Brasil perde milhões de anos de história com fósseis contrabandeados
30 dezembro 2021 às 17h48
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Operadoras de pedreiras encontram fósseis valiosos para a ciência e os vendem para paleontólogos estrangeiros, dispostos a pagar centenas de milhares de dólares
Em 1995, trabalhadores de uma pedreira Nova Olinda e Santana do Cariri (Ceará) encontraram fósseis de um dinossauro que viveu de 146 milhões a 100 milhões de anos atrás. A descoberta do animal tem importância para a paleontologia, para a biologia evolutiva, para a ecologia e possivelmente para outras áreas inesperadas também. O dinossauro é chamado de Ubirajara jubatus, seguindo a tradição brasileira de batizar os animais com nomes indígenas. Em tupi, Ubirajara significa “senhor das lanças”, e jubatus quer dizer “com juba”, devido aos dois pares de uma estrutura rígida e alongada para proteção que saíam de seus ombros.
Entretanto, ao invés de ter parado nas mãos de pesquisadores brasileiros, os registros fossilizados foram adquiridos pelo alemão Staatliches Museum für Naturkunde Stuttgart e contrabandeados para a Alemanha com auxílio de uma licença de exportação forjada. A descrição do animal foi publicada na revista Cretaceous Research por uma equipe internacional de pesquisadores e o holótipo – espécime único no qual se baseia a descrição de uma nova espécie – está no Museu Estadual de História Natural de Karlsruhe, na Alemanha.
Após pedido da Sociedade Brasileira de Paleontologia (SBP) e campanha popular na internet (#UbirajaraBelongsToBR) o periódico Cretaceous Research retirou o artigo do ar até que a questão da origem da evidência fóssil fosse resolvida. O caso chegou ao Ministério Público Federal (MPF) de Juazeiro do Norte, no Ceará, que, em investigação, solicitou que as autoridades alemãs que repatriassem o material.
Um dos autores do estudo, o paleontólogo britânico David Martill, da Universidade de Portsmouth, no Reino Unido, rechaçou as acusações de tráfico internacional. “O holótipo está no museu Karlsruhe, onde o vi pela primeira vez. Não peguei e com certeza não importei”, disse à Pesquisa FAPESP. “Não importa o que aconteça, não sou responsável por verificar a origem dos fósseis com os quais trabalho. Se eles estão em um museu, presumo que estejam lá legitimamente. ”
Problema crônico
O Ubirajara jubatus está longe de ser o único exemplar extraviado do Brasil. Em 2013, contrabandistas em São Paulo estavam prontos para enviar uma enorme quantidade de fósseis para o exterior via Porto de Santos, mas antes que conseguissem, a polícia recuperou o contrabando. Ao invés de drogas, a polícia federal encontrou seis grandes placas de calcário. Em 2016, quando os paleontólogos da Universidade de São Paulo (USP) finalmente identificaram o material que seria traficado, perceberam que se tratava de um esqueleto quase completo de um Tupandactylus navigans, um tipo de pterossauro (aparentado mas distinto dos dinossauros) do início do período Cretáceo, que viveu há mais de 100 milhões de anos.
No último domingo, 26, uma reportagem do programa Fantástico, Globo, revelou que os grandes compradores de fósseis estão dentro da própria comunidade científica, com pesquisadores pressionados pelo sistema acadêmico a sempre produzir publicações relevantes.
No Brasil, a lei que proíbe o transporte de fósseis sem autorização expressa de entidades científicas (Lei 4.146 de 1942) não tem sido capaz de coibir o contrabando. Max Langer, presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia, afirmou à revista Nature: “Apesar da lei existir, as pessoas estão tirando fósseis do país em toneladas por mês.” Os dinossauros chamam a atenção, mas fósseis de artrópodes, bactérias, algas e plantas compõem a maior parte do tesouro roubado.
A Bacia do Araripe, rica em fósseis, no nordeste do Brasil, há muito é uma fonte de espécimes do mercado negro. Na divisa entre Ceará, Piauí e Pernambuco, os tesouros fósseis da região estão sob responsabilidade da Agência Nacional de Mineração (ANM). Max Langer diz não ter conhecimento de que o Departamento Nacional de Produção Mineral concedeu licenças para colecionadores estrangeiros, o que significa que a maioria dos fósseis do Araripe hoje no exterior deve ter sido obtida ilegalmente.
Cientistas brasileiros argumentam que manter fósseis no país preserva o patrimônio cultural e ajuda a desenvolver a expertise paleontológica do Brasil. A coleta ilegal também danifica os espécimes e impede a aquisição de dados contextuais de campo. Mas a repressão preocupa alguns paleontólogos fora do Brasil, que dizem que as leis atrapalham a ciência. “Os cientistas que querem apenas fazer ciência estão frustrados”, diz David Martill, paleontólogo da Universidade de Portsmouth, no Reino Unido.
Martill argumentou em entrevista à Nature que criminalizar apenas empurra o comércio para a clandestinidade. As repressões cortam a linha de abastecimento porque os escavadores informais temem ser presos. Conhecer fontes “duvidosas” é a única maneira de obter amostras, diz Martill, porque o DNPM ignora os pedidos de escavação. Ele acrescenta que a paleontologia precisa do comércio comercial porque sem ele há pouca escavação.
As principais fontes de fósseis são os trabalhadores de pedreiras. Pela lei, esses escavadores são obrigados a reportar qualquer fóssil encontrado para seus superiores, que devem enviá-los para instituições de pesquisa. Entretanto, com alta recompensa na clandestinidade, trabalhadores e donos de pedreiras têm muito incentivo para contrabandear fósseis e pouco para seguir o caminho da constituição.
Alexander Kellner, paleontólogo do Museu Nacional do Brasil, parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro, afirmou à revista Nature que autoridades agiram rapidamente no mês passado, quando o site de leilões online eBay listou um pterossauro brasileiro à venda por 262 mil dólares. O leilão, da francesa Geofossiles, fechou sem venda, e a polícia brasileira e internacional está investigando o caso. O Brasil pode pedir à França que repatrie o fóssil se as autoridades puderem provar que ele foi encontrado no país.
No 7º Simpósio Brasileiro de Paleontologia de Vertebrados em 2010, Marcos Sales, um paleontólogo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), descobriu que 14 dos 24 espécimes de referência, ou holótipos, de fósseis de pterossauros coletados na Bacia do Araripe foram alojados por instituições estrangeiras.
Em entrevista à Fapesp, o paleontólogo Alexander Kellner, diretor do Museu Nacional, esse problema poderia ser amenizado se as mineradoras exigissem pelo menos um técnico paleontológico em suas equipes para coletar esses materiais e encaminhá-los ao museu local. “Não adianta simplesmente pedir a devolução de fósseis contrabandeados. Precisamos investir na melhoria da infraestrutura de nossos museus, na formação de nossos pesquisadores e, claro, no fortalecimento da vigilância ”.