Cachoeira Dourada privatizada gera lucros milionários
10 maio 2014 às 11h05
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Hidrelétrica rende mais de R$ 300 milhões por ano ao grupo que a comprou do Estado
na última gestão do PMDB em Goiás. Em situação oposta, companhia energética goiana
se encontra em meio à mais grave deficiência financeira e estrutural de sua história
Frederico Vitor
A calamitosa situação em que vive a Celg, com dívida impagável e deficiência no abastecimento de energia ao Estado — cuja indústria, o agronegócio e o setor de serviços crescem acima da média nacional —, teve raiz na privatização da usina hidrelétrica de Cachoeira Dourada. Outros fatores também colaboraram para a bancarrota da empresa, que já foi a maior do Centro-Oeste. Ao fazer uma análise histórica dos fatos, desde a venda da unidade geradora de energia aos dias atuais, fica claro que a companhia energética goiana começou a ser descapitalizada ao comprar a energia que ela própria produzia a preços 50% acima da média do mercado.
A usina foi privatizada no dia 5 de setembro de 1997, por meio de leilão público, pelo valor de R$ 820 milhões, na época em que o atual prefeito de Aparecida de Goiânia, Maguito Vilela (PMDB), era governador de Goiás. Cachoeira Dourada foi construída na década de 50, no município de mesmo nome, distante 240 quilômetros de Goiânia. A usina foi arrematada pelo Grupo Endesa España — à época chilena —, uma empresa de capital fechado, que possui 99,6% do que é hoje a Centrais Elétricas Cachoeira Dourada S.A. (CDSA).
A CDSA é a maior supridora de energia da Celg, porém sua tarifa de fornecimento foi acordada na época de sua venda, em 53% mais cara que as demais fornecedoras — Itaipu, Furnas, CEB, Cemat e Enersul, onerando desde então o custo de aquisição de energia. Desta forma, a Celg firmou contrato de prestação de serviços bancários com o Banco Santander Brasil S.A, passando a efetuar depósitos diários variáveis de até R$ 850 mil, sem qualquer remuneração, para garantia do fornecimento de energia elétrica. Este procedimento difere daqueles adotados por Furnas e Itaipu, que recebem a sua energia somente no mês subsequente, segundo documentos obtidos pelo Jornal Opção.
Lucro alto
Em 2013, a CDSA gerou 2.404 Gigawatt-hora (GWh) e vendeu 3.564 GWh de energia para comercializadoras e distribuidoras de todo o País, o que lhe rendeu o lucro líquido de R$ 337 milhões, sendo que em 2012 foi de R$ 375 milhões. Hoje, a usina conta com 6,3 quilômetros de linhas aéreas de transmissão, sendo 2,8 Km de média-tensão e 3,4 Km de alta-tensão. No ano passado, foram investidos R$ 23,5 milhões (R$ 12,9 milhões em 2012) em atividades de manutenção e reforço da usina, como também em projetos relacionados à segurança e meio ambiente.
Como se pode notar, a CDSA é superavitária. A situação da usina que, outrora pertencia ao patrimônio público estadual e era responsável pelo suprimento de mais da metade da energia requerida pela Celg, é muito diferente da atual conjuntura vivida por sua antiga proprietária. Hoje, a Celg tem uma dívida de R$ 2,5 bilhões, já que ficou de 2006 a 2010 sem pagar nenhum encargo setorial e sem pagar a energia de Itaipu que consumia.
Governo peemedebista não buscou reestruturar a Celg após venda da usina
Após a privatização da usina durante governo peemedebista, o governo estadual daquela época determinou algumas medidas de forma a manter o equilíbrio econômico e financeiro da Celg após cisão com a CDSA. Ficou decidida, a partir daquele momento, uma série de metas, dentre elas a redução em perdas de energia no sistema, de despesas com serviços de terceiros, despesas com pessoal, transferência da dívida tomada para a construção de Cachoeira Dourada e o equilíbrio do fluxo de caixa e dívida.
