Era sexta-feira, 20 de outubro de 2017, por volta das 11h. Os alunos do Colégio Goyases, no Conjunto Riviera, em Goiânia, enchiam balões para uma amostra de ciência que iria acontecer na manhã daquele sábado. Quando o sinal para a troca de aula tocou, um dos alunos, que se sentava na penúltima cadeira da sala do 8º ano, sacou uma pistola .40 da mochila, virou-se para trás e deu início ao atentado que marcou Goiás e chocou o Brasil.

Imagens de câmera de segurança mostram o desespero dos alunos após os tiros | Foto: Reprodução

Aos 14 anos, J.C., o jovem que disparou uma dezena de vezes dentro da escola, alegava que sofria bullying e, por isso, atirou contra os seis colegas de turma, matando João Vitor Gomes e João Pedro Calembo, além de ter atingido outros quatro alunos. Na semana do crime, após ser chamado de fedorento e ser recebido na sala de aula com um desodorante, as ameaças que costumava fazer aos colegas subiu de nível.  A arma usada no atentado era da mãe do garoto, uma sargento da Polícia Militar de Goiás. Ele pegou a pistola escondida dos pais, colocou na mochila e assistiu as aulas como se fosse um dia comum.

João Vitor Gomes e João Pedro Calembo foram mortos durante o atentado | Foto: Reprodução

O depoimento dos colegas de turma, no entanto, revelam que o jovem já tinha um perfil violento. “Ele levava livros satânicos para a escola e sempre idolatrava Hitler e essas supremacias na sala de aula. Uma vez, ele foi com uma suástica desenhada no uniforme e a escola sabia disso”, conta Isadora de Morais, vítima de dois disparos, um nas costas e outro na mão. Ela, que ficou paraplégica, revela, sete anos depois, que ainda sofre com dores, tanto físicas quanto psicológicas.

Isadora de Morais antes e depois do atentado | Foto: Reprodução/Redes Sociais

Por causa da mostra de ciências, quando o primeiro tiro foi disparado, Isadora pensou que o barulho seria de um dos balões estourando. Quando percebeu o que estava acontecendo, ela e os outros colegas começaram a correr. “Aí eu levei o tiro nas costas…Eu não vi ele atirando. Quando ele me acertou e eu caí no chão eu pensei: caramba, minhas pernas. Eu tentei me levantar, mas não consegui. Mas eu vi ele andando de um lado para o outro com a arma na mão, chegando perto de mim e apontando. E foi a primeira coisa que eu falei quando acordei no hospital. Dizia para minha mãe que queria minhas pernas de volta, eu já sabia que não estava sentindo elas mais.

Apesar do medo, superação

Hoje, aos 20 anos, Isadora estuda publicidade e propaganda em uma Universidade de Goiânia e, apesar do acolhimento, terapia e apoio da família, ainda sente medo. “Toda vez que eu entro numa sala de aula, eu me enxergo no chão, cheia de sangue, pedindo socorro, gritando. Mas graças a Deus, estou viva e me apego muito a isso todos os dias”, diz.

Estudante de Publicidade e Propaganda, Isadora é apaixonada por fotografia | Foto: Reprodução/Redes Sociais

Apaixonada por fotografia, Isadora diz que ainda fala sobre o que aconteceu para que o caso nunca caia no esquecimento. Ela, que também faz palestras em escolas, revela que luta para que episódios como o do Colégio Goyases nunca mais aconteçam. “Eu falo para as pessoas que tem que estar sempre de olho, que os pais precisam estar mais próximos dos filhos porque pode acontecer com qualquer um. Os sinais são dados, seu sei que todo mundo trabalha e chega em casa cansado, mas poxa, pergunta para filho como foi o dia, como foi a aula, se teve algum problema”, conta.

Além das palestras, ela mantém contato com vítimas de outros atentados. É o caso de Thayane Tavares Monteiro, que também ficou paraplégica após ser atingida por quatro tiros durante massacre de Realengo, em 2011. Também do 8º ano, na época do atentado, Monteiro deu forças para Isadora “fazer o que quisesse, mesmo com as limitações”. 

