Cientistas explicam por que epidemias virais, como o coronavírus, assolam a China periodicamente e por que não podemos evitá-las

Jessica Bahia Galvão Santos é gerente de marketing da empresa UK Fang Education China, que presta serviços para alunos chineses que querem estudar em boarding ou day schools no Reino Unido. Graduada em Relações Internacionais e pós-graduada em Negócios Internacionais, Jessica Santos acompanha de perto a evolução da epidemia. A brasileira visita intermitentemente a China desde 2012. Há dois anos, vive e trabalha em Shanghai, onde também estudou a língua chinesa na Fudan University. Jessica Bahia Galvão Santos contou ao Jornal Opção seu ponto de vista sobre o novo coronavírus que assusta o mundo.

Jessica Bahia Galvão Santos | Foto: Arquivo Pessoal

Como o governo chinês tem lidado com o novo coronavírus?

O governo chinês está super consciente do problema e orienta a população a ficar em casa. Fecharam lugares de grandes aglomerações como parques, bares, boates, templos, restaurantes e pontos turísticos. Além disso, orientam a população a manter uma alimentação saudável e tomar bastante líquido para melhorar o sistema imunológico, usar máscaras, lavar as mãos e fazer gargarejos.

Na China, os hospitais são muito lotados porque a população é muito grande; com essa situação estão mais lotados ainda. O governo decidiu criar um hospital do zero para atender as vítimas do coronavírus. A proposta é de construir em apenas dez dias, uma coisa impressionante. São muito conscientes do problema. É possível acompanhar ao vivo a construção do hospital na internet.

Estão pedindo para as pessoas chegar com quatro horas de antecedência a voos porque fazem um check-up médico assim que se chega ao aeroporto. A província de Hubei está basicamente fechada, não há transportes entrando ou saindo da cidade. 

Médicos estão sob muita pressão, trabalhando em turnos de 20 horas com 3 horas de descanso. Tiveram de cancelar todos eventos com família para cuidar da situação. Acreditamos que essa semana será crítica porque o período de incubação do vírus é de 14 dias, havendo um pico previsto até o dia 10 de fevereiro. Mas, mesmo que hajam muitos casos, é uma situação controlada quando se pensa no número de habitantes.

E a situação em Shanghai?

A situação não é tão crítica aqui. Há 112 casos confirmados, uma morte e cinco recuperações. A população total é de 26 milhões. A média de idade dos mortos é de 75 anos e são pessoas com sistema imunológico fragilizado. Por isso, sempre alertam para a importância da hidratação e dieta equilibrada. Além disso, existem os casos de recuperação, o que é positivo.

Shanghai é uma cidade que não pára e a qualquer hora do dia tem muito movimento. Mas, nesta semana, saí com minha scooter e vi cidade completamente vazia, com pouquíssimos carros, apenas alguns entregadores porque franquias de restaurantes ainda fazem delivery. Eu não estou saindo de casa, não sei se restaurantes continuam recebendo pessoas, mas estão fazendo entregas, bem como supermercados.

Como é o contato das pessoas com animais? A sopa de morcego é mesmo real?

Sopa de morcego é uma iguaria, sim. Não é algo que comemos todos os dias, mas a população mais antiga tem suas crenças e, de fato, às vezes comem esse tipo de carne, mesmo que não seja comum. Já vi morcego, cérebro de macaco, cobra, besouros em restaurantes. Existem também mercados de animais silvestres que vendem animais como morcego, macaco, faisão, leopardos, porcos-espinho.

Se a população brasileira tivesse tanta consciência em relação a dengue quanto a população chinesa está tendo com o coronavírus, a dengue seria um problema muito menor

A população colabora com orientações do governo?

Os chineses estão com muito medo. Todos realmente seguem todas as instruções do governo e sempre escuto os moradores repetindo uns para os outros, “use máscara, lave as mãos”. As pessoas já utilizam máscara normalmente por conta da poluição e moda – é uma coisa dos asiáticos, acham fashion. Mas agora todos usam a máscara. 

Atividades que reúnem pessoas em escolas, transporte público, mercados e lazer continuam normalmente?

Nesta semana tivemos o ano novo chinês, um feriado de uma semana. As pessoas começariam a trabalhar na quinta-feira, 30 de janeiro, mas o governo estendeu até o dia 09 de fevereiro. Escolas aguardam até o dia 17 de fevereiro para voltar às atividades normais. E aqui na China, trabalhamos dia a mais para compensar dias que não trabalharemos no feriado. Então, para fazer isso, é sinal de que a coisa está séria. Lazer, esquece. Até salas de cinema estão fechadas. 

