Serviços de baixa qualidade e problemas crônicos: entenda a crise da Enel em Goiás
10 outubro 2021 às 00h01
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Contrato tem consequências claras para a má prestação de serviços, mas, ignorando dados, poucos reclamam na instância prevista: a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel)
Desde 2017, quando a Enel Distribuição assumiu o serviço de fornecimento da energia elétrica em Goiás, a empresa italiana vem enfrentando dificuldades no relacionamento com os consumidores e com a classe política. Alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa de Goiás e de uma Comissão Especial de Inquérito (CEI) na Câmara Municipal de Goiânia, a empresa agora se torna objeto de um processo administrativo movido pela Superintendência de Proteção aos Direitos do Consumidor (Procon Goiás).
A empresa alega ter herdado estrutura sucateada da Celg-D, e que entre 2017 e 2021, investiu R$ 336 milhões na capital goiana, de forma que as metas de qualidade serão atingidas em breve. Ainda assim, lideranças políticas pedem desde multas até a encampação (re-estatização temporária) da empresa. O que dizem os dados e estatísticas sobre a qualidade dos serviços prestados? O que dizem engenheiros especialistas sem relação com o estado ou com a empresa – a Enel realmente presta um serviço abaixo da média histórica e nacional?
A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) é o órgão federal encarregado de fiscalizar o setor e estabelecer o relacionamento entre empresas e consumidores. Segundo a agência, a qualidade dos serviços de distribuição de energia elétrica alcançou em 2020 (últimos dados disponíveis) o melhor resultado. Os indicadores utilizados são o DEC e o FEC, que apontam respectivamente a média da duração das interrupções de fornecimento e a frequência de quedas de abastecimento.
A Aneel avaliou todas as concessionárias do país no período de janeiro a dezembro de 2020, divididas em dois grupos: concessionárias de grande porte, com número de unidades consumidoras maior que 400 mil; e concessionárias de menor porte, com o número de unidades consumidoras menor ou igual a 400 mil. Goiás possui a terceira pior concessionária do país no grupo de grande porte (Enel), e a nona melhor do país no grupo de pequeno porte (Chesp, que atende a região de Ceres e Rialma).
Entretanto, na porção do Estado atendida pela Enel, a qualidade da prestação de serviço está em uma clara tendência de melhora histórica. Comparando os dados públicos da Aneel ao longo dos anos, podemos perceber que a duração das faltas de energia elétrica piorou progressivamente até atingir seu marcador péssimo em 2015. Quanto à frequência das interrupções, o pior ano registrado foi o de 2014.
Após a Enel assumir o serviço, em 2017, os dados revelam que os goianos passaram em média 17 horas sem energia elétrica no ano de 2020, quando a meta era de 13 horas. É importante ressaltar que as metas tornam-se mais duras a cada ano.
Em comparação, os números da Chesp estão dentro das metas desde 2014. Em média, os clientes da companhia só passaram 8,8 horas no escuro e tiveram 8,4 interrupções no ano de 2020. A Chesp (Companhia Hidroelétrica São Patrício) atende os municípios de Carmo do Rio Verde, Ceres, Ipiranga de Goiás, Povoado de Monte Castelo no Município de Jaraguá, Nova Glória, Rialma, Rianápolis, Santa Isabel, São Patrício e Uruana.
Aumento das queixas contra a Enel
Os dados da Aneel apurados nos primeiros oito meses deste ano apontam um incremento de 44,26% nas reclamações sobe quedas no fornecimento. No ano passado foram 1.080. Neste ano as queixas chegam 1.558.
Desde 2019, há acordos com prazos para uma melhor prestação de serviço, mas eles acabam sendo sempre sendo jogadas adiante. Um dos indicadores globais internos é a duração das interrupções (DEC), o tempo médio que os consumidores goianos ficam sem energia. Em junho deste ano o resultado foi de 16,48 horas. O limite previsto em contrato é de 14,11 horas.
Outro índice que demonstra a atual situação da prestação do serviço que o goiano recebe quando se fala em fornecimento de energia é a frequência com que as falhas ocorrem. Esse é um dado que cresce junto com as reclamações. Em junho foram 8,81 interrupções.
Parlamentares contra a Enel
Na Câmara Municipal de Goiânia, a Comissão Especial de Inquérito (CEI) da Enel tem o vereador Juarez Lopes (PDT) como vice-presidente. O parlamentar afirma que a comissão tem recebido a população com relatos de insatisfação com o fornecimento de energia. As principais queixas são quanto ao preço do serviço e quanto a manutenção.