Com essas medidas, estudos contratados após a privatização indicavam que a Celg voltaria a ter lucros a partir do quinto ano da cisão, ou seja, do ano 2000. De um lado, a Celg tinha a pagar uma dívida de ICMS com o governo estadual. De outro lado, tinha a receber de diversos credores, valores relativos ao fornecimento de energia e seus encargos, principalmente da Saneago, e reembolsos de despesas do Estado pagas pela Celg. Esse encontro de contas, para preservar o equilíbrio de fluxo de caixa da Celg, não foi feito.
Além do mais, o governo estadual daquela época se comprometeu a fazer um aporte de recursos, na ordem de R$ 50 milhões, em duas parcelas, para aumento de capital, que teria como propósito o equilíbrio de fluxo de caixa da Celg. O Tribunal de Contas do Estado (TCE) apontou que esse valor não entrou no caixa da Celg, tendo sido transformado em abatimento do ICMS a ser pago. O governo simplesmente transformou a dívida de ICMS em capital da Celg, nada fazendo em relação ao que devia à companhia energética goiana.
Em linhas gerais a Celg deixou de dever ao Estado, mas continuou com um crédito sem negociação até o encontro de contas realizado em julho de 2007, quando a dívida foi reconhecida pelo Estado, mas até hoje continua impactando negativamente o capital de giro da empresa.
Contrato obrigava Celg a comprar energia de Cachoeira Dourada privatizada
Em 1956, no governo de José Ludovico de Almeida, foi deflagrado o projeto da construção da usina hidrelétrica de Cachoeira Dourada, cuja motorização ocorreu em 1959, com 32 MegaWatt (MW) de potência instalada. Entre 1965 e 1970 entrou em operação a segunda etapa de Cachoeira Dourada, com 156 MW. Na década de 70, construiu-se a terceira etapa de Cachoeira Dourada, agregando 255 MW ao sistema, e um conjunto de obras de grande porte em 138 e 230kV, principalmente no Sul e médio Norte. Na década de 90, foi concluído o aproveitamento de Cachoeira Dourada com a construção da quarta etapa, acrescentando 200 MW ao sistema.
Para entender os fatos que culminaram na privatização da usina, primeiramente, deve-se ressaltar o panorama histórico daquela época, começando pelo período anterior a 1994. Naquela época, não existia a Lei de Responsabilidade Fiscal nem Plano Real e a taxa de inflação no País aumentava a ritmo galopante. Maguito Vilela é empossado governador em 1995 e seu governo foi fortemente caracterizado por um lado pela atração de empresas e indústrias para Goiás, e por outro por políticas assistencialista, como distribuição de cesta básica.
Celg superavitária
Neste período, havia dentro da Celg uma política denominada de sobreinvestimento. Este modelo consistia na seguinte forma: o Estado construía uma obra que necessitava de abastecimento de energia e, no final das contas, a Celg atendia a solicitação além da demanda desejada. Inusitadamente, esta prática era lucrativa à companhia energética goiana, sendo que o caixa da empresa não registrava déficits. Isso porque o País vivia uma era inflacionária, e no sistema elétrico existia a Conta de Resultados a Compensar(CRC). Ou seja, a Celg ganharia cerca de 10% a mais com o retorno do investimento feito independentemente da eficiência do empreendimento. Isso porque os sobreinvestimentos colocados no sistema (sempre a mais para atender a lógica dos empreteiros) ia para a CRC.
Depois de 1994, houve a implantação do Plano Real e da Lei de Responsabilidade Fiscal, que exigiu dos governos estaduais mais austeridade, controle de gastos e disciplina fiscal. A Celg sentiu esta adequação. O Plano Real extinguiu este mecanismo de compensar os sobreinvestimentos. Deste modo, a empresa que vivia na irrealidade desequilibrou-se.
Diante deste novo panorama, em que não mais havia liquidez no caixa da Celg como anteriormente, surgiu a iniciativa do governo estadual comandado pelo PMDB de privatizar o que foi um dos maiores patrimônios do povo goiano: a Usina Hidrelétrica (UHE) de Cachoeira Dourada. Para se ter ideia da importância desta unidade geradora de eletricidade, quase 60% da energia consumida em Goiás era produzida pela usina. A outra metade a Celg negociava em outros mercados — como Furnas, Eletronorte e Eletrosul por exemplo.
