Bolsonaro se encurralou, analisam cientistas políticos

12 setembro 2021 às 00h02

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Manifestações de 7 de setembro foram negativas para Bolsonaro eleitoralmente, mas o presidente parece não pensar em permanecer no poder via eleições

A manifestação pró-governo do dia 7 de setembro foi longamente antecipada. Organizadores, ligados ao agronegócio, igrejas evangélicas e ao empresariado, investiram na mobilização para os atos com pelo menos um mês de antecedência. Entretanto, quando finalmente eclodiram, duas impressões paradoxais foram deixadas nos cientistas políticos e analistas: nenhum outro político brasileiro consegue colocar tantos apoiadores nas ruas e, mesmo assim, o dia da independência foi uma derrota do ponto de vista político-eleitoral.
Os números não são pequenos: apenas em Brasília e São Paulo somaram-se mais de meio milhão de participantes, segundo as polícias militares do Distrito Federal e de São Paulo. Porém, os atos contaram com um esforço de seus organizadores que não pode ser facilmente repetido. Por meio da Secretaria Especial de Articulação Social, o presidente Jair Bolsonaro utilizou a estrutura do Planalto para divulgar as manifestações. No dia 19 de agosto, o presidente da República afirmou que estaria “onde o povo estiver […] Pretendo estar na Esplanada dos Ministérios e à tarde estar na Paulista.”
Artistas como o cantor sertanejo e ex-deputado federal Sérgio Reis estiveram envolvidos na conclamação. Quinze dias antes das manifestações, em vídeo, líderes evangélicos, como Silas Malafaia e o pastor e senador Magno Malta (PL-BA), convocaram fiéis a participar dos atos. Empresários, como o porta-voz do movimento Nas Ruas, Tomé Abduch, também estimularam a presença dos bolsonaristas.

Em inquérito do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre atos violentos e ameaçadores contra a democracia, a Polícia Federal identificou como organizadores das passeatas alguns representantes do agronegócio, como Antônio Galvan, presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja). Em Goiás, também representando o agro, o presidente da Sociedade Goiana de Pecuária e Agricultura (SGPA), Eurico Velasco de Azevedo Neto, declarou apoio às manifestações.
Ainda no inquérito dos atos antidemocráticos, diversos organizadores foram presos por ameaçar ministros do STF e seus familiares, o que acabou por fomentar marchas contra o próprio STF sob o pretexto de que aquela seria uma reação à ameaça ao direito de livre expressão. Foram presos Sérgio Reis, que ameaçou “invadir [o STF], quebrar tudo e tirar os caras na marra”; o comediante Batoré, que gravou vídeo defendendo o fechamento da corte; Marcio Giovani Nigue, que anunciou em vídeo que um grande empresário pagaria “uma grana federal” pela a cabeça do Ministro Alexandre de Moraes; entre outros.
O próprio ministro Alexandre de Moraes leu algumas ameaças recebidas pelos integrantes da Corte. Algumas delas são: “Quanto custa atirar à queima-roupa nas costas de cada filho da p*** ministro do STF que queira acabar com a prisão em segunda instância? Se acabar com a segunda instância, só nos resta jogar combustível e tocar fogo no plenário com os ministros dentro”, e “Que estuprem e matem as filhas dos ordinários ministros do STF”. Alexandre de Moraes ponderou durante a sessão: “Onde está aqui a liberdade de expressão? Incitar estupro contra as filhas dos ministros não é o mesmo que exercer liberdade de expressão, mas sim um crime”.

A confluência de fatores fez com que o público bolsonarista fosse às ruas esperando uma radicalização do presidente, que realmente extremou o discurso. “Quero dizer aos canalhas que eu nunca serei preso. Ou esse ministro [Alexandre de Moraes] se enquadra ou ele pede pra sair. Não se pode admitir que uma pessoa apenas, um homem apenas turve a nossa liberdade”, afirmou Bolsonaro sobre um carro de som. A radicalização ficou no campo da oratória, entretanto.
Apoiadores pareciam esperar uma atitude concreta do presidente contra o poder Judiciário. Bolsonaro nem mesmo apoiou publicamente os bloqueios de rodovias promovidos por caminhoneiros bolsonaristas no dia seguinte às manifestações. Ainda mais: no dia 9 de setembro, o presidente Bolsonaro publicou carta redigida pelo ex-presidente Michel Temer (MDB) em que recuava de ataques feitos a Alexandre de Moraes. A atitude foi vista como abandono pelo núcleo dos militantes bolsonaristas.
Análise dos especialistas
O mestre em Ciências Políticas e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), Guilherme Carvalho, afirma que as manifestações foram uma tentativa do presidente de responder à queda de sua aprovação, apontada nas últimas pesquisas de popularidade. “Em especial as camadas mais ao centro, que tradicionalmente votam de forma mais pragmática, têm sofrido com inflação, pandemia, crise hídrica e energética, carestia. Bolsonaro percebeu que precisava transportar as bolhas de aprovação que existem na internet para as ruas”.

