procon,  ao CRF ou à Vigilância Sanitária”. O Conselho Regional de Farmácia do Estado de Goiás disponibiliza em seu site informativos de orientação sobre como lidar com o coronavírus.

Cura pela fé

Lee Man-hee ajoelhou-se e pediu desculpas ao povo coreano após epidemia no país | Foto: Reprodução

Entretanto, nem todos os engodos são tão simples de se identificar – alguns nem mesmo se pretendem ser enganadores, apenas não seguem métodos cientificamente comprovados para tratamento da infecção. Um exemplo de curandeiro que situa-se nesta zona cinzenta é o fundador da seita Shincheonji, Lee Man-hee, que aparentemente acreditava que os poderes espirituais de seu culto poderiam curar a epidemia. 

O contato dos sacerdotes com infectados foi responsável por 30 de 53 novos casos do coronavírus na cidade de Daegu, na Coreia do Sul, até o dia 20 de fevereiro. Lee Man-hee e 12 outros membros da seita atualmente respondem por homicídio. Todos os 230 mil membros da Shincheonji foram entrevistados pelas autoridades coreanas e 9 mil apresentaram sintomas da doença Covid-19. 

O caso da distante Coreia do Sul pode fazer parecer óbvio o problema de criar aglomerações em meio à maior pandemia dos últimos tempos. Mas o problema também existe no Brasil, onde a Justiça negou o pedido do Ministério Público do Rio de Janeiro que buscava suspender cultos de pastores evangélicos. As sedes das megaigrejas têm capacidade para até 15 mil pessoas e seus líderes também afirmam que a fé protegerá os fiéis, segundo apurou a Agência Pública.

Qualquer vacina serve

O Conselho Regional de Medicina Veterinária afirmou a respeito da fake news acerca de uma vacina contra coronavírus: “Muitos médicos veterinários têm recebido solicitações de tutores de animais querendo adquirir a vacina utilizada em cães para prevenir algumas doenças, entre elas a coronavirose canina. 

O parvovírus canino (CPV-2) e o coronavírus canino (CCoV-II) são considerados os principais patógenos responsáveis pela gastroenterite viral aguda em cães filhotes, causando, em alguns casos, a alta morbidade e mortalidade, sobretudo em função da capacidade de potencializar infecções por outros agentes. 

O CRMV-GO destaca que essa vacina é apenas para animais e não humanos. E não se trata de imunização contra o Covid-19. É outro vírus que causa diarreia nos animais. Ainda não há evidência científica de que cães e gatos possam transmitir o novo coronavírus para humanos ou outros animais. O Conselho diz que o correto é procurar o médico veterinário e siguir os protocolos vacinais em seu pet.

Medicina alternativa

Sessão de Reiki consiste na sobreposição de mãos em órgãos doentes | Foto: Reprodução / MS

Um exemplo de tratamento pseudocientífico é o Reiki. Os praticantes desta forma de terapia oriental usam principalmente a imposição de mãos para supostamente transferir “energia vital universal” (ki) para o paciente. Uma praticante de Reiki ouvida pelo Jornal Opção afirmou crer ser capaz de proporcionar um “tratamento alternativo complementar” ao novo coronavírus. A entusiasta da terapia fez cursos e oficinas para aprender a técnica e explica: “O fundamento é a transferência e reorganização de energias nas partes doentes do corpo. No caso da Covid-19, os pulmões”. 

É importante ressaltar que a praticante de Reiki não vende seus serviços de curandeirismo e nem os oferece ao público geral – apenas afirmou que pretende usar a terapia caso algum familiar contraia a doença. A entrevistada também não descartou a importância da medicina tradicional, citando o Reiki apenas como terapia complementar. 

Neste sentido, a opinião encontra respaldo no Ministério da Saúde, que incorporou o Reiki no Sistema Único de Saúde (SUS) como “prática integrativa”. O SUS oferece outras terapias pseudocientíficas, como a homeopatia, biodança, dança circular, bioenergética, constelação familiar, cromoterapia e geoterapia. 

A incorporação destas práticas frequentemente é justificada com a definição de saúde da Organização Mundial de Saúde (OMS): “Um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades”. Dessa forma, terapias sem comprovação científica auxiliam no bem-estar do paciente por meio do efeito placebo. Ou seja, um efeito benéfico produzido por um medicamento que não pode ser atribuído às propriedades do tratamento e, portanto, deve-se à crença do paciente nesse tratamento.

Diversos estudos já foram realizados com o intuito de determinar se a terapia Reiki difere do tratamento placebo – estudos suficientes para compor o livro “Effects of Reiki in clinical practice: A systematic review of randomised clinical trials”, com revisão de 205 artigos acerca do assunto. A maioria dos testes consiste em estudos duplo-cego (ensaio clínico realizado em seres humanos onde nem o examinado nem o examinador sabem o que está sendo utilizado como variável em um dado momento) com pacientes randomizados como participantes. 

Em resumo, os autores do livro encontraram que, embora a terapia Reiki tenha sido estatisticamente significativa para aumentar o conforto e o bem estar dos pacientes após a terapia, o placebo falso do Reiki também foi estatisticamente significativo. Os pacientes do grupo controle que não recebeu o Reiki placebo e nem o “Reiki real” não experimentaram alterações no conforto e bem estar. 

A raiz das escolhas ruins

Cristiano Novaes de Rezende rastreou a razão pela escolha duvidosa, mesmo quando do outro lado há especialistas advertindo sobre seus riscos. Segundo o filósofo, a incapacidade de julgar a qualidade das escolhas tem a ver com a desarticulação entre razão e emoção. “Um conhecimento duvidoso é um conhecimento que mantém em igualdade de condição duas possibilidades, a saber: a de que algo pode ser mas também pode não ser. É daí que vem dúvida, da ideia de duplo”.

Cristiano Novaes de Rezende afirma: “Nossa sociedade sofre de doença muito grave: a desarticulação entre razão e emoção” | Foto: Reprodução / Acervo Pessoal

O correlato emocional da dúvida é o que o filósofo Baruch Spinoza (1632 – 1677) chama de medo-esperança. Cristiano Novaes de Rezende disse que, para Spinoza, a coexistência entre medo e esperança é uma base propícia para a manipulação: “Aí justamente é que se faz presente a substituição de charlatanismo como promessa de algum tipo de certeza; só que é uma certeza baseada em qualquer coisa que não seja nossa capacidade de compreensão metodologicamente responsável”. 

Sob uma análise fria, a escolha entre uma garrafada caseira e seguir orientações médicas não deveria gerar dúvida quando a própria vida está em risco. Entretanto, segundo Cristiano Novaes de Rezende, o pânico gerado pela pandemia pode trazer à tona um defeito da formação que degrada a capacidade de julgamento: “Nossa sociedade sofre de doença muito grave: a desarticulação entre razão e emoção. A superstição tem a ver com a falta de educação emocional articulada com educação cognitiva”.