O maior de todos os problemas, entretanto, não foi privatização em si, mas a assinatura do contrato que obrigava a Celg a comprar da CDSA o mesmo porcentual de energia que a usina fornecia quando ainda fazia parte de seu patrimônio, porém com o preço de atacado 53% mais caro do que a energia ofertada por outras geradoras. Ou seja, a Celg tinha a oportunidade de comprar energia mais barata de outros supridores, mas não poderia levar adiante porque estava amarrada contratualmente com a empresa que adquiriu Cachoeira Dourada. O resultado disto é refletido hoje em seu caixa debilitado, baixa qualidade de serviços e deficiência em suprir a atual demanda de energia no Estado.
Se não fosse a venda de Cachoeira Dourada, Celg poderia ser uma Cemig
Muitos especialistas da área do sistema energético afirmam que se não fosse a privatização da usina de Cachoeira Dourada, guardada as devidas proporções, possivelmente, a Celg poderia ser hoje uma Cemig, a empresa estatal mineira que é a primeira do País em distribuição de energia. Diferentemente da Celg, a Cemig é um expoente de como uma boa gestão calcada no planejamento pode render bons resultados.
Além de possuir participações em 120 sociedades e 16 consórcios e um fundo de participação, com ativos em 23 Estados, incluindo o Distrito Federal, atualmente a Cemig possui mais de 120 acionistas em 40 países. Suas ações são negociadas nas Bolsas de Valores de São Paulo, Madri e Nova York. Atualmente, a empresa mineira é uma referência na economia global tendo sido classificada pela revista Forbes como a 914ª maior empresa do mundo em universo global de 2000.
O grupo Cemig no segmento de distribuição de energia elétrica abastece cerca de 30 milhões de consumidores em 805 municípios dos Estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro. A companhia energética mineira também é a maior comercializadora do País, responsável por 25% do mercado de consumidores livres. A Cemig é detentora de um parque gerador de energia formado por 63 usinas hidrelétricas — de pequena, média e grande porte —, três térmicas e quatro eólicas.
Para fazer um paralelo entre as empresas goianas e mineiras, o Jornal Opção consultou um dos maiores especialistas brasileiros no tema, radicado em Minas Gerais, que conhece a fundo a situação de ambas as companhias energéticas. Professor do Centro de Pesquisas Hidráulicas e de Recursos Hídricos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Carlos Barreira Martinez afirma que tanto a Cemig quanto a Celg eram empresas que tiveram o Estado como o principal indutor. Mas que, no decorrer dos anos, as empresas tiveram os objetivos diferenciados pelas ações políticas.
Respeito aos princípios
Segundo Carlos Martinez, a diferença é que a empresa de Minas Gerais continuou atuando dentro dos princípios em que ela foi criada, isto é, gerar e fornecer energia para o Estado sem que houvesse a necessidade de privatizar parte de seu patrimônio. “Há alguns desvios, naturais em todos os processos, mas a Cemig continua sendo uma empresa indutora do crescimento do Estado. A Celg optou por ser um instrumento político”, diz o professor.
Carlos Martinez aponta que o início da derrocada da Celg não se deveu a problemas técnicos ou financeiros, mas sim político. Segundo ele, o que aconteceu em Goiás, respeitadas as devidas proporções, não é diferente do que vem incidindo com a Petrobrás. Ou seja, uma grande empresa pública utilizada para finalidades políticas. “A Cemig tem um corpo técnico muito vivo e opina nos rumos da empresa. A maior parte dos cargos de direção é ocupada por profissionais de carreira, que querem que a empresa cumpra com a função dela”, diz.
Estratégia de Estado
Outra questão que deve ser ressaltada é que a Cemig também teve parte de sua empresa privatizada, entretanto, diferentemente da Celg, essas operações não afetaram a saúde financeira da companhia. Pelo contrário. O governo mineiro manteve o controle acionário do grupo. A Cemig, com seu corpo técnico fortalecido e atuante conseguiu construir nestes últimos anos uma grande estrutura que lhe confere o título de maior distribuidora de energia do Brasil.
Isso porque a direção da empresa sempre se manteve preocupada e interessada com os destinos socioeconômicos de Minas, segundo Carlos Martinez. “O problema que vejo na Celg é que ela foi mal direcionada e fez maus negócios. Ela sofreu um processo de investimentos predatórios monstruoso.”