“Temos falhado na tentativa de diálogo com a concessionária”, afirma Juarez Lopes. “A Enel é uma empresa internacional cujos funcionários locais têm atribuições muito restritas. O estado italiano é acionista majoritário da Enel, então os representantes locais que tentamos ouvir não sabem ou não podem compartilhar as informações solicitadas. Há uma política clara para proteger a matriz italiana, o que prejudica o poder de resposta das subsidiárias”, opina o vereador.
Segundo ele, a comissão não tem objetivo de recomendar uma solução ou outra, mas quer apenas de esclarecer a situação o melhor possível e, por meio do relatório que será escrito por Ronilson Reis (Podemos), apresentar os problemas ao Ministério Público. “Não sabemos o desdobramento, mas vamos tentar pressionar a empresa para que ela venha à Câmara uma ou duas vezes por ano prestar contas”, conclui Juarez Lopes.
A iniciativa da Câmara Municipal não é a primeira. Em dezembro de 2019, foi concluída a CPI da Enel na Assembleia Legislativa do Estado de Goiás (Alego). O relatório do deputado Cairo Salim (Pros) apontou irregularidades da empresa: falhas na regulamentação e fiscalização por parte da Aneel e falhas no contrato de concessão quanto aos medidores de energia. O relatório foi encaminhado ao Ministério de Minas e Energia e ao Ministério Público Federal, bem como um pedido de caducidade da concessão da prestação de serviço da empresa de distribuição de energia.
O deputado estadual Alysson Lima (PRB) afirma sobre os trabalhos de dois anos atrás: “Eu li o relatório e o considerei bastante duro. Infelizmente, não surtiu os resultados esperados. Até por isso, sou cético quanto aos resultados possíveis da CEI na Câmara Municipal”. Nesta semana, o deputado apresentou um requerimento em caráter de urgência, pedindo a votação de um Projeto de Lei de 2020, com autoria do presidente da Assembleia Legislativa de Goiás, Lissauer Vieira (PSB). O projeto é sobre a rescisão do contrato de concessão para prestação do serviço público de distribuição de energia elétrica.
Alysson Lima acredita que só há duas soluções para a situação da Enel: ou a aprovação do projeto de lei sobre a encampação, ou um processo por meio da Aneel. “Porém, a Aneel diz que não há tantas reclamações, que o nível de investimento está satisfatório e que os índices estão melhorando. Então, entendo que o único caminho é o Estado assumir novamente o serviço de transmissão, com autorização da Alego e pagando as multas contratuais, para no futuro realizar outra licitação mais rigorosa”.
O deputado estadual afirma estar pronto para votar “amanhã” o projeto de lei, que passou dois anos parado na Alego. “Meus pares estão prontos para decidir sobre essa questão também? Minha expectativa é aprovar a encampação da Enel antes do fim do ano, para que tenhamos possibilidade de renovação em 2022. Não é uma discussão sobre privatização versus estatização. A próxima empresa pode ser privada, não há problemas; só o que precisamos é de qualidade”.
A esfera correta
Os contratos de concessão são da esfera Federal, assinados junto ao Ministério de Minas e Energia, entre a Aneel e as empresas de transmissão. Por esta razão, especialistas afirmam que câmaras municipais e assembleias estaduais não são o local adequado para se discutir a concessão ou encampação das empresas. As reclamações teriam maior efeito se feitas para a própria Enel e, caso ignoradas, reportadas à Aneel – que tem obrigação legal de verificá-las.
Os contratos firmados junto ao Ministério de Minas e Energia estabelecem regras claras a respeito de tarifa, regularidade, continuidade, segurança, atualidade e qualidade dos serviços e do atendimento prestado aos consumidores. Da mesma forma, definem penalidades para os casos em que a fiscalização da Aneel constatar irregularidades.
Em Goiás, há um convênio que permite que a fiscalização seja feita pela estadual Agência Goiana de Regulação, Controle e Fiscalização de Serviços Públicos (AGR). Tanto a AGR quanto a Aneel atestam que não há desrespeito da Enel pelas regras contratuais, de forma que a única multa aplicada à empresa data de 2019.
Enes Gonçalves Marra é doutor em Engenharia Elétrica, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), e tem se dedicado ao estudo da aplicação da Eletrônica de Potência à qualidade e eficiência energética. O especialista afirma que a fiscalização é feita com critérios concretos e, embora tenha sido atrapalhada pela pandemia de Covid-19, tem periodicidade.
O engenheiro afirma: “A Enel não tem todo o poder discricionário que as pessoas imaginam. Cobram muito o cabeamento subterrâneo, por exemplo; mas esse tipo de transmissão é quatro vezes mais caro e sua instalação precisa de uma outorga de passagem, de estudo de impacto ambiental. Não é simples. Outra reclamação leiga é a da tarifa”, explica Enes Marra.