As lesões nas vértebras da T9 e T10 a mantiveram no Hospital de Urgências de Goiânia (Hugo) por 54 dias, sendo 21 na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI). “Depois comecei a reabilitação no Crer, fisioterapia, readaptação. Mas hoje eu faço academia porque os meus braços viraram minhas pernas também, então me ajuda a ter mais autonomia também. E também me ajuda com a ansiedade”, comenta.

Pai transformou perda do filho em luta


“A gente tenta reorganizar a vida, mas é difícil”, inicia o publicitário Leonardo Calembo, pai de uma das vítimas fatais do atentado. Ele, a esposa e os dois filhos tiveram que se adaptar à rotina sem João Pedro. “No começo, a gente via nossos dois filhos brincando dentro, correndo dentro de casa. Corria um, corria o outro e o terceiro não passava. Assusta um pouco, mas a gente vai aprendendo a lidar com a ausência”, conta.

A chegada do dia do aniversário de João Pedro aumenta a saudade. Se estivesse vivo, ele completaria 20 anos no próximo dia 12 de julho. “E tem os outubros que é um dia de lembrança para a gente”.

A família Calembo | Foto: Reprodução

Levar os filhos para a mesma escola em que o irmão foi assassinado foi uma das tarefas mais difíceis para os Calembos. “O ambiente da escola que tinha que ser um ambiente acolhedor, ele passou a ser um ambiente hostil para minha família. Você pensa que pode acontecer de novo. Meus filhos sempre perguntam sobre o João e recentemente, o Davi, que é o mais novo, me relatou que lembrou de ouvir os tiros. Ele também estudava lá e estava no colégio”, conta.

O lidar só veio com ajuda psicológica. Mas o coração de Leonardo sempre aperta quando notícias com casos semelhantes aparecem na imprensa. Com o passar dos anos, ele, que é pastor e lida com casos relacionados à família, passou a cobrar mais atenção dos pais e do poder público em relação à violência dentro das escolas. “A gente percebe que tem que fazer alguma coisa, primeiro porque há um distanciamento das famílias, dos pais com os filhos. Com a internet, os celulares, a gente passou a ter muitas crianças órfãs dentro de casa com os pais vivos”, relata.

Iniciativas

Essa falta de convívio, de atenção, carinho e cuidado, aponta Calembo, são alguns dos fatores que levam crianças a tirar a vida de outras crianças. “A escola também precisa estar atenta com os alunos porque ele muda o comportamento e o professor está todo dia dentro da sala de aula com ele. Essas crianças precisam de um acompanhamento psicológico, precisa ser um trabalho em conjunto”, analisa.

Em uma das iniciativas, Calembo propôs, junto do deputado estadual Paulo Cesar Martins, um projeto de Lei que obrigasse que as escolas goianas tivessem ao menos um agente de segurança para evitar novos atentatos. Além disso, ele participa de discussões no Senado Federal que propõe a mesma medida em nível nacional.

O nome de João Pedro Calembo dá nome a um Centro Municipal de Educação Infantil no mesmo bairro. “O João Pedro gostava muito de criança, ajudava no ministério infantil da igreja, queria viajar com os missionários. É uma justa homenagem.”

Ameaças reacendeu pesadelos

Isadora e Leonardo relataram que as ameaças de ataques à escolas em todo o País no ano passado reacenderam o pesadelo vivido em 2017.  Blumenau (SC), no ano passado, quatro crianças foram mortas em um atentado à creche. Somente em 2022 e 2023, o número de ataques em escolas no Brasil já supera o total registrado nos 20 anos anteriores, segundo pesquisadores.

Os ataques a escolas também foram abordados em um relatório entregue ao governo de transição no final do ano passado. Além dos ataques efetivamente realizados, o documento destaca os atentados evitados.

De acordo com o relatório “O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental”, foram evitados 34 ataques a escolas no Brasil entre 2012 e 2022, sendo 22 apenas no ano passado.

Dos 22 ataques evitados em 2022, oito tinham como alvo escolas em Goiás e quatro em Minas Gerais.

Conforme apontam os pesquisadores, os agressores geralmente são jovens (entre 10 e 25 anos), do sexo masculino. Muitos deles são vítimas de bullying na escola, apresentam características de isolamento social e indícios de transtornos mentais não diagnosticados ou acompanhados. Esses jovens se articulam em comunidades online onde há incentivo à violência, à misoginia e em plataformas de fácil acesso na internet.