Intervenção federal é a nova forma de enxugar o velho e sangrento gelo de sempre

General Walter Braga Netto, que tem a difícil missão de domar a violência e pacificar o Rio | Foto: Beto Barata/Presidência da República
Foi um carnaval carioca para os políticos esquecerem, em todas as esferas e poderes. O presidente Michel Temer (MDB) se tornou o Vampirão Neoliberalista da Marquês de Sapucaí; com um plano infalível de segurança pública digno de fazer o Cebolinha gargalhar, o governador Luiz Fernando Pezão (MDB) enterrou sua carreira política em algum saque a supermercado nos dias de folia; e o prefeito Marcelo Crivella (PRB) assistiu tudo de camarote, mas na Europa, em uma viagem no melhor estilo “saída pela direita” para escapar das críticas pelo corte nas verbas das escolas de samba.
O que veio depois foi bem além do esperado. Em vez de breve ressaca moral, uma resposta radical. A Presidência da República mais impopular da história brasileira decretou intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, medida aprovada por 83% da população, em uma primeira estimativa, do próprio Planalto. Medida populista de governante desacreditado, diga-se.
Um estado crítico de insegurança, violência e criminalidade mereceria muito mais do que o mando do Exército. Muito mais e muito antes. Tantas mortes: quantas crianças, nos braços de seus pais? Quantos trabalhadores, a caminho do serviço? Quantos jovens, indo ou voltando da faculdade ou de uma festa? Quantos policiais, no cumprimento do dever ou executados apenas por serem identificados como tais? Quantas mortes? Enfim, uma pergunta básica para lamentar todo o leite derramado: quanto de tanto sangue teria sido evitado se houvesse gestores honestos e impostos bem aplicados?
Agora, depois de algumas incursões esporádicas para remediar crises cariocas, o Exército ficou literalmente com a bomba nas mãos. O interventor, general Walter Braga Netto, assume com plenos poderes o setor de segurança pública do Estado. Como diz o decreto, até o fim de sua “gestão” – as aspas são propositais – em dezembro, Pezão não terá mais qualquer ingerência sobre a área. Na prática, haverá dois governadores: Braga Netto para o que importa aos fluminenses (combater a criminalidade e restaurar a paz) e Pezão, para o resto.
Interessante observar que o Rio Grande do Norte, para citar só um exemplo, passou em janeiro por uma crise pelo menos tão séria quanto a do Rio de Janeiro. Em meio a uma greve da polícia, uma onda de saques, mortes e crimes sem precedentes, o que faltou para os potiguares serem alvo também de uma intervenção federal? Muito provavelmente os holofotes da mídia. Afinal, com raras exceções, o que é o Brasil fora do Sul-Sudeste a não ser uma terra paradisíaca e exótica de povo acolhedor?
Voltando o foco para o epicentro e retomando o raciocínio de alguns parágrafos atrás, sobre o “muito antes”, o cenário de terror que as populações mais pobres, notadamente das favelas cariocas, passarão a viver com ainda mais intensidade nos próximos meses poderia ter sido evitado com uma medida muito mais inteligente: a rendição do poder público na luta contra os traficantes.
Sim, faz tempo que o Brasil perdeu não uma batalha, mas a guerra contra o narcotráfico, com certeza a causa mais óbvia da violência que mata no morro e no asfalto não só no Rio, mas em todo o País. Não haveria mais o que ser feito em termos de ofensiva, mas o temor é de que agora o próprio Exército brasileiro sofra seu Vietnã nos becos da Rocinha, da Maré, do Alemão, levando antes disso a vida de tantas e tantos mais inocentes – crianças, trabalhadores e trabalhadoras, jovens, policiais de forma sempre repetida. Ironicamente, ao admitir que perdeu a guerra, o governo lança a maior das ofensivas.
Qual seria a decisão realmente sábia para um governante? Ora, como já se escrevia em um panfleto dos Narcóticos Anônimos da década de 80 – uma frase que erroneamente é atribuída ao cientista Albert Einstein – “insanidade é repetir os mesmos erros e esperar resultados diferentes”. Se a política antidrogas fracassou, se os traficantes continuam comandando, se subir o morro é enxugar gelo, se as unidades de polícia pacificadora (UPPs) foram à falência diante do stablishment, o que fazer? Mais do mesmo?

Governador Luiz Fernando Pezão: ocaso político por falhar contra o crime | Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Só há uma saída para acabar com a força do tráfico: admitir humildemente que os bandidos venceram a guerra para, enfim, mudar a estratégia. Mais ousado e surpreendente do que baixar um decreto enviando homens e tanques verde-oliva para o Rio seria anunciar um plano piloto de comercialização controlada das drogas.
Admitir que é preciso legalizar as drogas – e não somente a maconha, diga-se – e colocá-las à venda em farmácias e estabelecimentos autorizados é algo quase impensável diante da moral cristã conservadora do brasileiro, que, diga-se também, está em alta. Mas basta um raciocínio mínimo, com um mínimo de compaixão por quem sofre as agruras na pele: quantas mortes diretas e indiretas há pelo tráfico, dia a dia, no Rio, em São Paulo, em Goiânia e mesmo numa pequena cidade do interior de Goiás? Quanta violência não é causada pelas dívidas de usuários com seus “aviões” e desses pequenos traficantes com seus superiores?
O tráfico só vai acabar no dia em que acabarem com ele. E isso não será com o Estado mostrando suas armas, mas com o mercado agindo pelo livre comércio. Sim, talvez haja um aumento no consumo de narcóticos por parte de alguns segmentos, mas a economia de vidas que, caso contrário, seguiriam mortas à bala compensaria o investimento em saúde pública e as necessárias unidades de tratamento de dependentes. Um dano ao tecido social que poderia ser monitorado e controlado pelo governo, para reparar outro dano, de consequências muito mais graves, assombrosas e evidentes.
Aquele celular roubado, aquele carro levado do portão de casa, a mesma casa invadida, tudo isso invariavelmente tem a droga em sua “cadeia de produção”. Talvez se o mesmo sujeito de perfil conservador conseguisse enxergar que seu apego ao moralismo – tal qual ocorreu na década de 20 do século passado, com a lei seca nos Estados Unidos – mata mais do que a abertura a uma nova visão de política pública, o general Braga Netto poderia ficar tranquilo cuidando de batalhões em seus quartéis.
Por que não tentam fazer diferente? Talvez porque o problema não esteja em cima do morro, mas dentro dos palácios. Como mostrou bem claramente o filme “Tropa de Elite” e como sabe qualquer cidadão de visão um pouco menos obtusa, o tráfico rende votos e políticos são eleitos por meio dele. Fazem fortuna o dono do morro e da cadeira na Assembleia ou na Câmara. O infortúnio fica com a gente aqui, do andar de baixo.
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