Condomínios residenciais também estão passando as recomendações e são visitados por agentes de saúde que medem a temperatura. O principal sintoma do coronavírus é uma febre muito alta. O que ouvi de amigos que trabalham em hotéis é que quando se faz check in, há alguém para medir sua temperatura. 

Você acha que o medo é justificado?

Em nosso grupo de brasileiros no WeChat (versão chinesa do Whatsapp), tentamos acalmar todo mundo e desmentir as fake news, que também estão sendo muito propagadas. Não acreditem em vídeos de pessoas caindo na rua e desmaiando em hospitais. Está sendo passada uma impressão extrema do que está acontecendo aqui, e esta não é a verdade. As pessoas estão estocando comida e água em casa, mas isso é normal com a redução de mercados e restaurantes. A situação não está apocalíptica, é até bastante controlada em Shanghai. Sempre penso que, se a população brasileira tivesse tanta consciência em relação a dengue quanto a população chinesa está tendo com o coronavírus, a dengue seria um problema muito menor. 

Você tem notícias de como outros países tem tratado emigrantes da China?

Companhias aéreas como Air Canada, American Airlines, British Airways, entre outras, suspenderam viagens para a China – em parte por uma razão econômica, já que muitas pessoas estão cancelando seus voos, mas também em parte pelo medo de espalhar a doença. 

Entretanto, tenho amigos brasileiros residentes na China que foram à países como Singapura e relataram não passar por nenhum procedimento especial quando chegam voos da China. O aeroporto de Guarulhos não está tomando nenhuma medida preventiva. Brasileiros que vão daqui para o GRU relatam que não há triagem, medição de temperatura, e alguns contam que foram à representação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) do aeroporto, mas ouviram que nada podia ser feito. Então, a questão do controle brasileiro é super negligenciada.

Como surgiu e o que a ciência faz para controlar o coronavírus

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Pesquisadoras do Laboratório de Virologia e Cultivo Celular explicam como novos vírus podem emergir e se disseminar rapidamente | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção

No dia 31 de dezembro, a OMS foi informada de um conjunto de casos de pneumonia de causa desconhecida detectados na província chinesa de Hubei. No início de janeiro, foi anunciado que um novo coronavírus havia sido identificado, vinculado a um mercado na cidade de Wuhan. A notificação rapidamente tomou conta dos noticiários internacionais, provocando reação de líderes mundiais para conter a epidemia, o que, por sua vez, conquistou ainda mais espaço em noticiários. 

Entretanto, quando comparados, os números da nova doença – 213 mortes e 9.1 mil infecções até o fechamento desta edição – ainda são inferiores aos do arbovírus causador da dengue, que em 2019 quebrou recordes históricos fazendo 1.206 mortes e 2,7 milhões de infecções apenas nas Américas. Portanto, o que explica o medo que a nova infecção respiratória tem gerado?

Em parte, o temor pode ser explicado pelas memórias da SARS de 2003; da gripe aviária de 2009; da gripe A de 2009; e de tantas outras infecções virais nascidas na China. Embora a letalidade do novo coronavírus (estimada em 2%) não alcance à da SARS (cerca de 4%), ainda é suficientemente alta para gerar preocupação – a taxa é muito mais alta do que a do dengue, por exemplo.

Além disso, em apenas um mês o novo coronavírus infectou mais do que o SARS em todo ano de 2003. Também é grave o fato de que, ao contrário da gripe aviária, pode ser transmitido de pessoa para pessoa, e não apenas de animais para humanos. Por último, o período de incubação parece durar até 14 dias. Nesta fase, o hospedeiro pode transmitir a doença sem manifestar seus sintomas.  

Pelo que tudo indica, o novo agente reúne características necessárias para causar uma pandemia e ainda alia outro ingrediente importante para criar pânico: o desconhecido. Cientistas ainda não sabem exatamente como esta variante do coronavírus é transmitida, sua patogenia e sua taxa de mortalidade. Por ser novo ainda, não há indivíduos com imunidade contra a infecção, o que facilita sua dispersão. 

A origem do vírus chinês

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Fabiola Fiaccadori explica que o coronavírus não era um problema até conseguir ser transmitido entre animais e humanos | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção

Fabiola Souza Fiaccadori (Doutora em Microbiologia pelo PPGMTSP/IPTSP/UFG) e Menira Borges de Lima Dias e Souza (Ph.D pela The Ohio State University) são professoras e pesquisadoras na área de Microbiologia do Laboratório de Virologia e Cultivo Celular (LABVICC) do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública da Universidade Federal de Goiás. As professoras explicam como novos vírus podem emergir e se disseminar rapidamente, bem como o que a ciência pode fazer para combatê-los. 