Outro elemento que também explica as manifestações é a constante necessidade de manutenção das bases bolsonaristas com ressentimento contra adversários internos, afirma Guilherme Carvalho. “Há sempre um inimigo da nação. Já foram os políticos presos pela operação Lava Jato, já foram os congressistas do ‘centrão’, e agora é o STF. O Supremo é o inimigo perfeito porque seus ministros não foram eleitos e não há quem proteja sua permanência (além da constituição, é claro, mas a constituição parece abstrata e distante para os militantes)”.
Pensando nesses dois objetivos originais, o governo foi bem sucedido, segundo o cientista político, já que a impopularidade do presidente foi contestada e os militantes compareceram às ruas. A vitória foi um pouco mais além: o presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira (PP-AL) afirmou que o legislativo não reagirá contra os ataques feitos pelos manifestantes, chegando a elogiar os participantes. “O poder Executivo atacou, mas não vimos a contundência da reação. Talvez o judiciário cobre medidas e minha opinião mude no longo prazo, mas da perspectiva imediata, o governo foi relativamente bem sucedido em seus objetivos”, afirma Guilherme Carvalho.
A reação mais vigorosa veio dos líderes partidários independentes. O presidente do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), Bruno Araújo, disse nesta quarta-feira, 8, que a sigla reconheceu que o presidente Jair Bolsonaro cometeu crime de responsabilidade e anunciou oposição formal do partido ao governo. Gilberto Kassab, presidente nacional do PSD, defendeu a abertura de um impeachment contra Jair Bolsonaro (embora tenha afirmado que a carta atenuou a tensão e que o risco de impedimento está afastado – por enquanto). O PL de Valdemar da Costa Neto ameaçou entregar cargos caso Bolsonaro promova atos de radicalização

“Bolsonaro ainda tem o apoio do centrão na sobrevivência política, mas isso dá muita força ao Congresso, já que assim consegue-se extrair mais do presidente para mantê-lo vivo”, diz Guilherme Carvalho. “Para Lira, não antagonizar o presidente faz total sentido, pois dele depende o acesso ao cofre com a liberação de emendas”.
O professor e consultor em comunicação e marketing político, Marcos Marinho, analisa que, ao obrigar as instituições a se colocarem contra ele, Bolsonaro acirrou seu isolamento do ponto de vista político eleitoral – embora seu discurso claramente golpista aponte que sua intenção não é concorrer às eleições, e da perspectiva da tomada de poder, talvez as manifestações tenham atingido seu objetivo. “Ele produziu material para suas redes, mobilizou seus seguidores, pautou a mídia”, afirma Marcos Marinho.
“Em minha leitura, as manifestações deterioraram as condições de governabilidade”, diz Marcos Marinho. “A maior parte da população não está interessada nas atuações dos ministros do STF; está preocupada com a fome do dia-a-dia. O governo não mostra potencial de resolver problemas concretos ou de entregar projetos positivos. Sua preocupação tem sido a sobrevivência política em detrimento de instituições da república. Isso cansa e afasta a população geral”.
Pedro Célio Alves Borges, doutor em Sociologia e professor da UFG, concorda com Marcos Marinho neste ponto. O especialista em comportamento político afirma: “Não vi nas manifestações faixas contra a corrupção, pela recuperação do crescimento econômico, de enfrentamento à pandemia, de preocupação com a crise hídrica e energética, etc. A finalidade dos atos era a de criar confusão, de desestabilizar a convivência entre poderes e atemorizar os adversários”.
Para Pedro Célio Borges, há uma dicotomia. Ao se isolar, o presidente assume que não pensa pela lógica funcional que rege a política brasileira desde a redemocratização; mas ao mesmo tempo, a fragilidade do Executivo é positiva para congressistas tradicionais do centrão. “O centrão continua a apoiar Bolsonaro com o passe mais valorizado – pode cobrar mais caro (em emendas parlamentares) pois seu suporte se torna indispensável. Do ponto de vista do conteúdo programático, o governo acabou. Sua razão é manter a administração do mandato até as eleições”, diz Pedro Célio Borges. Novamente, surge a questão: é pelas eleições que o presidente pretende continuar no poder? Se sim, por que minar os meios clássicos de conseguir a vitória eleitoral?

Quanto às respostas das instituições, os três especialistas ouvidos concordam que o chefe do Ministério Público Federal, Augusto Aras, se equilibra entre o jogo de interesses. “O senhor Augusto Aras é forçado também a se manifestar em defesa das instituições, embora o faça sem citar nominalmente o presidente”, diz Pedro Célio Borges. Marcos Marinho afirma que o procurador geral da república teve de agir a contragosto, condenar a postura antidemocrática sem deixar de ser subserviente aos dois lados.
Guilherme Carvalho analisa que o ministro do STF, Luiz Fux, deu uma resposta mais firme do que a de Arthur Lira e Augusto Aras, mas ao mesmo tempo tentou não ‘esticar a corda’. “Fux defendeu a corte e lembrou que a responsabilidade de coibir ataques autoritários é do Congresso. Desse modo, seu discurso se parece mais com o de um comentarista que vê as manifestações como problemáticas, mas que tenta não acirrar o problema”, diz Guilherme Carvalho.