O contrato público firmado dita que a Enel deve adquirir a energia que transmite aos consumidores na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). A leitura do contrato revela também que a companhia não pode ganhar dinheiro pela diferença do custo de compra e venda da energia. “Ela busca ‘vender’ a energia a preço de custo”, explica Enes Marra. “A Enel é remunerada pelo serviço prestado. Assim, cada melhoria que a companhia faz é relatada à Aneel, e se torna parte da recomposição de custo. Ou seja, o que impacta no custo da tarifa são os investimentos em melhoria da transmissão, e não o lucro da concessionária”.
A concessão para operar o sistema de transmissão é firmada em contrato com duração de 30 anos. As cláusulas estabelecem que, quanto mais eficiente as empresas forem na manutenção e na operação das instalações de transmissão, evitando desligamentos por qualquer razão, melhor será a sua receita.
Direito do consumidor
Então as reclamações dos clientes são infundadas? Claro que não, explica Enes Marra. “O estado americano do Texas ficou quatro dias sem energia em fevereiro deste ano por conta de temperaturas atipicamente baixas. Lá não costuma nevar. O estado é abastecido por termelétricas a óleo e gás, que congelaram. Em junho, Nova York passou por uma onda de calor que chegou a 43 ºC que fez o prefeito De Blasio clamar aos cidadãos para que evitassem consumo de energia, temendo apagões. Portanto, eventos extremos como a tempestade de poeira que tivemos na última semana podem realmente comprometer a transmissão de energia.”
Em casos de perdas financeiras provocadas pelas faltas de energia, os cidadãos têm direito a ressarcimento, segundo a resolução normativa n. 414/2010 da Aneel. Danos a produtos, bens, ou mesmo a frustração de lucros esperados em função da queda da energia elétrica podem dar direito a compensação. A reclamação pode ser feita diretamente com a Enel e, caso a reclamação não seja atendida, de posse do número protocolo, pode-se protestar junto à Aneel pelo aplicativo Aneel Consumidor.
Segundo o superintendente do Procon Goiás, Alex Augusto Vaz, o órgão juntará em um único processo todos os registros realizados contra a Enel. “Com a extensão do processo será possível mensurar a real perda da população diante da instabilidade das últimas semanas”, afirma. O valor da multa pode chegar até R$10,2 milhões. O órgão também promete fazer um mutirão para agilizar o julgamento de processos. “Sabemos que parte da população acaba desistindo do registro da reclamação por acreditar que exista morosidade e muita burocracia dentro do processo”, diz Alex Vaz.
Relembre a privatização
Dentre as últimas decisões tomadas pelo ex-governador Marconi Perillo (PSDB) na reta final de seu mandato estava a venda da maior estatal do Estado. A privatização passou pela Alego recebendo votos contrários dos deputados Adib Elias (PMDB), Adriana Accorsi (PT), Bruno Peixoto (PMDB), Ernesto Roller (PMDB), Isaura Lemos (PC do B), Luis Cesar Bueno (PT), José Nelto (PMDB), Renato de Castro (PT) e Humberto Aidar (PT).
Em fevereiro de 2017, o governador tucano recebeu a visita do presidente Enel no Brasil — empresa italiana que atua na geração e distribuição de energia elétrica —, Carlo Zorzoli, e do presidente da Eletrobras, Wilson Ferreira, que juntos assinaram o contrato de privatização da Companhia Energética de Goiás (Celg).
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A canetada resultou no depósito de R$ 1,1 bilhão nos cofres do Estado. Dinheiro que, segundo o até então governador, seria aplicado no aperfeiçoamento da infraestrutura goiana. O restante, equivalente a R$ 1,06 bilhão, foi destinado à Eletrobras, que possuía a maior parte das ações da estatal, 50,93%, especificamente.
O contrato de compra e venda foi assinado sob chuva de incentivos e críticas por parte dos goianos. De um lado, apoiadores reforçavam a tese de que somente essa medida seria capaz de salvar o declínio da estatal, bem como fornecer os investimentos que ela tanto precisava. Do outro, opositores lamentavam a perda da empresa para o capital privado, o baixo custo ao qual foi entregue e, sobretudo, as especulações acerca dos interesses particulares que poderiam estar por trás da decisão. Com o negócio, os novos proprietários da companhia se comprometeram a realizar investimentos em tecnologia para melhorar os serviços prestados aos goianos. Mas diante das reclamações, do registro de problemas e queixas, o negócio ainda não se mostrou interessante para os consumidores.