As pesquisadoras explicam que o sequenciamento do genoma do novo coronavírus mostrou muita semelhança (identidade maior que 85%) com  variantes que já circulavam entre morcegos. “Em humanos, os coronavírus são reconhecidos como causadores de doenças semelhantes a um resfriado comum. Entretanto, existem coronavírus associados a infecções em diferentes espécies animais, como cães, gatos, suínos e morcegos, o que favorece a recombinação genômica entre vírus de diferentes espécies”, explica Fabíola Souza Fiaccadori.

Os vírus em geral são instáveis, podendo sofrer mutações pontuais durante o processo de replicação dentro da célula do hospedeiro, consertando mal os erros da própria replicação. Esta variabilidade, aliada à pressões (como a defesa imunológica) que selecionam vírus com a qualidade do spill over e rápida disseminação, faz com que eventualmente surja uma mutação que rompe uma barreira entre hospedeiros. 

Menira B. L. D. e  Souza diz: “vários publicações científicas realizadas com amostra de arquivo revelam que, quando se tem notícias de um vírus novo, na verdade ele já estava se replicando e circulando em alguma população”. Fabiola Fiaccadori acrescenta: “Em geral, nestes casos, o início é caracterizado pela ocorrência de casos esporádicos e aleatórios que dificultam a identificação e notificação. Entretanto, a partir da adaptação da variante viral, esta pode se adaptar na população e estabelecer um surto”.

Os indícios sugerem que uma das mutações que fez surgir todo o problema ocorreu no gene que codifica a Proteína S, que se localiza na superfície do envelope viral e portanto muda a forma com que o vírus reconhece células de hospedeiros e também tem efeito na resposta imunológica à infecção. O contágio entre morcegos e humanos parece ser favorecido pelo contato próximo entre pessoas e animais em feiras e mercados de animais silvestres que existem na China. 

Fabiola S. Fiaccadori afirma que há ainda outra característica desses vírus importante para explicar o fenômeno: “Em uma mesma célula infectada por diferentes vírus, pode ocorrer a recombinação, como troca de material genético, o que levando ao surgimento de novas variantes virais”.  

Cura à vista

Menira B. L. D. e Souza
Menira B. L. D. e Souza conta como o reservatório animal dos morcegos garante um espaço onde vírus podem se replicar e sofrer mutações livres de vacinas | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção

Ao contrário dos coronavírus, o causador da dengue não tem perfil de ampla variabilidade. Porém, isso não significa que o perigo está descartado. Fabiola S. Fiaccadori lembra que o vírus  zika tinha variabilidade ainda inferior ao vírus dengue, mas se tornou responsável por uma epidemia caracterizada como de Emergência Internacional. “O vírus zika originalmente caracterizado como agente de infecção branda, após evento de variabilidade, estabeleceu novas vias de transmissão e se tornou capaz de causar patogenia diferenciada, até casos graves como complicações  neurológicas”. Para isso, o zika necessitou apenas de pequenas mutações.

A letalidade da doença provocada depende de diversos fatores. Primeiro, a taxa de replicação do vírus no corpo é determinante. A capacidade de se disseminar pelo organismo antes de o corpo produzir uma resposta imunológica era uma característica conhecida da SARS, que podia passar para os pulmões sem ficar detida no trato respiratório superior, de modo que não havia tempo para o organismo montar sua defesa. 

Com a alta letalidade do coronavírus, esforços têm sido feitos para desenvolver uma vacina. O sequenciamento de seu genoma foi feito em tempo recorde, nos Estados Unidos. Fabiola S. Fiaccadori explica como o sequenciamento auxilia no desenvolvimento da vacina: “Se consigo a informação da sequência genômica, deduzo quais proteínas o vírus tem. O que a vacina faz é mostrar ao sistema imune a composição da proteína de um invasor para que uma resposta protetora e eficaz possa ser produzida contra o agente infeccioso.”

O sucesso não é garantido, entretanto. Com o reservatório animal dos morcegos, vírus têm uma fonte onde podem replicar e sofrer mutações livres de vacinas. Além disso, Menira B. L. D. e Souza explica que o procedimento para que uma vacina para ser licenciada e comercializada não é simples, levando em média de 8 a 10 anos.

“Primeiro há testes de citotoxicidade em cultura de células e testes de dosagem e segurança. Aí então, pode-se fazer testes em animais. Depois, ensaio clínico com poucos voluntários. Verificadas questões de segurança e eficácia, outro ensaio clínico é feito, com maior número de indivíduos em diferentes países e de diversas faixas etárias. Por último, esses dados são analisados para compreender se vale a pena investir milhões de dólares – o ideal é que a vacina seja eficaz contra pelo menos as variantes mais frequentes daquele vírus”, diz Menira B. L. D. e  Souza.

Cientistas explicam que processo de produção de vacinas levam em média 9 anos | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção